“Nós pregamos Cristo
crucificado, poder e sabedoria de Deus” (cf. 1Cor 1,23-24)
Nas postagens anteriores da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, iniciamos um estudo sobre a leitura
da Primeira Carta de São Paulo aos
Coríntios (1Cor) nas celebrações
do Rito Romano.
Após uma breve introdução, analisamos sua leitura sob o critério
da composição harmônica - sintonia com o tempo ou a festa litúrgica [1] - na
Celebração Eucarística e nos demais sacramentos. Nesta postagem prosseguiremos
essa análise com os sacramentais e a Liturgia das Horas.
Para acessar a primeira parte da pesquisa, clique aqui; para acessar a segunda parte, clique aqui.
2. Leitura litúrgica
de 1Cor: Composição harmônica
c) Sacramentais
Como vimos em nossa postagem anterior, o único sacramento onde
não são indicadas leituras da Primeira
Carta aos Coríntios é a Ordem. Porém, nosso livro aparece em diversos
sacramentais relacionados às “vocações” e “ministérios”:
- na Admissão às Ordens
Sacras se propõem ad libitum (à
escolha) dois textos: 1Cor 9,16-19.22-23,
exortando a anunciar o Evangelho, e 1Cor
12,4-11, sobre os ministérios a serviço da unidade [2].
- na Instituição de Leitores
pode ser proclamado o texto de 1Cor
2,1-5 [3], na qual Paulo testemunha que foi a Corinto “anunciar o mistério de Deus”, que é também a função do leitor ao
proclamar a Palavra de Deus na assembleia litúrgica.
- na Instituição de Acólitos
são propostos os dois textos eucarísticos da Carta, indicados para a Solenidade
de Corpus Christi e para o culto
eucarístico, como vimos nas postagens anteriores: 1Cor 10,16-17, sobre a comunhão no mesmo pão e no mesmo cálice, e 1Cor 11,23-26, a mais antiga narrativa
da instituição da Eucaristia [4].
- no novo rito da Instituição
de Catequistas (De Institutione
Catechistarum), promulgado pela Congregação para o Culto Divino em dezembro
de 2021 (ainda sem tradução oficial para o português do Brasil), propõe-se
dentre as opções de leituras o texto de 1Cor
1,22-31, o “Evangelho da cruz” de Paulo [5]. O rito, com efeito, prevê a
entrega de uma cruz aos novos catequistas.
- na Consagração das
virgens e na Profissão religiosa,
celebrações que compartilham os mesmos textos bíblicos, há duas opções de
textos à escolha: 1Cor 1,22-31, como
acima, e 1Cor 7,25-35, o elogio da
virgindade [6].
Na sequência há quatro sacramentais ligados ao espaço
sagrado nos quais propostas leituras da nossa Carta:
- Rito da colocação
da pedra fundamental ou início da construção da igreja: 1Cor 10,1-10 [7], onde
Paulo associa Cristo com o rochedo de onde brotou água para saciar a sede do
povo no deserto (cf. Nm 20,1-11);
- Dedicação de igreja:
1Cor 3,9c-11.16-17 [8], com a
afirmação de que nós somos o “santuário
de Deus”;
- Dedicação do altar:
1Cor 10,16-21 [9], a indicação de que
participar da mesa do Senhor é entrar em comunhão com Ele;
- Bênção de cálice e
patena: os dois textos eucarísticos da Carta, como vimos anteriormente: 1Cor 10,14-22a e 1Cor 11,23-26 [10].
Imagem de “Jesus Misericordioso” formada por fotos de jovens do mundo todo N'Ele formamos um só corpo (1Cor 12) |
Por fim, em relação aos sacramentais, encontramos leituras
de 1Cor à escolha em nove formulários
do Ritual de Bênçãos:
- Bênção de famílias:
1Cor 12,12-14, a imagem do corpo
formado de muitos membros, aqui aplicado à família; ou 1Cor 12,31b–13,7, um trecho do “hino da caridade” [11];
- Bênção do casal em
aniversário de casamento: 1Cor
1,4-9 [12], a ação de graças do início da Carta: “Dou graças continuamente a Deus pela graça divina que vos foi concedida
em Cristo Jesus...”, aqui interpretada como a graça do sacramento do
Matrimônio;
- Bênção de crianças
- forma breve: 1Cor 14,20 [13],
exortação a sermos adultos no julgamento, crianças quanto à ausência de
malícia;
- Bênção de noivos:
1Cor 13,4-13 [37], parte do “hino da
caridade” [14];
- Bênção da pedra
fundamental de um edifício: 1Cor
3,9-11 [15], texto no qual Paulo afirma que somos a “edificação de Deus” sobre o fundamento que é Cristo;
- Bênção de um novo
seminário: 1Cor 1,26–2,5, perícope
na qual o Apóstolo recorda a sua vocação: “Cheguei
a vós para vos anunciar o mistério de Deus”; ou 1Cor 9,7-27, com o convite à missão: “Ai de mim se eu não pregar o Evangelho!” [16];
- Bênção de
instalações para educação física e atividades esportivas: nesta bênção
temos três leituras sugeridas da nossa Carta: 1Cor 9,24-27, com metáforas esportivas para falar da busca da
santidade (corrida, luta); 1Cor 3,16-17
ou 1Cor 6,19-20, exortações sobre o
valor do corpo, “templo de Deus” [17];
- Bênção de cruz
exposta à veneração pública: 1Cor
2,1-5, texto no qual o Apóstolo sintetiza sua mensagem no anúncio do Cristo
Crucificado [18];
- Bênção de objetos
de devoção: aqui são propostas duas opções de leituras [19]:
1Cor 13,8-13, um
trecho do “hino da caridade”, quando Paulo afirma que “agora nós vemos num espelho, confusamente”, pois os objetos
devocionais são símbolos das realidades que um dia contemplaremos face a face;
1Cor 15,45-50,
também sobre a função pedagógica dos objetos de devoção: agora trazemos a
imagem do “homem terreno”, até que
cheguemos ao “homem celeste”.
d) Liturgia das Horas
Em nossa análise da leitura em composição harmônica da Primeira Carta aos Coríntios na Liturgia
das Horas, distinguiremos as leituras
longas, proferidas no Ofício das Leituras, e as leituras breves, proferidas nas outras Horas. Começamos pelas leituras longas, que são oito:
Primeiramente, no Ofício
das Leituras da Solenidade da Santíssima Trindade, no domingo após o
Pentecostes, lemos 1Cor 2,1-16 [20],
trecho no qual Paulo ensina que é o Espírito Santo que nos dá o conhecimento de
Deus: “recebemos o Espírito que vem de
Deus, para que conheçamos os dons da graça que Deus nos concedeu” (v. 12).
Passando às celebrações dos santos, encontramos dois textos
da nossa Carta no Comum dos Apóstolos, conforme os tempos litúrgicos:
- no Ofício das
Leituras do Comum dos Apóstolos no Advento, Natal e Quaresma lemos 1Cor 1,18–2,5 [21], o “Evangelho da
cruz” que foi anunciado pelos Apóstolos;
- no Ofício das
Leituras do Comum dos Apóstolos no Tempo Comum lê-se 1Cor 4,1-16 [22], sobre a missão dos Apóstolos, “servidores de Cristo e administradores dos
mistérios de Deus”;
No Ofício das Leituras
da Festa de Santo André, no dia 30 de novembro, que pode cair tanto no
Advento quanto no Tempo Comum, lê-se sempre 1Cor
1,18–2,5 [23], como acima. Essa escolha faz eco aos Atos de André, texto apócrifo no qual o Apóstolo faz uma oração em
honra da cruz antes de ser martirizado [24].
Crucificado rodeado pelas imagens do martírio dos Apóstolos (Frans Francken II) |
No Ofício das
Leituras do Comum dos Doutores da Igreja no Tempo Pascal, por sua vez, a
Igreja nos propõe o texto de 1Cor
2,1-16 [25], sobre a sabedoria de Deus, dom do Espírito.
Para o Ofício das
Leituras do Comum das Virgens é indicada sempre a mesma leitura: 1Cor 7,25-40 [26], naturalmente com o
elogio da virgindade feito por Paulo.
No Comum dos Santos: para
os santos que se dedicaram às obras de caridade lê-se no Ofício das Leituras do Tempo Comum o
texto de 1Cor 12,31–13,13 [27], o célebre
“hino da caridade”, que exprime a essência da santidade.
Por fim, no Ofício das
Leituras dos fiéis defuntos, há três opções de leitura à escolha, independentemente
do tempo litúrgico, sendo duas da nossa Carta: 1Cor 15,12-34 ou 1Cor 15,35-57
[28], ambas professando a fé na ressurreição dos mortos.
Concluídas as leituras
longas da Carta na Liturgia das Horas, passamos agora às leituras breves, bem mais numerosas,
proferidas nas Laudes, na Hora Média e nas Vésperas.
Consideraremos nesta postagem as leituras breves do nosso
escrito nos tempos do Advento, da Quaresma e da Páscoa. Iniciamos com o Tempo do Advento, no qual temos duas
ocorrências de 1Cor:
- Vésperas das
terças-feiras do Advento até a III semana e do dia 20 de dezembro: 1Cor 1,7b-9 [29], a promessa de que Deus
nos dará o dom da perseverança até a vinda de Jesus Cristo;
- Vésperas das
quartas-feiras do Advento até a III semana e do dia 22 de dezembro: 1Cor 4,5 [30], exortando a aguardar a
vinda do Senhor, que julgará a todos.
Na Quaresma, por
sua vez, são cinco as leituras da Primeira
Carta aos Coríntios:
- II Vésperas dos Domingos
I-IV da Quaresma: 1Cor 9,24-25 [31],
com a metáfora esportiva, Paulo nos exorta a correr em busca da “coroa imperecível”: a santidade;
- Terças-feiras da V
semana da Quaresma e da Semana Santa: leem-se aqui quatro textos de 1Cor, nas três Horas Médias e nas
Vésperas:
9h: 1Cor 1,18-19: a cruz é a força para os
que se salvam;
12h: 1Cor 1,22-24: o Cristo crucificado é
poder e sabedoria de Deus;
15h: 1Cor 1,25.27a: Deus escolheu o estúpido
para confundir os sábios;
Vésperas: 1Cor 1,27b-30: Deus escolheu o fraco
para confundir os fortes [32].
“Ecce Homo” (Juan de Juanes) Cristo, o “homem das dores”, é o “fraco que confunde os fortes” |
Quanto ao Tempo Pascal, são seis as leituras breves do
nosso livro:
- Hora Média (9h) dos
Domingos I-VII do Tempo Pascal: 1Cor
15,3b-5 [33], com o querigma paulino
(Cristo morreu e foi sepultado; ressuscitou e apareceu aos Apóstolos);
- Hora Média (9h) das
quintas-feiras do Tempo Pascal e do Domingo de Pentecostes: 1Cor 12,13 [34], a memória do Batismo,
pelo qual o Espírito nos une num só corpo;
- Hora Média (15h)
das sextas-feiras do Tempo Pascal: 1Cor
5,7-8 [35], exortação a lançar fora o “fermento
da maldade” para celebrar a festa com os “pães ázimos da sinceridade e verdade”, em comunhão com Cristo, “nosso cordeiro pascal”;
- Hora Média (12h)
dos sábados do Tempo Pascal: 1Cor
15,20-22 [36], recordação da Ressurreição de Cristo e promessa da nossa
ressurreição: “como em Adão todos morrem,
assim também em Cristo todos reviverão”;
Por fim, nas Vésperas da última semana da Páscoa, as
leituras são pneumatológicas (dedicadas ao Espírito Santo), em preparação à
Solenidade de Pentecostes:
- Vésperas da
quarta-feira da VII semana do Tempo Pascal: 1Cor 2,9-10 [37], recordando que é o Espírito que nos revela o
mistério de Deus;
- Vésperas da
quinta-feira da VII semana do Tempo Pascal: 1Cor 6,19-20 [38], Paulo ensina que nosso corpo é santuário do
Espírito Santo.
Vitral representando o Espírito Santo, dom de Deus |
Encerramos assim a terceira parte do nosso estudo sobre a
leitura da Primeira Carta aos Coríntios na Liturgia de Rito
Romano. A extensão e a importância do escrito demandam uma quarta parte, na
qual, após concluir as leituras em composição harmônica na Liturgia das Horas, analisaremos
sua leitura semicontínua.
[Atualização: Para acessar a quarta e última parte da pesquisa, clique aqui]
Notas:
[1] cf. ALDAZÁBAL,
José. A Mesa da Palavra I: Elenco das
Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 2000, pp. 105-106.
[3] ibid., p. 67.
[4] ibid., p. 84.
[5] Fonte: Site da Santa Sé.
[6] LECIONÁRIO IV, pp. 137-138.
[7] ibid., p. 169.
[8] ibid., p. 178.
[9] ibid., p. 193.
[10] ibid., pp.
197-198.
[11] RITUAL DE
BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, pp. 25-26.
[12] ibid., p. 47.
[13] ibid., p. 66.
[14] ibid., p. 76;
RITUAL DO MATRIMÔNIO. Tradução portuguesa
para o Brasil da 2ª edição típica. São Paulo: Paulus, 2007, p. 131.
[15] RITUAL DE
BÊNÇÃOS, p. 169.
[16] ibid., pp.
180-181.
[17] ibid., pp.
233-234. Vale recordar que em Corinto celebravam-se a cada dois anos os jogos
ístmicos, que só perdiam em importância para os jogos olímpicos, o que
justifica as metáforas “esportivas” usadas pelo Apóstolo (cf. 2Tm 4,7-8).
[18] ibid., p.
353. Uma cruz para devoção privada, por sua vez, é abençoada com o formulário para objetos de
devoção.
[19] ibid., p.
431.
[20] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 528.
[21] ibid., v. I, p.
1177; v. II, p. 1701. No Tempo Pascal lê-se sempre os Atos dos Apóstolos.
[22] ibid., v.
III, p. 1553; v. IV, p. 1565.
[23] ibid., v. I,
p. 1019; v. IV, p. 1479.
[24] cf. PROENÇA,
Eduardo de [org.]. Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, vol. 2. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pp. 610-611.
[25] OFÍCIO DIVINO, v. II, p. 1817.
[26] ibid., v. I,
p. 1285; v. II, p. 1835; v. III, p. 1661; v. IV, p. 1673.
[27] ibid., v.
III, p. 1737; v. IV, p. 1749.
[28] ibid., v. I,
pp. 1282-1383; v. II, pp. 1936-1937; v. III, p. 1760-1761; v. IV, pp.
1772.1773. A 3ª opção de leitura é 2Cor 4,16–5,10.
[29] ibid., v. I,
pp. 135.188.245.313.
[30] ibid., v. I,
pp. 141.195.252.322.
[31] ibid., v. II,
pp. 79.136.193.250.
[32] ibid., v. II,
pp. 325-326.387-388.
[33] ibid., v. II,
pp. 474.630.683.739.790.872. No Brasil, o VII Domingo da Páscoa é substituído
pela Solenidade da Ascensão do Senhor, transferida da quinta-feira.
[34] ibid., v. II,
pp. 540.605.659.714.767.815.899.934. Vale recordar que em alguns lugares na
quinta-feira da VI semana da Páscoa celebra-se a Solenidade da Ascensão do
Senhor.
[35] ibid., v. II,
pp. 552.613.666.722.775.854.907.
[36] ibid., v. II,
pp. 564.621.674.730.782.864.914.
[37] ibid., v. II,
p. 894.
[38] ibid., v. II,
p. 900.
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