quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Catequeses sobre os Salmos (54): II Vésperas do domingo da IV semana

Como afirmamos em postagens anteriores, o Papa Bento XVI concluiu o ciclo de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas iniciado por João Paulo II. Porém, não retomou os textos que já haviam sido abordados, à exceção os hinos das Cartas Paulinas.

Portanto, em relação às II Vésperas do domingo da IV semana do Saltério, o Papa alemão refletiu apenas sobre o Sl 111, no dia 02 de novembro de 2005.

Sl 109 (110): cf. Catequeses nn. 93 e 115.

153. A felicidade do justo: Sl 111(112),1-10
02 de novembro de 2005

1. Depois de ter celebrado ontem a Solenidade de todos os Santos do céu, hoje fazemos memória de todos os fiéis defuntos. A Liturgia convida-nos a rezar pelos nossos queridos que faleceram, dirigindo o pensamento para o mistério da morte, herança comum de todos os homens.
Iluminados pela fé, olhamos para o enigma humano da morte com serenidade e esperança. Segundo a Escritura, de fato, ela mais do que um fim, é um nascimento novo, é a passagem obrigatória através da qual podem alcançar a vida em plenitude aqueles que modelam a sua existência terrena segundo as indicações da Palavra de Deus.
O Salmo 111, composição de tipo sapiencial, apresenta-nos a figura destes justos, os quais temem o Senhor, reconhecem a sua transcendência e aderem com confiança e amor à sua vontade na expectativa de encontrá-lo depois da morte.
A estes fiéis está reservada uma “bem-aventurança”: “Feliz o homem que [respeita] teme o Senhor” (v. 1). O salmista esclarece imediatamente em que consiste tal temor: ele manifesta-se na docilidade aos mandamentos de Deus. É proclamado bem-aventurado aquele que “ama com carinho sua lei”, isto é, guarda os mandamentos, encontrando neles alegria e paz.

"Feliz o homem que respeita o Senhor" (Sl 111,1)
(Grupo de santos - Fra Angelico)

2. A docilidade a Deus é, por conseguinte, raiz de esperança e de harmonia interior e exterior. A observância da lei moral é fonte de profunda paz da consciência. Aliás, segundo a visão bíblica da “retribuição”, sobre o justo estende-se o manto da bênção divina, que imprime estabilidade e sucesso às suas obras e às dos seus descendentes: “Sua descendência será forte sobre a terra, abençoada a geração dos homens retos!” (vv. 2-3; v. 9). Sem dúvida, a esta visão otimista opõem-se as observações amargas do justo Jó, que experimenta o mistério do sofrimento, se sente injustamente punido e submetido a provas aparentemente insensatas. Jó representa muitas pessoas justas que sofrem duramente no mundo. Por conseguinte, será necessário ler este Salmo no contexto global da Sagrada Escritura, até à Cruz e à Ressurreição do Senhor. A Revelação inclui a realidade da vida humana em todos os seus aspectos.
Contudo, permanece válida a confiança que o salmista deseja transmitir e fazer experimentar a quem escolheu seguir o caminho de um comportamento moralmente irrepreensível, contra qualquer alternativa de sucesso ilusório obtido através da injustiça e da imoralidade.

3. O centro desta fidelidade à Palavra divina consiste numa opção fundamental, isto é, a caridade para com os pobres e os necessitados: “Feliz o homem caridoso e prestativo... Ele reparte com os pobres os seus bens...” (vv. 5.9). Portanto, o fiel é generoso; respeitando a norma bíblica, ele concede empréstimos aos irmãos em necessidade, sem juros (cf. Dt 15,7-11) e sem cair na infâmia da usura que destrói a vida dos miseráveis.
O justo, aceitando a admoestação constante dos profetas, declara-se do lado dos marginalizados, e ampara-os com ajudas abundantes. “Ele reparte com os pobres os seus bens”, diz o versículo 9, expressando assim uma extrema generosidade, completamente desinteressada.

4. O Salmo 111, paralelamente ao retrato do homem fiel e caridoso, “bom, misericordioso e justo”, apresenta no fim, em um só versículo, também o perfil do ímpio (v. 10). Este indivíduo assiste ao sucesso da pessoa justa enfurecido de raiva e de inveja. É o tormento de quem tem uma má consciência, ao contrário do homem generoso que tem o seu coração “seguro” e “tranquilo” (vv. 7-8).
Nós fixamos o nosso olhar no rosto sereno do homem fiel, que “reparte com os pobres os seus bens”, e confiamo-nos, para a nossa reflexão conclusiva, às palavras de Clemente de Alexandria, Padre da Igreja do século II, que comentou uma afirmação difícil do Senhor. Na parábola sobre o administrador injusto encontra-se a expressão segundo a qual devemos fazer o bem com o “dinheiro desonesto”. Daqui surge a pergunta: o dinheiro, a riqueza, são em si injustos, ou o que pretende dizer o Senhor? Clemente de Alexandria explica muito bem este conceito na sua homilia “Qual é o rico que se salvará”: com esta afirmação Jesus “declara injusto por natureza qualquer bem que alguém possua para si mesmo como bem próprio e não o reparta com aqueles que têm necessidade; mas declara também que desta injustiça é possível realizar uma obra justa e saudável, dando repouso a alguns dos pequeninos que habitam eternamente junto do Pai (cf. Mt 10,42; 18,10)” (31, 6: Collana di Testi Patristici, CXLVIII, Roma, 1999, pp. 56-57).
E, dirigindo-se ao leitor, Clemente adverte: “Observa em primeiro lugar que ele não te ordenou que faças suplicar nem que esperes ser suplicado, mas que procures tu mesmo aqueles que são dignos de ser ouvidos, porque são discípulos do Salvador” (31, 7; ibid., p. 57).
Recorrendo depois a outro texto bíblico, comenta: “É, pois, a frase do Apóstolo: ‘Deus ama quem dá com alegria’ (2Cor 9,7), quem sente prazer em doar e não semeia escassamente, para não recolher do mesmo modo, mas partilha sem amarguras nem distinções ou sofrimentos, e isto é praticar autenticamente o bem” (31, 8:  ibid.).
No dia da Comemoração dos Defuntos, como disse no início, todos somos chamados a confrontar-nos com o enigma da morte e, por conseguinte, com a questão de como viver bem, como encontrar a felicidade. E este Salmo responde: feliz o homem que doa; feliz o homem que não usa a vida para si mesmo, mas partilha; feliz o homem que é misericordioso, bom e justo; feliz o homem que vive do amor de Deus e do próximo. Assim vivemos bem e não devemos ter receio da morte, porque estamos na felicidade que provém de Deus e que permanece para sempre.

"Feliz o homem": As oito bem-aventuranças de Mt 5,3-12
(Domo da Basílica de São Paulo em Rabat, Malta)

Ap 19,1-2.5-7: cf. Catequeses nn. 95 e 117.

1Pd 2,21-24: cf. Catequeses nn. 96 e 118.

Fonte: Santa Sé (02 de novembro de 2005).

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