Após abordar o papel do sacerdote em cada uma das partes da Missa, a série de textos publicados pela Santa Sé durante o Ano Sacerdotal (2009-2010) aborda alguns aspectos da celebração importantes para a espiritualidade sacerdotal. Confira. pois, o texto sobre as “orações apologéticas” que o sacerdote recita durante a Missa:
Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice
As orações apologéticas na Missa:
Um silêncio que contempla e adora
A Sagrada
Liturgia, que o Concílio
Vaticano II qualifica como a ação sacerdotal de Cristo e, portanto,
fonte e cume da vida eclesial, não pode ser reduzida jamais a uma mera
realidade estética, nem pode ser considerada como um instrumento com fins
meramente pedagógicos ou ecumênicos. A celebração dos santos mistérios é,
sobretudo, ação de louvor à soberana majestade de Deus, Uno e Trino, e
expressão querida pelo próprio Deus. Com ela, o homem, pessoal e
comunitariamente, apresenta-se diante d’Ele para agradecer, consciente de que
seu próprio ser não pode alcançar sua plenitude sem louvá-lo e cumprir sua
vontade, na constante busca do Reino que já está presente, mas que virá
definitivamente no dia da parusia do
Senhor Jesus [1].
A partir desta
perspectiva, está claro que a direção de toda ação litúrgica - que é a mesma
tanto para o sacerdote como para os fiéis - se dirige ao Senhor: ao Pai,
através de Cristo, no Espírito Santo. Por isso, “sacerdote e povo certamente
não rezam um ao outro, mas ao único Senhor” [2]. Trata-se de viver
constantemente conversi ad Dominum,
orientados ao Senhor, que implica na conversio,
isto é, dirigir nossa alma a Jesus Cristo e, dessa forma, ao Deus vivente, à
luz verdadeira [3].
Bento XVI celebra versus Deum na Capela Sistina |
Desse modo, a
celebração litúrgica é um ato da virtude da religião que, coerentemente com sua
natureza, deve se caracterizar por um profundo senso do sagrado. Nela, o homem
e a comunidade devem ser conscientes de que vivem um encontro, em particular,
diante d’Aquele que é três vezes Santo e Transcendente. Daí que “um sinal
convincente da eficácia que a catequese eucarística tem nos fiéis seja sem
dúvida o crescimento neles do senso do mistério de Deus presente entre nós”
[4].
A atitude
apropriada na celebração litúrgica não pode ser outra a não ser uma atitude
impregnada de reverência e senso de estupor, que brota do saber-se na presença
da majestade de Deus. Não era isso, por acaso, o que Deus queria expressar
quando ordenou a Moisés que tirasse as sandálias diante da sarça ardente? Não
nascia desta consciência, por acaso, a atitude de Moisés e de Elias, que não
ousaram olhar para Deus face a face?
[5].
Neste contexto,
entendem-se melhor as palavras da Oração Eucarística II da Santa Missa, que
definem perfeitamente a essência do ministério sacerdotal: astare coram te et tibi ministrare. Assim, pois, são duas as
tarefas que definem a essência do ministério sacerdotal: “estar na presença do
Senhor” e “servir em tua presença”. O Santo Padre Bento XVI, comentando esta segunda
tarefa, apontava que o termo “serviço” é adotado fundamentalmente para
referir-se ao serviço litúrgico. Este implica em muitas dimensões e, entre
outras, indicava a proximidade, a familiaridade. Concretamente, comentava:
“Ninguém está tão perto do seu senhor como o servidor que tem acesso à dimensão
mais privada da sua vida. Neste sentido, ‘servir’ significa proximidade, requer
familiaridade. Esta familiaridade compreende também um perigo: o de que o
sagrado com que temos contato contínuo se converta para nós em costume. Assim
se apaga o temor reverencial. Condicionados por todos os costumes, já não
percebemos a grande, nova e surpreendente realidade: Ele mesmo está presente,
fala-nos e se entrega a nós. Contra esse acostumar-se à realidade
extraordinária, contra a indiferença do coração devemos lutar sem tréguas,
reconhecendo sempre nossa insuficiência e a graça que envolve o fato de que Ele
se entrega assim em nossas mãos” [6].
Frente a toda
celebração litúrgica, mas de forma especial na Eucaristia - memorial da morte e
ressurreição do Senhor, pelo qual se faz realmente presente este acontecimento
central de salvação e se realiza a obra da nossa redenção - temos de colocar-nos
em adoração diante deste mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. O
que mais Jesus poderia fazer por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia Ele nos
mostra um amor que chega “até o extremo” (Jo 13,1), um amor que não conhece
medida [7]. Diante desta realidade extraordinária, permanecemos atônitos e
aturdidos: com quanta condescendência humilde Deus quis se unir ao homem! Se
dentro de poucas semanas nos comoveremos diante do presépio, contemplando a
encarnação do Verbo, o que podemos sentir diante do altar, onde Cristo faz
presente no tempo seu sacrifício mediante as pobres mãos do sacerdote? Cabe
somente ajoelhar-se e adorar em silêncio este grande mistério de fé [8].
Consequência
lógica do que foi dito é que o Povo de Deus precisa ver, nos sacerdotes e nos
diáconos, um comportamento repleto de reverência e de dignidade, que seja capaz
de ajudá-lo a aprofundar nas coisas invisíveis, inclusive sem muitas palavras e
explicações. No Missal Romano denominado de São Pio V, assim como em diversas
Liturgias Orientais, encontram-se orações belíssimas, com as quais o sacerdote
expressa o mais profundo sentimento de humildade e de reverência diante dos
santos mistérios: revelam a própria substância de qualquer Liturgia [9]. Estas
orações presentes no Missal Romano, que em sua edição de 1962 é o Missal
próprio da Forma Extraordinária, foram recolhidas em parte no Missal Romano
promulgado depois do Concílio Vaticano II e se denominam tradicionalmente
“apologias”.
A estas orações
se refere a Institutio Generalis Missalis
Romani (Introdução Geral do Missal Romano) em seu número 33. Depois de
referir-se às orações que o sacerdote, como celebrante, pronuncia em nome da
Igreja, afirma que outras vezes, quando reza, “o faz somente em seu nome, para poder cumprir seu ministério com maior
atenção e piedade. Assim, as orações propostas antes da leitura do
Evangelho, na preparação dos dons, assim como antes e depois da Comunhão, são
ditas em segredo”.
Dessa maneira,
estas breves fórmulas rezadas em silêncio convidam o sacerdote a personalizar
sua tarefa, a entregar-se ao Senhor, também com seu próprio eu. E são uma forma
excelente de encaminhar-se com os demais ao encontro do Senhor, de maneira
inteiramente pessoal, mas ao mesmo tempo junto com os outros. Este é um primeiro
aspecto essencial, pois só na medida em que se interioriza e se compreende a
estrutura litúrgica e as palavras da Liturgia, é possível entrar em consonância
interior com ela. Quando isso acontece, o sacerdote celebrante já não somente
fala com Deus como uma pessoa individual, mas entra no “nós” da Igreja que ora.
Se a celebração é oração e colóquio com Deus,
de Deus conosco e nosso com Deus, transforma-se o próprio “eu” do celebrante,
que entra no “nós” da Igreja. Enriquece-se e se amplia o “eu”, orando com a
Igreja, com suas palavras, e se estabelece realmente um colóquio com Deus.
Assim, celebrar é realmente celebrar “com” a Igreja: o coração se engrandece e
está “com” a Igreja em colóquio com Deus. Neste processo, as orações
apologéticas e o silêncio contemplativo e adorante que produzem são um elemento
essencial; por isso, fazem parte da estrutura da Celebração Eucarística há mais
de mil anos.
Em segundo
lugar, no caminho rumo ao Senhor, percebemos a nossa própria indignidade.
Torna-se necessário pedir ao longo da celebração que o próprio Deus nos
transforme e aceite que participemos desta ação
de Deus que configura a Liturgia. De fato, o espírito de conversão contínua
é uma das condições pessoais que torna possível a actuosa participatio dos fiéis e do próprio sacerdote celebrante.
“Não se pode esperar uma participação ativa na Liturgia Eucarística quando se
assiste a ela superficialmente, sem antes examinar a própria vida” [10].
O recolhimento e
o silêncio antes e durante a celebração se situam neste contexto e facilitam
que seja realidade a premissa “um coração reconciliado com Deus permite a
verdadeira participação” [11]. Daí que seja claro que as orações apologéticas
desempenham um papel importante na celebração.
Por exemplo, as
orações apologéticas Munda cor meum,
recitada antes da proclamação do Evangelho, ou In spiritu humilitatis, prévia ao lavabo depois da apresentação das
oferendas, permitem ao sacerdote que as reza tomar consciência da realidade da
sua indignidade e, ao mesmo tempo, da grandeza da sua missão. “O sacerdote é
servidor e tem de esforçar-se continuamente por se sinal que, como dócil
instrumento em suas mãos, refere-se a Cristo” [12]. O silêncio e os gestos de
piedade e recolhimento do celebrante também movem os fiéis que participam da
celebração a perceberem a necessidade de preparar-se, de converter-se, dada a
importância do momento em que se encontram na celebração: antes da leitura do
Evangelho, no início iminente da oração Eucarística.
Por outro lado,
as apologias Per huius aquae et vini durante
o Ofertório ou Quod ore sumpsimus Domine durante
a purificação dos vasos sagrados, enquadram-se perfeitamente neste desejo de
ser introduzidos e transformados em e pela ação divina. Uma e outra vez, temos
de trazer à nossa mente e coração que a Liturgia Eucarística é ação de Deus que nos une a Jesus através
do seu Espírito [13]. Estas duas apologias, às quais nos referimos, encaminham
nossa existência rumo à Encarnação e à Ressurreição. E, na verdade, constituem
um elemento que favorece a realização desse desejo da Igreja: que os fiéis não
fiquem assistindo ao mistério de fé como estranhos e mudos expectadores, mas
que agradeçam a Deus e aprendam a oferecer-se a Cristo [14].
Não nos parece
atrevido afirmar que as apologias também desempenham um papel de primeira linha
na hora de “recordar” o ministro ordenado que ele “desempenha o papel do
próprio Sacerdote, Cristo Jesus. Se é assimilado ao Sumo Sacerdote, pela
consagração sacerdotal recebida, então goza da faculdade de agir pelo poder do
próprio Cristo, a quem representa (virtute
ac persona ipsius Christi)” [15].
Ao mesmo tempo,
estas orações recordam ao sacerdote que, por ser ministro ordenado, é “o
vínculo sacramental que une a ação litúrgica ao que disseram e realizaram os
apóstolos e, por eles, o que disse e realizou Cristo, fonte e fundamento dos
sacramentos” [16]. As orações ditas pelo celebrante em segredo constituem, por
isso, um meio extraordinário para unir uns aos outros, formar uma comunidade
que é “liturga” e que participa inteira orientada a Deus por Jesus Cristo.
Uma das
apologias, conservada no atual Ordo
Missae, plasma perfeitamente o que estamos dizendo: Domine Iesu Christe Fili Dei vivi qui ex voluntate Patris cooperante
Spiritu Sancto per mortem tuam mundum vivificasti (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que, por vontade do Pai, cooperando com o Espírito Santo, com a vossa morte destes a vida ao mundo”). De fato, as orações que
o sacerdote reza em segredo – e esta concretamente – podem ajudar de modo
eficaz – a sacerdotes e fiéis – a alcançar a clara consciência de que a Liturgia
é obra da Santíssima Trindade. “A oração e a oferenda da Igreja são
inseparáveis da oração e da oferenda de Cristo, sua Cabeça. Trata-se sempre do
culto de Cristo em e pela sua Igreja” [17].
Assim, pois, as
apologias, há mais de mil anos, configuram-se como simples fórmulas acrisoladas
pela história, repletas de conteúdo teológico, que permitem ao sacerdote quando
as reza, e ao povo fiel que participa vivendo o silêncio, perceber o mistério
de fé do qual participam e assim unir-se a Cristo e reconhecê-lo como Deus,
irmão e amigo.
Por estes
motivos, temos de alegrar-nos pelo fato de que, apesar da reforma litúrgica
pós-conciliar ter reduzido drasticamente seu número e retocado notavelmente o
texto destas orações, elas continuam estando presentes também no Ordinário da
Missa mais recente. É um convite aos sacerdotes a não descuidarem destas
orações durante a celebração, assim como a não transformá-las de orações do
sacerdote a orações de toda a assembleia, lendo-as em voz alta como as demais
orações. As orações apologéticas se baseiam e expressam uma teologia diferente
e complementar à que constitui o pano de fundo das demais orações. Esta
teologia se manifesta na maneira silenciosa e reverente com que são rezadas
pelo sacerdote e acompanhadas pelos demais fiéis.
Notas:
[1] João Paulo
II, Mensagem à Assembleia Plenária da
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 21 de setembro de 2001.
[2] Joseph Ratzinger, Prefácio ao I volume de Gesammelten
Schriften.
[3] cf. Bento
XVI, Homilia na
Vigília Pascal, 22 de março de 2008.
[4] idem,
Exortação Apostólica Sacramentum caritatis, n. 65.
[5] cf. João
Paulo II, Mensagem à Assembleia Plenária
da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 21 de setembro de 2001.
[6] Bento XVI, Homilia na Missa Crismal, 20 de março de 2008.
[7] João Paulo
II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 11.
[8] idem, Carta aos Sacerdotes na Quinta-Feira Santa de 2004.
[9] cf. idem, Mensagem à Assembleia Plenária
da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 21 de setembro de 2001.
[10] Bento XVI,
Exortação Apostólica Sacramentum caritatis, n. 55.
[11] ibid.
[12] ibid., n 23.
[13] ibid. n. 37.
[14] cf. Constituição
Sacrosanctum Concilium, n. 48.
[15] Pio XII, Encíclica Mediator Dei, citada no Catecismo da Igreja
Católica, n. 1548.
[16] Catecismo da Igreja
Católica, n. 1120.
[17] ibid., n. 1553.
Fonte: Santa Sé, com pequenas correções.
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