Em
nossas recentes postagens da série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, analisamos a presença da Primeira
Carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor)
nas celebrações do Rito Romano. Dentre os textos mais célebres desse importante
escrito encontra-se o chamado “hino à caridade” (1Cor 13,1-13).
Em
sua Exortação Apostólica Amoris Laetitia (A alegria do amor) sobre o amor na família,
promulgada em 19 de março de 2016 como fruto dos Sínodos de 2014 e 2015, o Papa
Francisco reflete sobre o núcleo desse hino (vv. 4-7), inclusive remetendo-se
ao seu texto original, em grego.
O Papa Francisco abençoa com o Evangeliário durante o Sínodo (2015) A Sagrada Família, representada na capa, é modelo para as famílias |
Reproduzimos
a seguir sua meditação, que se encontra nos nn. 89-119 da Exortação, integrando
o capítulo IV, intitulado “O amor no
Matrimônio”:
Papa Francisco
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia
Sobre o amor na família
Capítulo IV: O amor no Matrimônio
89. Tudo o que foi dito não é suficiente para exprimir o Evangelho do Matrimônio
e da família, se não nos detivermos particularmente a falar do amor. Com
efeito, não poderemos encorajar um caminho de fidelidade e doação recíproca, se
não estimularmos o crescimento, a consolidação e o aprofundamento do amor
conjugal e familiar. De fato, a graça do sacramento do Matrimônio destina-se, antes
de tudo, «a aperfeiçoar o amor dos cônjuges» [1]. Também
aqui é verdade que «ainda que eu tenha
tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que
eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se
não tiver amor de nada me vale» (1Cor 13,2-3). Mas a palavra
«amor», uma das mais usadas, muitas vezes aparece desfigurada [2].
O nosso amor
quotidiano
90. No chamado hino à caridade escrito por São Paulo vemos algumas
características do amor verdadeiro: «O
amor é paciente, o amor é benevolente; não é invejoso, não é arrogante nem
orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não
se irrita, nem guarda ressentimento, não se alegra com a injustiça, mas
rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta»
(1Cor 13,4-7).
Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos partilham dia-a-dia
entre si e com os seus filhos. Por isso, vale a pena deter-se a esclarecer o
significado das expressões deste texto, tendo em vista uma aplicação à
existência concreta de cada família.
Paciência
91. A primeira palavra usada é «macrothymei» (μακροθυμεῖ). A sua
tradução não é simplesmente «suporta tudo», porque esta ideia é expressa no
final do v. 7. O sentido encontra-se na tradução grega do texto do Antigo
Testamento onde se diz que Deus é «lento para a ira» (Nm 14,18; cf. Ex 34,6). Uma pessoa
mostra-se paciente quando não se deixa levar pelos impulsos interiores e evita
agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-Lo
também na vida familiar. Os textos onde Paulo usa este termo devem ser lidos à
luz do Livro da Sabedoria (cf. Sb 11,23; 12,2.15-18): ao mesmo
tempo em que se louva a moderação de Deus para dar tempo ao arrependimento,
insiste-se no seu poder que se manifesta quando atua com misericórdia. A
paciência de Deus é exercício da misericórdia de Deus para com o pecador e
manifesta o verdadeiro poder.
92. Ter paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente, nem
tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objetos. O problema
surge quando exigimos que as relações sejam idílicas, ou que as pessoas sejam
perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que se cumpra unicamente
a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a reagir com
agressividade. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para
responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver, antissociais
incapazes de dominar os impulsos, e a família se tornará um campo de batalha.
Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: «Toda a espécie de azedume, raiva, ira,
gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade» (Ef 4,31).
Esta paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também
tem direito a viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim,
se altera os meus planos, se me molesta com o seu modo de ser ou com as suas
ideias, se não é em tudo como eu esperava. O amor possui sempre um sentido de
profunda compaixão, que leva a aceitar o outro como parte deste mundo, mesmo
quando age de modo diferente daquilo que eu desejaria.
Atitude de serviço
93. Vem depois a palavra chrestéuetai (χρηστεύεται) - a única vez que
aparece em toda a Bíblia -, que deriva de chrestós (χρηστὸς),
pessoa boa, que mostra a sua bondade nas ações. Mas pelo lugar onde está, ou
seja, em estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu complemento. Deste
modo Paulo pretende esclarecer que a «paciência», nomeada em primeiro lugar,
não é uma postura totalmente passiva, mas há de ser acompanhada por uma
atividade, uma reação dinâmica e criativa perante os outros. Indica que o amor
beneficia e promove os outros. Por isso, traduz-se como «benevolente».
94. No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não é
apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o verbo «amar» tem
em hebraico: «fazer o bem». Como dizia Santo Inácio de Loyola, «o amor deve ser
colocado mais nas obras do que nas palavras» [3]. Assim
poderá mostrar toda a sua fecundidade, permitindo-nos experimentar a felicidade
de dar, a nobreza e grandeza de doar-se superabundantemente, sem calcular nem
reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir.
Curando a inveja
95. Em seguida rejeita-se, como contrária ao amor, uma atitude expressa
como zeloi (ζηλοῖ), ciúme ou inveja. Significa que, no amor,
não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro (cf. At 7,9; 17,5). A inveja é uma tristeza pelo
bem alheio, demonstrando que não nos interessa a felicidade dos outros, porque
estamos concentrados exclusivamente no nosso bem-estar. Enquanto o amor nos faz
sair de nós mesmos, a inveja leva a centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro
amor aprecia os sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, libertando-se
do sabor amargo da inveja. Aceita que cada um tenha dons distintos e caminhos
diferentes na vida; e, consequentemente, procura descobrir o seu próprio
caminho para ser feliz, deixando que os outros encontrem o deles.
96. Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos
mandamentos da Lei de Deus: «Não desejarás a casa do teu próximo. Não desejarás
a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e
tudo o que é do teu próximo» (Ex 20,17). O amor leva-nos a uma
apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu direito à felicidade.
Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo «para nosso
usufruto» (1Tm 6,17), e consequentemente aceito, no meu íntimo, que
ela possa usufruir de um momento bom. Entretanto, esta mesma raiz do amor leva-me
a rejeitar a injustiça de alguns terem muito e outros não terem nada, ou
induz-me a procurar que os próprios “descartados” pela sociedade possam viver
um pouco de alegria. Mas isto não é inveja; são anseios de equidade.
Sem ser arrogante nem
se orgulhar
97. Segue-se o termo perpereuetai (περπερεύεται), que indica vanglória, desejo de se mostrar
superior para impressionar os outros com atitude pedante e um pouco agressiva.
Quem ama não só evita falar muito de si mesmo, mas, porque está centrado nos
outros, sabe manter-se no seu lugar sem pretender estar no centro. A palavra
seguinte - physioutai (φυσιοῦται) - é muito semelhante,
indicando que o amor não é arrogante. Literalmente afirma que não se
«engrandece» diante dos outros; mas indica algo de mais sutil. Não se trata
apenas de uma obsessão por mostrar as próprias qualidades; é pior: perde-se o
sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê mais
«espiritual» ou «sábia». Paulo usa este verbo em outras ocasiões, para dizer,
por exemplo, que «a ciência incha», ao passo que «a caridade edifica» (1Cor 8,1).
Por outras palavras, alguns se julgam grandes porque sabem mais do que os
outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na
realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está
atento aos fracos. Em outro versículo, usa-o para criticar aqueles que «se
tornaram insolentes» (1Cor 4,18), mas, na realidade, têm mais
palavreado do que verdadeiro «poder» do Espírito (cf. 1Cor 4,19).
98. É importante que os cristãos vivam isto no seu modo de tratar os
familiares pouco formados na fé, frágeis ou menos firmes nas suas convicções.
Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas que, no seio da família, se consideram
mais desenvolvidas, tornam-se arrogantes e insuportáveis. A atitude de
humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder
compreender, desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o
orgulho e cultivar a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos que, no
mundo do poder, cada um procura dominar o outro, e acrescentava: «não seja
assim entre vós» (Mt 20,26). A lógica do amor cristão não é a de
quem se considera superior aos outros e precisa fazer-lhes sentir o seu poder,
mas aquela pela qual «quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso
servo» (Mt 20,27). Na vida familiar, não pode reinar a lógica do
domínio de uns sobre os outros, nem a competição para ver quem é mais
inteligente ou poderoso, porque esta lógica acaba com o amor. Vale também para
a família o seguinte conselho: «Revesti-vos todos de humildade no trato uns com
os outros, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes» (1Pd 5,5).
Amabilidade
99. Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do
termo aschemonei (ἀσχημονεῖ).
Significa que o amor não age rudemente, não atua de forma inconveniente, não se
mostra duro no trato. Os seus modos, as suas palavras, os seus gestos são
agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta fazer sofrer os outros. A
cortesia «é uma escola de sensibilidade e altruísmo», que exige que a pessoa
«cultive a sua mente e os seus sentidos, aprenda a ouvir, a falar e, em certos
momentos, a calar» [4]. Ser amável não é um
estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigências
irrenunciáveis do amor, por isso «todo o ser humano está obrigado a ser afável
com aqueles que o rodeiam» [5]. Diariamente
«entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa existência, exige a
delicadeza de uma atitude não invasiva, que renova a confiança e o respeito.
(...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto mais exigirá o respeito
pela liberdade e a capacidade de esperar que o outro abra a porta do seu
coração» [6].
O Papa Francisco abençoa dois jovens recém-casados |
100. A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro,
requer-se um olhar amável pousado nele. Isto não é possível quando reina um
pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros alheios, talvez para
compensar os próprios complexos. Um olhar amável faz com que nos detenhamos
menos nos limites do outro, podendo assim tolerá-lo e unirmo-nos num projeto
comum, apesar de sermos diferentes. O amor amável gera vínculos, cultiva laços,
cria novas redes de integração, constrói um tecido social firme. Deste modo,
uma pessoa protege-se a si mesma, pois, sem sentido de pertença, não se pode
sustentar uma entrega aos outros, acabando cada um por buscar apenas as
próprias conveniências, e a convivência torna-se impossível. Uma pessoa antissocial
julga que os outros existem para satisfazer as suas necessidades e, quando o
fazem, cumprem apenas o seu dever. Neste caso, não haveria espaço para a
amabilidade do amor e a sua linguagem. A pessoa que ama é capaz de dizer
palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam.
Vejamos, por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas: «Filho, tem
confiança!» (Mt 9,2). «Grande é a tua fé!» (Mt 15,28).
«Levanta-te!» (Mc 5,41). «Vai em paz» (Lc 7,50). «Não
temais!» (Mt 14,27). Não são palavras que humilham, angustiam,
irritam, desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem amável de
Jesus.
Desprendimento
101. Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro
amar-se a si mesmo. Todavia este hino à caridade afirma que o amor «não procura
o seu próprio interesse», ou «não procura o que é seu» (οὐ ζητεῖ τὰ ἑαυτῆς).
Esta expressão aparece ainda em outro texto: «Não tenha cada um em vista os
próprios interesses, mas também os interesses dos outros» (Fl 2,4).
Perante uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se evitar dar
prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si aos
outros. Certa prioridade do amor a si mesmo só se pode entender como condição
psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de amar a si mesma sente
dificuldade em amar os outros: «Para quem será bom aquele que é mau para si
mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo» (Eclo 14,5-6).
102. Mas o próprio Tomás de Aquino explicou «ser mais próprio da
caridade querer amar do que querer ser amado» [7], e
que, de fato, «as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do que ser
amadas» [8]. Por isso, o amor pode superar a
justiça e transbordar gratuitamente «sem nada esperar em troca» (Lc 6,35),
até chegar ao amor maior que é «dar a vida» pelos outros (Jo 15,13).
Mas será possível um desprendimento assim, que permite dar gratuitamente e dar
até ao fim? Sem dúvida, porque é o que pede o Evangelho: «Recebestes de graça,
dai de graça» (Mt 10,8).
Sem violência interior
103. Se a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, que
evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros, agora
aparece outra palavra - paroxynetai (παροξύνεται) - que diz
respeito a uma reação interior de indignação provocada por algo exterior.
Trata-se de uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe na defensiva
perante os outros, como se fossem inimigos molestos a evitar. Alimentar esta
agressividade íntima, de nada aproveita. Serve apenas para nos adoecer,
acabando por nos isolar. A indignação é saudável quando nos leva a reagir
perante uma grave injustiça; mas é prejudicial quando tende a impregnar todas
as nossas atitudes para com os outros.
104. O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista (cf. Mt 7,5), e nós,
cristãos, não podemos ignorar o convite constante da Palavra de Deus para não
se alimentar a ira: «Não te deixes vencer pelo mal» (Rm 12,21);
«não nos cansemos de fazer o bem» (Gl 6,9). Uma coisa é sentir a
força da agressividade que irrompe, e outra é consentir nela, deixar que se
torne uma atitude permanente: «Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se
ponha sobre o vosso ressentimento» (Ef 4,26). Por isso, nunca se
deve terminar o dia sem fazer as pazes na família. «E como devo fazer as pazes?
Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno gesto,
uma coisa de nada. É suficiente uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais
que o dia em família termine sem fazer as pazes» [9]. A
reação interior perante uma moléstia que nos causam os outros, deveria ser,
antes de tudo, abençoar no coração, desejar o bem do outro, pedir a Deus que o
liberte e cure. «Respondei com palavras de bênção, pois a isto fostes chamados:
a herdar uma bênção» (1Pd 3,9). Se tivermos de lutar contra um mal,
façamo-lo; mas sempre digamos «não» à violência interior.
Santos Luís e Zélia Martin, pais de Santa Teresinha: Canonizados pelo Papa Francisco durante o Sínodo (2015), modelo para as famílias |
Perdão
105. Se permitirmos a entrada de um mau sentimento no nosso íntimo,
damos lugar ao ressentimento que se aninha no coração. A frase logizetai
to kakon (λογίζεται τὸ κακόν) significa que se «tem em conta o mal», «o
traz gravado», ou seja, está ressentido. O contrário disto é o perdão; perdão
fundado em uma atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia e
encontrar desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: «Perdoa-lhes, Pai,
porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Entretanto, a tendência
costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais maldades,
supor todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai crescendo e
cria raízes. Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge pode danificar o
vínculo de amor e a estabilidade familiar. O problema é que, às vezes,
atribui-se a tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-se cruel perante
qualquer erro do outro. A justa reivindicação dos próprios direitos torna-se
mais uma persistente e constante sede de vingança do que uma sã defesa da
própria dignidade.
106. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos, é possível e desejável
o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. A verdade é que «a comunhão familiar
só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito de sacrifício. Exige,
de fato, de todos e de cada um, pronta e generosa disponibilidade à
compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação. Nenhuma família ignora
como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos agridem, de forma violenta
e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e variadas formas de divisão
da vida familiar» [10].
107. Hoje sabemos que, para poder perdoar, precisamos passar pela
experiência libertadora de nos compreendermos e perdoarmos a nós mesmos. Quantas
vezes os nossos erros ou o olhar crítico das pessoas que amamos nos fizeram
perder o amor a nós próprios; isto acaba por nos levar a acautelar-nos dos outros,
esquivando-nos do seu afeto, enchendo-nos de suspeitas nas relações
interpessoais. Então, poder culpar os outros se torna um falso alívio. Faz
falta rezar com a própria história, aceitar a si mesmo, saber conviver com as
próprias limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude
com os outros.
108. Mas isto pressupõe a experiência de ser perdoados por Deus,
justificados gratuitamente e não pelos nossos méritos. Fomos envolvidos por um
amor prévio a qualquer obra nossa, que sempre dá uma nova oportunidade, promove
e incentiva. Se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o carinho do
Pai não se deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar
aos outros, ainda que tenham sido injustos para conosco. Caso contrário, a
nossa vida em família deixará de ser um lugar de compreensão, companhia e
incentivo, e se tornará um espaço de permanente tensão ou de castigo mútuo.
Alegrar-se com os
outros
109. A expressão chairei epi te adikia (χαίρει ἐπὶ τῇ ἀδικίᾳ) indica algo de
negativo arraigado no segredo do coração da pessoa. É a atitude venenosa de
quem, ao ver feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase é completada pela
seguinte, que o diz de forma positiva: synchairei te aletheia (συγχαίρει δὲ τῇ ἀληθείᾳ) - rejubila
com a verdade. Em outras palavras, alegra-se com o bem do outro quando se
reconhece a sua dignidade, quando se apreciam as suas capacidades e as suas
boas obras. Isto é impossível para quem sente a necessidade de estar sempre a
comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge, até ao ponto de se
alegrar secretamente com os seus fracassos.
110. Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo outro, ou
quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso com alegria e,
assim, dá glória a Deus, porque «Deus ama quem dá com alegria» (2Cor 9,7),
nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com a felicidade do outro.
Se não alimentamos a nossa capacidade de rejubilar com o bem do outro,
concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a
viver com pouca alegria, porque - como disse Jesus - «a felicidade está mais em
dar do que em receber» (At 20,35). A família deve ser sempre o
lugar onde uma pessoa que consegue algo de bom na vida, sabe que ali se vão
congratular com ela.
Tudo desculpa
111. O elenco é completado com quatro expressões que falam de uma totalidade:
«tudo». Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Assim se destaca
vigorosamente o dinamismo contracorrente do amor, capaz de enfrentar qualquer
coisa que o possa ameaçar.
112. Em primeiro lugar, diz-se que «tudo desculpa», «panta stegei»
(πάντα στέγει). É diferente de «não ter em conta o mal», porque este termo tem
a ver com o uso da língua; pode significar «guardar silêncio» a propósito do
mal que possa haver na outra pessoa. Implica limitar o juízo, conter a
inclinação para se emitir uma condenação dura e implacável: «Não condeneis e
não sereis condenados» (Lc 6,37). Embora isto vá contra o uso que
habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: «Não faleis mal
uns dos outros, irmãos» (Tg 4,11). Deter-se a danificar a imagem do
outro é uma maneira de reforçar a própria, de descarregar ressentimentos e
invejas, sem se importar com o dano causado. Muitas vezes esquece-se que a
difamação pode ser um grande pecado, uma grave ofensa a Deus, quando afeta
seriamente a boa fama dos outros, causando-lhes danos muito difíceis de
reparar. Por isso a Palavra de Deus se mostra tão dura com a língua, dizendo
que «é um mundo de iniquidade [que] contamina todo o corpo» (Tg 3,6),
«um mal incontrolável, carregado de veneno mortal» (Tg 3,8). Se «com
ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus» (Tg 3,9),
o amor faz o contrário, defendendo a imagem dos outros e com uma delicadeza tal
que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos. Ao defender a lei divina, é
preciso nunca esquecer esta exigência do amor.
113. Os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro,
procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e erros.
Em todo o caso, guardam silêncio para não danificar a sua imagem. Mas não é
apenas um gesto externo: brota de uma atitude interior. Também não é a
ingenuidade de quem pretende não ver as dificuldades e os pontos fracos do
outro, mas a perspectiva ampla de quem coloca estas fraquezas e erros no seu
contexto; lembra-se de que estes defeitos constituem apenas uma parte, não são
a totalidade do ser do outro: um fato desagradável no relacionamento não é a
totalidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com simplicidade,
que todos somos uma complexa combinação de luzes e sombras. O outro não é
apenas aquilo que me incomoda; é muito mais do que isso. E, pela mesma razão,
não lhe exijo que seja perfeito o seu amor para apreciá-lo: ama-me como é e
como pode, com os seus limites, mas o fato de o seu amor ser imperfeito não
significa que seja falso ou que não seja real. É real, mas limitado e terreno.
Por isso, se eu lhe exigir demais, de alguma maneira me fará saber, pois não
poderá nem aceitará desempenhar o papel de um ser divino nem estar ao serviço
de todas as minhas necessidades. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e
sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado.
Confia
114. «Panta pisteuei» (πάντα πιστεύει), «tudo crê». Pelo
contexto, não se deve entender esta «fé» em sentido teológico, mas no sentido
comum de «confiança». Não se trata apenas de não suspeitar que o outro esteja
mentindo ou enganando; esta confiança básica reconhece a luz acesa por Deus que
se esconde por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as cinzas.
115. É precisamente esta confiança que torna possível uma relação em
liberdade. Não é necessário controlar o outro, seguir minuciosamente os seus
passos, para evitar que fuja dos meus braços. O amor confia, deixa em
liberdade, renuncia a controlar tudo, a possuir, a dominar. Esta liberdade, que
possibilita espaços de autonomia, abertura ao mundo e a novas experiências,
consente que a relação se enriqueça e não se transforme numa endogamia sem
horizontes. Assim, ao reencontrarem-se, os cônjuges podem viver a alegria de
partilhar o que receberam e aprenderam fora do circuito familiar. Ao mesmo
tempo torna possível a sinceridade e a transparência, porque uma pessoa, quando
sabe que os outros confiam nela e apreciam a bondade basilar do seu ser,
mostra-se como é, sem dissimulações. Pelo contrário, quando alguém sabe que
sempre suspeitam dele, julgam-no sem compaixão e não o amam incondicionalmente,
preferirá guardar os seus segredos, esconder as suas quedas e fraquezas, fingir
o que não é. Concluindo, uma família onde reina uma confiança sólida, carinhosa
e, aconteça o que acontecer, sempre se volta a confiar, permite o florescimento
da verdadeira identidade dos seus membros, fazendo com que se rejeite
espontaneamente o engano, a falsidade e a mentira.
Espera
116. Panta elpizei
(πάντα ἐλπίζει): não desespera do futuro. Ligado à palavra anterior,
indica a esperança de quem sabe que o outro pode mudar; sempre espera que seja
possível um amadurecimento, um inesperado surto de beleza, que as
potencialidades mais recônditas do seu ser germinem algum dia. Não significa
que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que nem tudo aconteça como se
deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas tortas e saiba tirar algum
bem dos males que não se conseguem vencer nesta terra.
117. Aqui aparece a esperança no seu sentido pleno, porque inclui a
certeza de uma vida para além da morte. Aquela pessoa, com todas as suas
fraquezas, é chamada à plenitude do Céu: lá, completamente transformada pela Ressurreição
de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas, trevas e patologias; lá, o
verdadeiro ser daquela pessoa resplandecerá com toda a sua potência de bem e
beleza. Isto permite-nos, no meio das moléstias desta terra, contemplar aquela
pessoa com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e aguardar aquela
plenitude que, embora hoje não seja visível, há de receber um dia no Reino
celeste.
Tudo suporta
118. Panta hypomenei (πάντα ὑπομένει) significa que suporta, com espírito positivo,
todas as contrariedades. É manter-se firme no meio de um ambiente hostil. Não
consiste apenas em tolerar algumas coisas molestas, mas é algo mais amplo: uma
resistência dinâmica e constante, capaz de superar qualquer desafio. É amor que
apesar de tudo não desiste, mesmo que todo o contexto convide a outra coisa. Manifesta
uma dose de heroísmo tenaz, de força contra qualquer corrente negativa, uma
opção pelo bem que nada pode derrubar. Isto lembra-me Martin Luther King,
quando reafirmava a opção pelo amor fraterno, mesmo no meio das piores
perseguições e humilhações: «A pessoa que mais te odeia, tem algo de bom nela;
mesmo a nação que mais odeia, tem algo de bom nela; mesmo a raça que mais
odeia, tem algo de bom nela. E, quando chegas ao ponto de fixar o rosto de cada
ser humano e, bem no fundo dele, vês o que a religião chama a “imagem de Deus”,
começas, não obstante tudo, a amá-lo. Não importa o que faça, lá vês a imagem
de Deus. Há um elemento de bondade de que nunca poderás livrar-te. (...) Outra
forma de amares o teu inimigo é esta: quando surge a oportunidade de derrotares
o teu inimigo, aquele é o momento em que deves decidir não o fazer. (...)
Quando te elevas ao nível do amor, da sua grande beleza e poder, a única coisa
que procuras derrotar são os sistemas malignos. Às pessoas que caíram na armadilha
deste sistema, tu ama-as, mas procura derrotar o sistema. (...) Ódio por ódio
só intensifica a existência do ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me
bates, e eu te devolvo a pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante...
obviamente continua-se até ao infinito; simplesmente nunca termina. Em algum
ponto, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa
forte é aquela que pode quebrar a cadeia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém
deve ter bastante fé e moralidade para quebrá-la e injetar dentro da própria
estrutura do universo o elemento forte e poderoso do amor»
[11].
119. Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do amor, que
permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa dominar pelo
ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo de se lamentar ou vingar de
alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que apesar de
tudo não desiste. Deixa-me maravilhado, por exemplo, a atitude das pessoas que,
para se proteger da violência física, tiveram de separar-se do seu cônjuge e
todavia, pela caridade conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos, foram
capazes de procurar o seu bem, mesmo através de terceiros, em momentos de
doença, tribulação ou dificuldade. Isto também é amor que apesar de tudo não
desiste.
Notas:
[1] Catecismo da Igreja Católica,
1641.
[2] cf.
Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est (25 de dezembro de
2005), n. 2.
[3] Exercícios espirituais,
Contemplação para alcançar o amor (230).
[4] Octavio Paz, La llama doble (Barcelona,
1993), 35.
[5] Tomás de Aquino, Summa Theologiae,
II-II, q. 114, art. 2, ad 1.
[6] Francisco, Catequese (13
de maio de 2015).
[7] Summa theologiae,
II-II, q. 27, art. 1, ad. 2.
[8] ibid., II-II,
q. 27, art. 1.
[9] Francisco, Catequese (13
de maio de 2015).
[10] João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris
consortio (22 de novembro de 1981), n. 21.
[11] Sermon delivered at Dexter
Avenue Baptist Church (Montgomery-Alabama, 17 de novembro de 1957).
Observação: No documento completo essas 11 citações correspondem às
notas nn. 104-114.
Fonte: Santa Sé.
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