Dando
continuidade às suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Vésperas, o Papa
Bento XVI refletiu sobre os textos da segunda-feira da IV semana do Saltério nos
dias 09 de novembro (Sl 135,1-9), 16 de novembro (Sl 135,10-26) e 23 de
novembro de 2005 (Ef 1,3-10).
154. Hino pascal pelas maravilhas do Deus criador e libertador I: Sl 135(136),1-9
09 de novembro de 2005
1. Foi chamado “o
grande Hallel”, ou seja, o louvor
solene e grandioso que o Judaísmo entoava durante a Liturgia pascal. Falamos do
Salmo 135, do qual ouvimos a primeira parte, segundo a divisão proposta pela
Liturgia das Vésperas (vv. 1-9).
Antes de tudo
detenhamo-nos no refrão: “Porque eterno é seu amor!”. No centro da frase ressoa
a palavra “amor”, “misericórdia” que, na realidade, é uma tradução legítima,
mas limitada, do vocábulo originário hebraico hesed. Este, de fato, faz parte da linguagem característica da
Bíblia para exprimir a aliança que existe entre o Senhor e o seu povo. A
palavra procura definir as atitudes que se estabelecem no interior desta
relação: a fidelidade, a lealdade, o amor e evidentemente a misericórdia de
Deus. Temos aqui a representação sintética do vínculo profundo e interpessoal
instaurado pelo Criador com a sua criatura. Dentro desta relação, Deus não é
apresentado na Bíblia como um Senhor impassível e implacável, nem como um ser
obscuro e indecifrável, semelhante ao destino, contra cuja força misteriosa é
inútil lutar. Ao contrário, Ele manifesta-se como uma pessoa que ama as suas
criaturas, vigia sobre elas, as segue no caminho da história e sofre pelas
infidelidades que muitas vezes o povo opõe ao seu hesed, ao seu amor misericordioso e paterno.
"Porque eterno é seu amor" (Refrão do Sl 135) (Imagem da "Divina Misericórdia") |
2. O primeiro
sinal visível desta caridade cristã, diz o salmista, deve procurar-se na
criação. Depois entrará em cena a história. O olhar, repleto de admiração e assombro,
detém-se antes de tudo na criação: os céus, a terra, as águas, o sol, a lua e
as estrelas.
Ainda antes de
descobrir o Deus que se revela na história de um povo, há uma revelação
cósmica, aberta a todos, oferecida à humanidade inteira pelo único Criador, “Deus
dos deuses” e “Senhor dos senhores” (vv. 2-3).
Como tinha
cantado o Salmo 18, “os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia a
obra das suas mãos. Um dia passa ao outro esta mensagem e uma noite dá
conhecimento à outra noite” (Sl 18,2-3).
Portanto, existe uma mensagem divina, secretamente gravada na criação e sinal
do hesed, da fidelidade amorosa de
Deus, que doa às suas criaturas o ser e a vida, a água e o alimento, a luz e o
tempo.
É preciso ter
olhos límpidos para contemplar esta revelação divina, recordando a admoestação
do Livro da Sabedoria, que nos
convida a “contemplar na grandeza e na beleza das criaturas, por analogia, o
seu Criador” (cf. Sb 13,5; Rm 1,20). O louvor orante desemboca
então na contemplação das “grandes maravilhas” de Deus (v. 4), espalhadas pela
criação, e transforma-se em um jubiloso hino de louvor e de agradecimento ao
Senhor.
3. Por
conseguinte, ascende-se das obras criadas à grandeza de Deus, à sua amorosa
misericórdia. É o que nos ensinam os Padres da Igreja, em cuja voz ressoa a
constante Tradição cristã.
Assim, São
Basílio Magno, em uma das páginas iniciais da sua Primeira Homilia sobre o Exameron,
na qual comenta a narração da criação segundo o primeiro capítulo do Gênesis, detém-se a considerar a ação
sábia de Deus, e termina reconhecendo na bondade divina o centro propulsor da
criação. Eis algumas expressões tiradas da longa reflexão do santo Bispo de
Cesareia da Capadócia:
“‘No princípio
Deus criou o céu e a terra’. A minha palavra rende-se, subjugada pelo assombro
deste pensamento” (1, 2, 1: Sulla Genesi:
Omelie sull'Esamerone, Milão, 1990, pp. 9.11). De fato, também se alguns, “enganados
pelo ateísmo que levavam dentro de si, imaginaram o universo privado de
orientação e de ordem, como que à mercê das circunstâncias”, o escritor sagrado,
ao contrário, “esclareceu-nos de imediato a mente com o nome de Deus no início
da narração, dizendo: ‘No princípio Deus criou’. E que beleza nesta ordem!” (1,
2, 4: ibid., p. 11). “Se, portanto, o
mundo tem um princípio e foi criado, procura quem lhe deu o início e quem é o
seu Criador... Moisés preveniu-te com o seu ensinamento, imprimindo nas nossas
almas como selo e filactério o santíssimo nome de Deus, quando diz: ‘No
princípio Deus criou’. A natureza bem-aventurada, a bondade sem inveja, Aquele
que é objeto de amor por parte de todos os seres racionais, a beleza mais desejável
que qualquer outra, o princípio dos seres, a fonte da vida, a luz intelectiva,
a sabedoria inacessível, em suma, Deus ‘no princípio criou o céu e a terra’”
(1, 2, 6-7: ibid., p. 13).
Penso que as
palavras deste Padre do século IV são de uma atualidade surpreendente quando
diz: “Alguns, deixando-se enganar pelo ateísmo que levavam dentro de si,
imaginaram um universo privado de orientação e de ordem, como que à mercê das
circunstâncias”. Quantos são hoje estes “alguns”. Eles, deixando-se enganar
pelo ateísmo, consideram e procuram demonstrar que é científico pensar que tudo
está privado de ordem, como que à mercê das circunstâncias. O Senhor, com a
Sagrada Escritura, desperta a razão que dorme e diz-nos: “No princípio está a
Palavra criadora. E a Palavra criadora que está no princípio - a Palavra
criadora que tudo criou, que criou este projeto inteligente que é o cosmos - também é amor”.
Por conseguinte,
deixemo-nos despertar por esta Palavra de Deus; rezemos para que ela esclareça
também a nossa mente, para que possamos compreender a mensagem da criação,
inscrita também em nosso coração: o princípio de tudo é a Sabedoria criadora, e
esta Sabedoria é amor, é bondade: “Porque eterno é seu amor!”.
155. Hino pascal pelas maravilhas do Deus criador e libertador II: Sl 135(136),10-26
16 de novembro de 2005
1. A nossa
reflexão volta ao hino de louvor do Salmo 135, que a Liturgia das Vésperas
propõe em duas etapas sucessivas, seguindo uma distinção específica que a
composição oferece a nível temático. De fato, a celebração das obras do Senhor
delineia-se em dois âmbitos, o do espaço e o do tempo.
Na primeira parte
(vv. 1-9), que foi objeto da nossa meditação precedente, o cenário era composto
por atos divinos dispostos na criação: eles deram origem às maravilhas do
universo. Assim, naquela parte do Salmo proclama-se a fé em Deus criador, que
se revela através das suas criaturas cósmicas. Agora, porém, o jubiloso canto
do salmista, chamado pela tradição judaica “o grande Hallel”, ou seja, o maior louvor que elevamos ao Senhor, conduz-nos
a um horizonte diverso, o da história. Portanto, enquanto a primeira parte fala
da criação como reflexo da beleza de Deus, a segunda fala da história e do bem
que Deus realizou para nós no decorrer da história. Sabemos que a Revelação
bíblica proclama repetidamente que a presença de Deus salvador se manifesta de
modo particular na história da salvação (cf.
Dt 26,5-9; Js 24,1-13).
2. Assim,
desfilam diante do orante as ações libertadoras do Senhor, que têm o seu
coração no acontecimento fundamental do êxodo do Egito. Com ele está
profundamente relacionada a difícil viagem pelo deserto do Sinai, cujo meta
derradeira é a terra prometida, o dom divino que Israel continua a experimentar
em todas as páginas da Bíblia.
A célebre
travessia do Mar Vermelho, “cortado em duas partes” (v. 13), como que rasgado e
dominado como um monstro vencido, faz nascer o povo livre e chamado a uma
missão e a um destino glorioso (vv. 14-15; cf.
Ex 15,1-21), que terá a sua releitura cristã na plena libertação do mal com
a graça batismal (cf. 1Cor 10,1-4).
Depois, abre-se o itinerário do deserto: lá o Senhor está representado como um
guerreiro que, prosseguindo a obra de libertação iniciada na travessia do Mar
Vermelho, se declara em defesa do seu povo ferindo os adversários. Deserto e
mar representam, portanto, a passagem através do mal e da opressão para receber
o dom da liberdade e da terra prometida (vv. 16-20).
3. No final, o Salmo
apresenta aquela terra que a Bíblia exalta de modo entusiasta como “terra ótima,
terra de torrentes de água, de fontes e de nascentes, que jorram por vales e
montes; terra de trigo, cevada, videiras, figos e de romãs; terra de oliveiras,
azeite e mel; terra onde não comerás pouco pão, onde nada te faltará, terra
onde as pedras são de ferro e de cujas montanhas extrairás cobre” (Dt 8,7-9).
Esta celebração
enfática, que vai além da realidade daquela terra, quer exaltar o dom divino,
dirigindo a nossa expectativa para o dom mais nobre da vida eterna com Deus. Um
dom que permite que o povo seja livre, um dom que nasce - como se continua a
repetir na antífona que marca cada versículo - do hesed do Senhor, isto é, da sua “misericórdia”, da sua fidelidade
ao compromisso assumido na aliança com Israel, do seu “amor” que continua a
revelar-se através da “recordação” (v. 23). No tempo da “humilhação”, ou seja,
nas provas e opressões sucessivas, Israel descobrirá sempre a mão salvadora do
Deus da liberdade e do amor. Também no tempo da fome e da miséria o Senhor
entra em ação para oferecer a toda a humanidade o alimento, confirmando a sua
identidade de criador (v. 25).
4. Por
conseguinte, com o Salmo 135 entrelaçam-se duas modalidades da única Revelação
divina, a cósmica (vv. 4-9) e a histórica (vv. 10-25). Sem dúvida, o Senhor é
transcendente como criador e árbitro do ser; mas também está próximo das suas
criaturas, entrando no espaço e no tempo. Não permanece fora, no céu longínquo.
Aliás, a sua presença no meio de nós alcança o seu ápice na Encarnação de
Cristo.
É quanto
proclama a releitura cristã do Salmo de modo límpido, como é confirmado pelos
Padres da Igreja, que veem o vértice da história da salvação e o sinal supremo
do amor misericordioso do Pai no dom do Filho, como salvador e redentor da
humanidade (cf. Jo 3,16).
Assim, São
Cipriano, um mártir do século III, ao iniciar o seu tratado sobre As obras de caridade e a esmola,
contempla com admiração as obras que Deus realizou em Cristo, seu Filho, em
favor do seu povo, irrompendo por fim em um reconhecimento apaixonado da sua
misericórdia. “Irmãos caríssimos, são muitos e grandiosos os benefícios de
Deus, que a bondade generosa e abundante de Deus Pai e de Cristo realizou e
sempre realizará para a nossa salvação; de fato, para doar-nos uma nova vida e
para poder nos redimir, o Pai enviou o Filho; o Filho, que tinha sido enviado,
quis ser chamado também Filho do homem, para que nos tornássemos filhos de
Deus: humilhou-se, para elevar o povo que antes jazia por terra, foi ferido
para curar as nossas feridas, tornou-se escravo para nos conduzir à liberdade,
a nós que éramos escravos. Aceitou morrer, para poder oferecer aos mortais a
imortalidade. São estes os numerosos e grandiosos dons da divina misericórdia”
(1: Tratados: Coleção de Textos Patrísticos, CLXXV, Roma, 2004, p. 108).
Com estas
palavras, o santo Padre da Igreja desenvolve o Salmo com uma ladainha dos
benefícios que Deus nos fez, acrescentando ao que o salmista ainda não
conhecia, mas já esperava, o verdadeiro dom que Deus nos fez: o dom do Filho, o
dom da Encarnação, na qual Deus se doou a nós e permanece conosco, na
Eucaristia e na sua Palavra, todos os dias, até o fim da história. O nosso
perigo é que a memória do mal, dos males suportados, muitas vezes seja mais forte
do que a memória do bem. O Salmo serve para despertar em nós também a memória
do bem, do muito bem que o Senhor nos faz, e que podemos ver se o nosso coração
estiver atento: é verdade, a misericórdia de Deus é eterna, está presente dia
após dia.
156. O plano divino da salvação: Ef 1,3-10
23 de novembro de 2005
1. Todas as
semanas a Liturgia das Vésperas propõe à Igreja orante o solene hino de
abertura da Carta aos Efésios, o
texto que foi agora proclamado. Ele pertence ao gênero das berakot, ou seja, das “bênçãos”, que já se encontram no Antigo
Testamento e que terão uma ulterior difusão na tradição judaica. Por
conseguinte, trata-se de um constante fio de louvor que se eleva a Deus, que na
fé cristã é celebrado como “Pai de Jesus Cristo, Senhor nosso”.
É por isso que,
no nosso louvor hínico, Cristo é a figura central, na qual se revela e cumpre a
obra de Deus Pai. De fato, os três verbos principais deste cântico longo e
compacto conduzem-nos sempre para o Filho.
2. Deus “nos
escolheu em Cristo” (v. 4): é a nossa vocação à santidade e à filiação adotiva
e, por conseguinte, à fraternidade com Cristo. Este dom, que transforma
radicalmente o nosso estado de criaturas, nos é oferecido “através de Jesus
Cristo” (v. 5), uma obra que entra no grande projeto divino de salvação,
naquela amorosa e “livre decisão da vontade” do Pai (v. 5), que o Apóstolo comtempla
com emoção.
O segundo verbo,
depois do verbo da eleição (“nos escolheu”), designa o dom da graça: “Para o
louvor e para a glória de sua graça, que em seu Filho bem-amado nos doou” (v. 6).
Em grego temos por duas vezes a mesma raiz, charis
e echaritosen, para realçar a
gratuidade da iniciativa divina, que precede qualquer resposta humana.
Portanto, a graça que o Pai nos proporciona é manifestação do seu amor que nos
envolve e nos transforma.
3. E eis-nos no
terceiro verbo fundamental do cântico paulino: ele tem por objeto a graça
divina que foi derramada sobre nós “em abundância” (v. 8). Por conseguinte,
estamos diante de um verbo de plenitude, poderíamos dizer - atendo-nos ao seu
significado original - de excesso, de doação sem limites nem reservas.
Chegamos assim à
profundidade infinita e gloriosa do mistério de Deus, aberto e revelado por
graça a quem foi chamado por graça e por amor, sendo esta uma revelação
impossível de alcançar unicamente com o dom da inteligência e das capacidades
humanas. “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem
não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam. Deus, porém,
revelou-o a nós pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo
as profundezas de Deus” (1Cor 2,9-10).
4. O “mistério
da vontade” divina tem um centro, que está destinado a coordenar todo o ser e
toda a história guiando-os à plenitude querida por Deus: é “o desígnio de, em
Cristo, reunir todas as coisas” (v. 10). Neste “desígnio”, em grego oikonomia, ou seja, neste plano
harmonioso da arquitetura do ser e do existir, eleva-se Cristo, Cabeça do Corpo
da Igreja, mas também eixo que recapitula em si o universo inteiro, “todas as
coisas: as da terra e as do céu”. A dispersão e o limite são superados, e
configura-se aquela “plenitude” que é a verdadeira meta do projeto que a
vontade divina tinha preestabelecido desde as origens.
Por conseguinte,
estamos diante de um mosaico grandioso da história da criação e da salvação,
que agora gostaríamos de meditar e aprofundar através das palavras de Santo Irineu,
um grande Padre da Igreja do século II, o qual, em algumas páginas magistrais
do seu tratado Contra as heresias,
tinha desenvolvido uma reflexão minuciosa precisamente sobre a recapitulação
realizada por Cristo.
5. A fé cristã -
afirma Irineu - reconhece que “existe um único Deus Pai e um só Cristo Jesus,
nosso Senhor, que veio através de toda a economia e recapitulou em si todas as
coisas. Entre todas as coisas está também o homem, imagem de Deus. Portanto,
recapitulou também o homem em si mesmo, tornando-se visível, Ele que é
invisível, compreensível, Ele que é incompreensível, e homem, Ele que é Verbo”
(3, 16, 6: Già e non ancora, CCCXX,
Milão, 1979, p. 268).
Por isso, “o
Verbo de Deus se fez homem” realmente, não na aparência, porque então a “sua
obra não teria sido verdadeira”. Ao contrário, “Ele era como se mostrava: Deus
que recapitula em si a sua antiga criatura, que é o homem, para sair do pecado,
destruir a morte e vivificar o homem. E por isso as suas obras são verdadeiras”
(3, 18, 7: ibid., pp. 277-278).
Constituiu-se
Chefe da Igreja para atrair todos para si no momento justo. No espírito destas
palavras de Santo Irineu rezemos: “Sim, Senhor, atrai-nos para Ti, atrai o
mundo para Ti e concede-nos a paz, a Tua paz”.
"Foi em Cristo que Deus Pai nos escolheu..." (Ef 1,4) (Vocação dos primeiros discípulos - Juan de Roelas) |
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