No
dia 11 de fevereiro, Memória facultativa de Nossa Senhora de Lourdes, a Igreja
recorda o Dia Mundial do Enfermo, instituído pelo Papa São João Paulo II
(†2005) em 1992.
Aproveitamos
a ocasião para reproduzir aqui em nosso blog a Instrução sobre as orações para
alcançar de Deus a cura (Instructio de
orationibus ad obtinendam a Deo sanationem), promulgada pela Congregação
para a Doutrina da Fé em 14 de setembro do ano 2000, Festa da Exaltação da Santa
Cruz.
A
Instrução, também chamada “Ardens
felicitatis” (em referência às suas primeiras palavras: “O anseio de
felicidade”) foi assinada pelo então Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, e expressamente aprovada pelo Papa João Paulo II.
O
documento está diretamente relacionado à Liturgia, sobretudo em sua segunda
parte, na qual, após a fundamentação teológica na primeira parte, apresentam-se
algumas normas práticas. Fica claro na Instrução que não se devem inserir orações de cura não litúrgicas nas celebrações.
Cura de um leproso (Mc 1,40-45 e paralelos) |
Segue,
pois, o texto na íntegra:
Congregação para a Doutrina da Fé
Instrução sobre as orações para alcançar de Deus a cura
Introdução
O
anseio de felicidade, profundamente radicado no coração humano, esteve sempre
associado ao desejo de se libertar da doença e de compreender o seu sentido,
quando se a experimenta. Trata-se de um fenômeno humano que, interessando de
uma maneira ou de outra todas as pessoas, encontra na Igreja particular
ressonância. Esta, de fato, vê a doença como meio de união com Cristo e de
purificação espiritual e, para os que lidam com a pessoa doente, como uma
ocasião de praticar a caridade. Não é só isso porém; como os demais sofrimentos
humanos, a doença constitui um momento privilegiado de oração, seja para pedir
a graça de a receber com espírito de fé e de aceitação da vontade de Deus, seja
também para implorar a cura.
A
oração que implora o restabelecimento da saúde é, pois, uma experiência
presente em todas as épocas da Igreja e naturalmente nos dias de hoje. Mas o
que constitui um fenômeno sob certos aspectos novo é o multiplicar-se de
reuniões de oração, por vezes associadas a celebrações litúrgicas, com o fim de
alcançar de Deus a cura. Em certos casos, que não são poucos, apregoa-se a
existência de curas alcançadas, criando assim a expectativa que o fenómeno se
repita noutras reuniões do género. Em tal contexto, faz-se por vezes apelo a um
suposto carisma de cura.
Essas
reuniões de oração feitas para alcançar curas põem também o problema do seu
justo discernimento sob o ponto de vista litúrgico, nomeadamente por parte da
autoridade eclesiástica, a quem compete vigiar e dar as diretivas oportunas em
ordem ao correto desenrolar das celebrações litúrgicas.
Achou-se,
portanto, conveniente publicar uma Instrução, de acordo com o can. 34 do Código de Direito Canônico, que servisse
sobretudo de ajuda aos Ordinários do lugar para melhor poderem orientar os
fiéis neste campo, favorecendo o que nele haja de bom e corrigindo o que deva
ser evitado. Era porém necessário que as disposições disciplinares tivessem
como ponto de referência um fundado enquadramento doutrinal que garantisse a
sua justa aplicação e esclarecesse a razão normativa. A tal fim, fez-se
preceder a parte disciplinar com uma parte doutrinal sobre as graças de cura e
as orações para alcançá-las.
I. ASPECTOS DOUTRINAIS
1. Doença e cura: seu significado
e valor na economia da salvação
«O
homem é destinado à alegria, mas todos os dias experimenta variadíssimas formas
de sofrimento e de dor» [1] Por isso, o Senhor, nas suas promessas de redenção,
anuncia a alegria do coração ligada à libertação dos sofrimentos (cf. Is 30,29; 35,19; Br 4,29). Ele é, de fato, «aquele
que liberta de todos os males» (Sb 16,8).
Entre os sofrimentos, os provocados pela doença são uma realidade
constantemente presente na história humana, tornando-se, ao mesmo tempo, objeto
do profundo desejo do homem de se libertar de todo o mal.
No
Antigo Testamento, «Israel tem a experiência de que a doença está misteriosamente
ligada ao pecado e ao mal» [2]. Entre os castigos com que Deus ameaça o povo
pela sua infidelidade, as doenças ocupam espaço de relevo (cf. Dt 28,21-22.27-29.35). O doente que pede a Deus a
cura reconhece que é justamente castigado pelos seus pecados (cf. Sl 37; 40; 106,17-21).
A
doença porém atinge também os justos e o homem interroga- se sobre o porquê. No
livro de Jó, essa interrogação está presente em muitas das suas páginas. «Se é
verdade que o sofrimento tem um sentido de castigo, quando ligado à culpa, já
não é verdade que todo o sofrimento seja consequência da culpa e tenha um
carácter de punição. A figura do justo Jó é uma especial prova disso no Antigo
Testamento. (...) Se o Senhor permite que Jó seja provado com o sofrimento,
fá-lo para demostrar a sua justiça. O sofrimento tem caráter de prova» [3].
A
doença, embora possa ter uma conotação positiva, como demonstração da
fidelidade do justo e meio de reparar a justiça violada pelo pecado, e também
como forma de levar o pecador a arrepender- se, enveredando pelo caminho da
conversão, continua todavia a ser um mal. Por isso, o profeta anuncia os tempos
futuros em que não haverá mais desgraças nem invalidez, e o decurso da vida
nunca mais será interrompido com doenças mortais (cf. Is 35,5-6; 65,19-20).
É
todavia no Novo Testamento que encontra plena resposta a interrogação porque a
doença atinge também os justos. Na atividade pública de Jesus, as suas relações
com os doentes não são casuais, mas constantes. Cura a muitos deles de forma
prodigiosa, tanto que essas curas milagrosas tornam-se uma característica da
sua atividade: «Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinando nas suas
sinagogas, pregando o Evangelho do reino e curando todas as doenças e
enfermidades» (Mt 9,35; cf. 4,23). As curas são sinais da sua
missão messiânica (cf. Lc 7,20-23).
Manifestam a vitória do reino de Deus sobre todas as espécies de mal e
tornam-se símbolo do saneamento integral do homem, corpo e alma. Servem, de
facto, para mostrar que Jesus tem o poder de perdoar os pecados (cf. Mc 2,1-12); são sinais dos
bens salvíficos, como a cura do paralítico de Betsaida (cf. Jo 5,2-9.19-21) e do cego de nascença (cf. Jo 9).
Também
a primeira evangelização, segundo as indicações do Novo Testamento, era
acompanhada de numerosas curas prodigiosas que corroboravam o poder do anúncio
evangélico. Aliás, tinha sido essa a promessa de Jesus Ressuscitado, e as
primeiras comunidades cristãs viam nelas que a promessa se cumpria entre eles:
«Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem: (...) quando impuserem as
mãos sobre os doentes, ficarão curados» (Mc 16,17-18).
A pregação de Filipe na Samaria foi acompanhada de curas milagrosas: «Filipe
desceu a uma cidade da Samaria e começou a pregar o Messias àquela gente. As
multidões aderiam unanimemente às palavras de Filipe, ao ouvi-las e ao ver os
milagres que fazia. De muitos possessos saíam espíritos impuros, soltando
enormes gritos, e numerosos paralíticos e coxos foram curados» (At 8,5-7). São Paulo apresenta o
seu anúncio do Evangelho como sendo caracterizado por sinais e prodígios
realizados com o poder do Espírito: «não ousaria falar senão do que Cristo
realizou por meu intermédio, para levar os gentios à obediência da fé, pela
palavra e pela ação, pelo poder dos sinais e prodígios, pelo poder do Espírito»
(Rm 15,18-19; cf. 1Ts 1,5; 1Cor 2,4-5). Não é por nada arbitrário supor que muitos desses
sinais e prodígios, manifestação do poder divino que acompanhava a pregação,
fossem curas prodigiosas. Eram prodígios que não estavam ligados exclusivamente
à pessoa do Apóstolo, mas que se manifestavam também através dos fiéis: «Aquele
que vos dá o Espírito e realiza milagres entre vós procede assim por cumprirdes
as obras da Lei ou porque ouvistes a mensagem da fé?» (Gl 3,5).
A
vitória messiânica sobre a doença, aliás como sobre outros sofrimentos humanos,
não se realiza apenas eliminando-a com curas prodigiosas, mas também com o
sofrimento voluntário e inocente de Cristo na sua paixão, e dando a cada homem
a possibilidade de se associar à mesma. De fato, «o próprio Cristo, embora
fosse sem pecado, sofreu na sua paixão penas e tormentos de toda a espécie e
fez seus os sofrimentos de todos os homens: cumpria assim quanto d’Ele havia
escrito o profeta Isaías (cf. Is 53,4-5)»
[4]. Mais, «na cruz de Cristo não só se realizou a Redenção através do
sofrimento, mas também o próprio sofrimento humano foi redimido. (...)
Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo elevou ao mesmo tempo o
sofrimento humano ao nível de Redenção. Por isso, todos os homens, com o seu
sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de
Cristo» [5].
A
Igreja acolhe os doentes, não apenas como objeto da sua solicitude amorosa, mas
também reconhecendo neles a chamada «a viver a sua vocação humana e cristã e a
participar no crescimento do Reino de Deus com novas modalidades e mesmo mais
preciosas. As palavras do apóstolo Paulo hão de tornar-se programa e, ainda
mais, a luz que faz brilhar aos seus olhos o significado de graça da sua
própria situação: “Completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo, em
benefício do seu corpo que é a Igreja” (Cl 1,24).
Precisamente ao fazer tal descoberta, encontrou o Apóstolo a alegria: “Por
isso, alegro- me com os sofrimentos que suporto por vossa causa” (ibid.)» [6]. Trata-se da alegria pascal,
que é fruto do Espírito Santo. Como São Paulo, também «muitos doentes podem
tornar-se veículo da “alegria do Espírito Santo em muitas tribulações” (1Ts 1,6) e ser testemunhas da
Ressurreição de Jesus» [7].
2. O desejo da cura e a oração
para alcançá-la
Salva
a aceitação da vontade de Deus, o desejo que o doente sente de ser curado é bom
e profundamente humano, sobretudo quando se traduz em oração confiante dirigida
a Deus. O Eclesiástico exorta a
fazê-lo: «Filho, não desanimes na doença, mas reza ao Senhor e Ele te curará» (Eclo 38,9).
Vários salmos são uma espécie de súplica de cura (cf. Sl 6; 37; 40; 87).
Durante
a atividade pública de Jesus, muitos doentes a Ele se dirigem, ou diretamente
ou através de seus amigos e parentes, implorando a recuperação da saúde. O
Senhor acolhe esses pedidos, não se encontrando nos Evangelhos o mínimo aceno
de reprovação dos mesmos. A única queixa do Senhor refere-se à eventual falta
de fé: «Se posso? Tudo é possível a quem acredita» (Mc 9,23; cf. Mc 6,5-6; Jo 4,48).
Não
só é louvável a oração de todo o fiel que pede a cura, sua ou alheia, mas a
própria Igreja na sua Liturgia pede ao Senhor pela saúde dos enfermos. Antes de
mais, tem um sacramento «destinado de modo especial a confortar os que sofrem
com a doença: a Unção dos enfermos» [8]. «Nele, por meio da unção e da oração
dos presbíteros, a Igreja recomenda os doentes ao Senhor padecente e glorificado
para que os alivie e salve» [9]. Pouco antes, na bênção do óleo, a Igreja reza:
«derramai a vossa santa bênção para que [o óleo] sirva a quantos forem com ele
ungidos de auxílio do corpo, da alma e do espírito, para alívio de todas as
dores, fraquezas e doenças» [10]; e, a seguir, nos dois primeiros formulários
da oração após a Unção, pede-se mesmo a cura do enfermo [11]. A cura, uma vez
que o sacramento é penhor e promessa do reino futuro, é também anúncio da
ressurreição, quando «não haverá mais morte nem luto, nem gemidos nem dor,
porque o mundo antigo desapareceu» (Ap 21,4).
Por sua vez, o Missale Romanum contém
uma Missa pro infirmis, onde,
além de graças espirituais, se pede a saúde dos doentes [12].
No De benedictionibus do Rituale Romanum existe um Ordo benedictionis infirmorum que contém
diversos textos eucológicos para implorar a cura: no segundo formulário
das Preces [13]; nas quatro Orationes
benedictionis pro adultis [14]; nas duas Orationes benedictionis pro pueris [15]; na oração do Ritus brevior [16].
É
óbvio que o recurso à oração não exclui, antes encoraja, o emprego dos meios
naturais úteis a conservar e a recuperar a saúde e, por outro lado, estimula os
filhos da Igreja a cuidar dos doentes e a aliviá-los no corpo e no espírito,
procurando vencer a doença. Com efeito, «reentra no próprio plano de Deus e da
sua Providência que o homem lute com todas as forças contra a doença em todas
as suas formas e se esforce, de todas as maneiras, por manter-se em saúde»
[17].
3. O carisma da cura no Novo
Testamento
Não
só as curas prodigiosas confirmavam o poder do anúncio evangélico nos tempos
apostólicos; o próprio Novo Testamento fala de uma verdadeira e própria
concessão aos Apóstolos e aos outros primeiros evangelizadores de um poder de
curar as enfermidades em nome de Jesus. Assim, ao enviar os Doze para a sua
primeira missão, o Senhor, segundo a narração de Mateus e de Lucas,
concede-lhes «o poder de expulsar os espíritos impuros e de curar todas as
doenças e enfermidades» (Mt 10,1;
cf. Lc 9,1) e dá-lhes a
ordem: «Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, sarai os leprosos, expulsai
os demônios» (Mt 10,8). Também
na primeira missão dos setenta e dois, a ordem do Senhor é: «curai os enfermos
que aí houver» (Lc 10,9). O
poder, portanto, é concedido dentro de um contexto missionário, não para
exaltar as pessoas enviadas, mas para confirmar a sua missão.
Os
Atos dos Apóstolos referem de modo
genérico prodígios operados por estes: «inúmeros prodígios e milagres
realizados pelos Apóstolos» (At 2,43;
cf. 5,12). Eram prodígios e sinais e,
portanto, obras portentosas que manifestavam a verdade e a força da sua missão.
Mas, além destas breves indicações genéricas, os Atos referem sobretudo curas milagrosas, realizadas pelos
evangelizadores individualmente: Estêvão (cf.
At 6,8), Filipe (cf. At 8,6-7)
e sobretudo Pedro (cf. At 3,1-10;
5,15; 9,33-34.40-41) e Paulo (cf. At 14,3.8-10;
15,12; 19,11-12; 20,9-10; 28,8-9).
Quer
a parte final do Evangelho de Marcos
quer a Carta aos Gálatas, como antes
se viu, alargam a perspectiva e não circunscrevem as curas prodigiosas à atividade
dos Apóstolos e de alguns evangelizadores que tiveram papel de relevo na
primeira missão. Neste particular contexto, são de extrema importância as
referências ao «carisma de cura» (1Cor
12,9.28.30). O significado de carisma é, por si, muito amplo: o de
«dom generoso»; no caso em questão, trata-se de «dons de curas obtidas». Estas
graças, no plural, são atribuídas a um único sujeito (cf. 1Cor 12,9) e, portanto, não se devem entender em sentido
distributivo, como curas que cada um dos curados recebe para si mesmo; devem,
invés, entender-se como dom concedido a uma determinada pessoa de obter graças
de curas em favor de outros. É dado in
uno Spiritu, sem contudo se especificar o modo como essa pessoa obtém as
curas. Não seria descabido subentender que o seja através da oração, talvez
acompanhada de algum gesto simbólico.
Na
Carta de São Tiago faz-se aceno a uma
intervenção da Igreja, através dos presbíteros, em favor da salvação, mesmo em
sentido físico, dos doentes. Não se dá, porém, a entender se se trata de curas
prodigiosas: estamos num contexto diferente do dos «carismas de curas» da 1Cor 12,9. «Algum de vós está doente?
Chame os presbíteros da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com o óleo em
nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o confortará e, se
tiver pecados, lhe serão perdoados» (Tg 5,14-15).
Trata-se de um ato sacramental: unção do doente com óleo e oração sobre ele,
não simplesmente «por ele», como se fosse apenas uma oração de intercessão ou
de súplica. Mais propriamente, trata-se de uma ação eficaz sobre o enfermo
[18]. Os verbos «salvará» e «confortará» não exprimem uma ação que tenha em
vista, exclusivamente ou sobretudo, a cura física, mas de certo modo
incluem-na. O primeiro verbo, se bem que nas outras vezes que aparece na dita Carta se refira à salvação espiritual (cf. Tg 1,21; 2,14; 4,12; 5,20), é também
usado no Novo Testamento no sentido de «curar» (cf. Mt 9,21; Mc 5,28.34;
6,56; 10,52; Lc 8,48); o
segundo verbo, embora assuma por vezes o sentido de «ressuscitar» (cf. Mt 10,8; 11,5; 14,2),
também é usado para indicar o gesto de «levantar» a pessoa que está acamada por
causa de uma doença, curando-a de forma prodigiosa (cf. Mt 9,5; Mc 1,31;
9,27; At 3,7).
Cura do cego de nascença (Jo 9) |
4. As orações para alcançar de
Deus a cura na Tradição
Os
Padres da Igreja consideravam normal que o crente pedisse a Deus, não só a
saúde da alma, mas também a do corpo. A propósito dos bens da vida, da saúde e
da integridade física, Santo Agostinho escrevia: «É preciso rezar para que nos
sejam conservados, quando se os tem, e que nos sejam concedidos, quando não se
os tem» [19]. O mesmo Padre da Igreja deixou-nos o testemunho da cura de um
amigo, alcançada graças às orações de um bispo, de um sacerdote e de alguns
diáconos na sua casa [20].
A
mesma orientação se encontra nos ritos litúrgicos, tanto ocidentais como
orientais. Numa oração depois da Comunhão, pede-se que «este sacramento celeste
nos santifique totalmente a alma e o corpo» [21]. Na solene liturgia da
Sexta-Feira Santa convida-se a rezar a Deus Pai todo-poderoso para que «afaste
as doenças... e dê saúde aos enfermos» [22]. Entre os textos mais
significativos, destaca-se o da bênção do óleo dos enfermos. Nele pede-se a
Deus que derrame a sua santa bênção sobre o óleo, a fim de que «sirva a quantos
forem com ele ungidos de auxílio do corpo, da alma e do espírito, para alívio
de todas as dores, fraquezas e doenças» [23].
Não
são diferentes as expressões que se leem nos rituais orientais da Unção dos enfermos.
Citamos apenas alguns dos mais significativos. No Rito Bizantino, durante a
unção do enfermo reza-se: «Pai Santo, médico das almas e dos corpos, Vós que
enviastes o vosso Filho Unigênito Jesus Cristo para curar de toda a doença e
libertar-nos da morte, curai também, pela graça do vosso Cristo, este vosso
servo da enfermidade do corpo e do espírito que o aflige» [24]. No Rito Copta
pede-se ao Senhor que abençoe o óleo para que todos os que com ele forem
ungidos possam alcançar a saúde do espírito e do corpo. Depois, durante a unção
do enfermo, os sacerdotes, depois de terem mencionado Jesus Cristo, mandado ao
mundo «para curar todas as enfermidades e libertar da morte», pedem a Deus «que
cure o enfermo das enfermidades do corpo e lhe indique o reto caminho» [25].
5. O «carisma de cura» no contexto
atual
No
decorrer dos séculos da história da Igreja, não faltaram santos taumaturgos que
realizaram curas milagrosas. O fenômeno, portanto, não estava circunscrito ao
tempo apostólico. O chamado «carisma de cura», sobre o qual convém hoje dar
alguns esclarecimentos doutrinais, não fazia parte porém desses fenômenos
taumaturgos. O problema põe-se sobretudo com as reuniões de oração que os
acompanham, organizadas no intuito de obter curas prodigiosas entre os doentes
que nelas participam, ou então com as orações de cura que, com o mesmo fim, se
fazem a seguir à Comunhão eucarística.
As
curas ligadas aos lugares de oração (nos santuários, junto de relíquias de
mártires ou de outros santos, etc.) são abundantemente testemunhadas ao longo
da história da Igreja. Na Antiguidade e na Idade Média, contribuíram para
concentrar as peregrinações em determinados santuários, que se tornaram famosos
também por essa razão, como o de São Martinho de Tours ou a Catedral de
Santiago de Compostela e tantos outros. O mesmo acontece na atualidade, como,
por exemplo, há mais de um século com Lourdes. Estas curas não comportam um
«carisma de cura», porque não estão ligadas a um eventual detentor de tal
carisma, mas há que tê-las em conta ao procurar ajuizar, sob o ponto de vista
doutrinal, as referidas reuniões de oração.
No
que concerne às reuniões de oração feitas com a finalidade precisa de alcançar
curas, finalidade, se não dominante, ao menos certamente influente na
programação das mesmas, convém distinguir entre as que possam dar a entender um
«carisma de cura», verdadeiro ou aparente, e as que nada têm a ver com esse
carisma. Para que possam estar ligadas a um eventual carisma, é necessário que
nelas sobressaia, como elemento determinante para a eficácia da oração, a
intervenção de uma ou várias pessoas individualmente ou de uma categoria
qualificada, por exemplo, os dirigentes do grupo que promove a reunião. Não
havendo relação com o «carisma de cura», é óbvio que as celebrações previstas
nos livros litúrgicos, se realizadas em conformidade com as normas litúrgicas,
são lícitas e até muitas vezes oportunas, como é o caso da Missa pro infirmis. Quando não
respeitarem as normas litúrgicas, perdem a sua legitimidade.
Nos
santuários são também frequentes outras celebrações que, por si, não se
destinam especificamente a implorar de Deus graças de curas, mas que nas
intenções dos organizadores e dos que nelas participam têm, como parte
importante da sua finalidade, a obtenção de curas. Com esse objetivo, costumam
fazer-se celebrações litúrgicas, como é o caso da exposição do Santíssimo
Sacramento com bênção; ou não litúrgicas, mas de piedade popular, que a Igreja
encoraja, como pode ser a solene oração do Terço ou Rosário. Também estas
celebrações são legítimas, uma vez que não se altere o seu significado
autêntico. Por exemplo, não se deveria pôr em primeiro plano o desejo de
alcançar a cura dos doentes, fazendo com que a exposição da Santíssima
Eucaristia venha a perder a sua finalidade; esta, de fato, «leva a reconhecer
nela a admirável presença de Cristo e convida à íntima união com Ele, união que
atinge o auge na comunhão sacramental» [26].
O
«carisma de cura» não se atribui a uma determinada categoria de fiéis. É,
aliás, bem claro que São Paulo, quando se refere aos diversos carismas em 1Cor 12, não atribui o dom dos «carismas
de cura» a um grupo particular: ao dos apóstolos ou dos profetas, ao dos
mestres ou dos que governam, ou a outro qualquer. A lógica que preside à sua
distribuição é, invés, outra: «é um só e mesmo Espírito que faz tudo isto,
distribuindo os dons a cada um conforme Lhe agrada» (1Cor 12,11). Por conseguinte, nas reuniões de oração
organizadas com o intuito de implorar curas, seria completamente arbitrário
atribuir um «carisma de cura» a uma categoria de participantes, por exemplo, aos
dirigentes do grupo. Deve-se confiar apenas na vontade totalmente livre do
Espírito Santo, que dá a alguns um especial carisma de cura para manifestar a
força da graça do Ressuscitado. Há que recordar, por outro lado, que nem as
orações mais intensas alcançam a cura de todas as doenças. Assim São Paulo tem
de aprender do Senhor que «basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se
manifesta todo o meu poder» (2Cor 12,9)
e que os sofrimentos que se têm de suportar podem ter o mesmo sentido do
«completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo, em benefício do seu corpo
que é a Igreja» (Cl 1,24).
Jesus, o Bom Samaritano (Lc 10,29-37) |
II. DISPOSIÇÕES DISCIPLINARES
Art.
1 - Todo o fiel pode elevar preces a Deus para alcançar a cura. Quando
estas se fazem numa igreja ou noutro lugar sagrado, convém que seja um ministro
ordenado a presidi-las.
Art.
2 - As orações de cura têm a qualificação de “litúrgicas”, quando inseridas
nos livros litúrgicos aprovados pela autoridade competente da Igreja; caso
contrário, são orações “não litúrgicas”.
Art.
3 - § 1. As orações de cura litúrgicas celebram-se segundo o rito
prescrito e com as vestes sagradas indicadas no Ordo benedictionis infirmorum do Rituale Romanum [27].
§
2. As Conferências Episcopais, em conformidade com quanto estabelecido nos Praenotanda, V, De aptationibus quae Conferentiae
Episcoporum competunt do mesmo Rituale Romanum [28], podem fazer as adaptações ao rito das bênçãos
dos enfermos, que considerarem pastoralmente oportunas ou eventualmente
necessárias, com prévia revisão da Sé Apostólica.
Art.
4 - § 1. O Bispo diocesano [29] tem o direito de emanar para a
própria Igreja particular normas sobre as celebrações litúrgicas de cura,
conforme o can. 838, § 4.
§
2. Os que estão encarregados de preparar ditas celebrações litúrgicas deverão
ater-se a essas normas na realização das mesmas.
§
3. A licença de realizar ditas celebrações tem de ser explícita, mesmo quando
organizadas por Bispos ou Cardeais ou estes nelas participem. O Bispo diocesano
tem o direito de negar tal licença a qualquer Bispo, sempre que houver uma
razão justa e proporcionada.
Art.
5 - § 1. As orações de cura não litúrgicas realizam-se com modalidades
diferentes das celebrações litúrgicas, tais como encontros de oração ou leitura
da Palavra de Deus, salva sempre a vigilância do Ordinário do lugar, em
conformidade com o can. 839, § 2.
§
2. Evite-se cuidadosamente confundir estas orações livres não litúrgicas com as
celebrações litúrgicas propriamente ditas.
§
3. É necessário, além disso, que na sua execução não se chegue, sobretudo por
parte de quem as orienta, a formas parecidas com o histerismo, a
artificialidade, a teatralidade ou o sensacionalismo.
Art.
6 - O uso de instrumentos de comunicação social, nomeadamente a televisão,
durante as orações de cura, tanto litúrgicas como não litúrgicas, é submetido à
vigilância do Bispo diocesano, em conformidade com o estabelecido no can. 823 e
com as normas emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé na Instrução de
30 de Março de 1992 [30].
Art.
7 - § 1. Mantendo-se em vigor quanto acima disposto no art. 3 e
salvas as funções para os doentes previstas nos livros litúrgicos, não devem
inserir-se orações de cura, litúrgicas ou não litúrgicas, na celebração da
Santíssima Eucaristia, dos Sacramentos e da Liturgia das Horas.
§
2. Durante as celebrações, a que se refere o art. 1, é permitido inserir na
oração universal ou «dos fiéis» intenções especiais de oração pela cura dos
doentes, quando esta for nelas prevista.
Art.
8 - § 1. O ministério do exorcismo deve ser exercido na estreita
dependência do Bispo diocesano e, em conformidade com o can. 1172, com a Carta
da Congregação para a Doutrina da Fé de 29 de setembro de 1985 [31] e com
o Rituale Romanum [32].
§
2. As orações de exorcismo, contidas no Rituale Romanum, devem manter-se distintas das celebrações de cura,
litúrgicas ou não litúrgicas.
§
3. É absolutamente proibido inserir tais orações na celebração da Santa Missa,
dos Sacramentos e da Liturgia das Horas.
Art.
9 - Os que presidem às celebrações de cura, litúrgicas ou não litúrgicas,
esforcem-se por manter na assembleia um clima de serena devoção, e atuem com a
devida prudência, quando se verificarem curas entre os presentes. Terminada a
celebração, poderão recolher, com simplicidade e precisão, os eventuais
testemunhos e submeterão o fato à autoridade eclesiástica competente.
Art.
10 - A intervenção da autoridade do Bispo diocesano é obrigatória e
necessária, quando se verificarem abusos nas celebrações de cura, litúrgicas ou
não litúrgicas, em caso de evidente escândalo para a comunidade dos fiéis ou
quando houver grave inobservância das normas litúrgicas e disciplinares.
O Sumo Pontífice João Paulo II, na
Audiência concedida ao abaixo assinado Prefeito, aprovou a presente Instrução,
decidida na reunião ordinária desta Congregação, e mandou que fosse publicada.
Roma, sede da Congregação para a
Doutrina da Fé, 14 de setembro de 2000, Festa da Exaltação da Santa Cruz.
Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito
Dom Tarcisio Bertone, S.D.B., Secretário
João Paulo II assina um documento tendo junto de si o Cardeal Joseph Ratzinger |
Notas:
[1]
JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Christifideles
laici, n. 53; AAS 81 (1989), p. 498
[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 1502.
[3]
JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Salvifici
doloris, n. 11; AAS, 76 (1984), p. 12.
[4] Rituale Romanum, Ordo Unctionis Infirmorum eorumque Pastoralis Curae. Editio typica.
Typis Polyglottis Vaticanis, 1972, n. 2.
[5]
Salvifici doloris, n. 19, AAS,
76(1984), p. 225.
[6]
Christifideles laici, n. 53, AAS
81(1989), p. 499.
[7] ibid..
[8] Catecismo da Igreja Católica, n. 1511.
[9]
cf. Rituale Romanum, Ordo
Unctionis Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, n. 5.
[10] ibid., n. 75.
[11]
cf. ibid., n. 77.
[12] Missale Romanum. Editio typica altera.
Typis Polyglottis Vaticanis, 1975, pp. 838- 839.
[13]
cf. Rituale Romanum, De Benedictionibus. Editio typica, Typis
Polyglottis Vaticanis, 1984, n. 305.
[14]
cf. ibid., nn. 306-309.
[15]
cf. ibid., nn. 315-316.
[16]
cf. ibid., n. 319.
[17] Rituale Romanum, Ordo Unctionis
Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, n. 3.
[18]
cf. CONCÍLIO DE TRENTO, sessão
XIV, Doctrina de sacramento extremae
unctionis, cap. 2: DS, 1696.
[19]
AGOSTINHO, Epistulae 130,
VI, 13 (PL 33, 499).
[20]
cf. idem, De Civitate Dei 22, 8, 3 (PL 41, 762-763).
[21]
cf. Missale Romanum, p. 563.
[22] ibid., Oratio universalis, n. X (Pro
tribulatis), p. 256.
[23] Rituale Romanum, Ordo Unctionis
Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, n. 75.
[24]
GOAR J., Euchologion sive Rituale Graecorum,
Venetiis, 1730 (Graz 1960), n. 338.
[25]
DENZINGER H., Ritus Orientalium in
administrandis Sacramentis, vv. I-II, Würzburg, 1863 (Graz 1961), v. II,
497-498.
[26] Rituale Romanum, De Sacra Communione et de
Cultu Mysterii Eucharistici Extra Missam. Editio typica. Typis Polyglottis
Vaticanis, 1973, n. 82.
[27]
cf. Rituale Romanum, De
Benedictionibus, nn. 290-320.
[28] ibid., n. 39.
[29]
E quantos a ele são equiparados em virtude do can. 381, § 2.
[30]
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução Il Concilio Vaticano II, Sobre alguns aspectos do uso dos
instrumentos de comunicação social para a promoção da doutrina da fé. Cidade do
Vaticano, 1992.
[31]
idem, Epistula Inde ab aliquot annis, Ordinariis locorum missa: In
mentem normae vigentes de exorcismis revocantur. 29 septembris 1985. in: AAS 77 (1985), pp. 1169-1170.
[32]
cf. Rituale Romanum, De exorcismis
et supplicationibus quibusdam. Editio typica. Typis Vaticanis, 1998, Praenotanda, nn. 13-19.
Fonte: Santa Sé.
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