Com este texto encerramos a série de postagens sobre as reflexões publicadas no site da Santa Sé durante o Ano Sacerdotal (2009-2010), cujos 10 anos celebramos:
Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice
Observância das normas litúrgicas e “ars celebrandi”
1. A situação no pós-Concílio
O Concílio Vaticano II ordenou
uma reforma geral na sagrada Liturgia [1]. Esta foi efetuada, após o
encerramento do Concílio, por uma comissão chamada abreviadamente de Consilium [2]. É sabido que a reforma
litúrgica foi desde o início objeto de críticas, às vezes radicais, como de
exaltações, em certos casos excessivas. Não é nossa intenção nos deter neste
problema. Podemos dizer em contrapartida que se está geralmente de acordo em
observar um forte aumento dos abusos no campo celebrativo depois do Concílio.
Também o Magistério recente tomou nota da situação e em muitos casos chamou à
estrita observância das normas e das indicações litúrgicas. Por outro lado, as
leis litúrgicas estabelecidas para a forma ordinária (ou de Paulo VI) - que,
exceções à parte, celebra-se sempre e em todas as partes na Igreja de hoje -
são muito mais “abertas” em relação ao passado. Estas permitem muitas exceções
e diversas aplicações, e preveem também múltiplos formulários para os diversos
ritos (a pluriformidade inclusive aumenta na passagem da editio typica latina às versões nacionais). Apesar disso, um grande
número de sacerdotes considera que têm de ampliar ulteriormente o espaço
deixado à “criatividade”, que se expressa sobretudo com a frequente mudança de
palavras ou de frases inteiras em relação às fixadas nos livros litúrgicos, com
a inserção de “ritos” novos e frequentemente estranhos completamente à tradição
litúrgica e teológica da Igreja e inclusive com o uso de vestimentas,
utensílios sagrados e adornos nem sempre adequados e, em alguns casos, caindo
inclusive no ridículo. O liturgista Cesare Giraudo resumiu a situação com estas
palavras:
«Se antes [da
reforma litúrgica] havia fixação, esclerose de formas, inaturalidade, que
faziam a Liturgia de então uma “Liturgia de ferro”, hoje, há naturalidade e
espontaneidade, sem dúvida sinceras, mas frequentemente confusas, mal
entendidas, que fazem - ou ao menos correm o risco de fazer - da Liturgia uma
“Liturgia de borracha”, incerta, escorregadiça, que às vezes se expressa em uma
ostentosa liberação de toda normativa escrita. [...] Esta espontaneidade mal
entendida, que se identifica de fato com a improvisação, a falta de seriedade,
a superficialidade, o permissivismo, é o novo “critério” que fascina
inumeráveis agentes pastorais, sacerdotes e leigos. (...) Por não falar também
daqueles sacerdotes que, às vezes e em alguns lugares, arrogam-se o direito de
utilizar Orações Eucarísticas selvagens, ou de compor aqui ou ali seu texto ou
partes dele» [3].
O Papa João Paulo II,
na Encíclica Ecclesia de Eucharistia, manifestou
seu desgosto pelos abusos litúrgicos que acontecem frequentemente, particularmente
na celebração da Santa Missa, já que a «Eucaristia é um dom demasiado grande
para suportar ambiguidades e diminuições» [4]. Ele acrescentou: «Temos a
lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica
pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram
abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Certa reação contra o “formalismo”
levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não
obrigatórias as “formas” escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e
do seu Magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes
completamente impróprias. Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo
para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na Celebração
Eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da
Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A Liturgia nunca é propriedade
privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os
santos mistérios» [5].
2. Causas e efeitos do fenômeno
O fenômeno da “desobediência
litúrgica” estendeu-se de tal forma, por número e em certos casos também por
gravidade, que se formou em muitos uma mentalidade pela qual na Liturgia,
salvando as palavras da consagração eucarística, se poderiam dar todas as
modificações consideradas “pastoralmente” oportunas pelo sacerdote ou pela
comunidade. Esta situação induziu o próprio João Paulo II a pedir à Congregação para o
Culto Divino que preparasse uma Instrução disciplinar sobre a Celebração
da Eucaristia, publicada com o título de Redemptionis
Sacramentum, a 25 de março de 2004. Na citação antes reproduzida da Ecclesia de Eucharistia, indicava-se na
reação ao formalismo uma das causas da “desobediência litúrgica” de nosso
tempo. A Redemptionis Sacramentum assinala
outras causas, entre elas um falso conceito de liberdade [6] e a ignorância.
Esta última em particular se refere não só ao conhecimento das normas, mas
também a uma compreensão deficiente do valor histórico e teológico de muitos
textos eucológicos e ritos: «Finalmente, os abusos se fundamentam com
frequência na ignorância, já que quase sempre se rejeita aquilo que não se
compreende seu sentido mais profundo e sua antiguidade» [7].
Introduzindo o
tema da fidelidade às normas em uma compreensão teológica e histórica, ademais
de no contexto da eclesiologia de comunhão, a Instrução afirma:
«O Mistério da
Eucaristia é demasiado grande “para que alguém possa permitir tratá-lo ao seu
arbítrio pessoal, pois não respeitaria nem seu caráter sagrado, nem sua
dimensão universal” [...] Os atos arbitrários não beneficiam a verdadeira
renovação e sim lesionam o verdadeiro direito dos fiéis à ação litúrgica, à
expressão da vida da Igreja, de acordo com sua tradição e disciplina. Além
disso, introduzem na mesma celebração da Eucaristia elementos de discórdia e de
deformação, quando ela tem, por sua própria natureza e de forma eminente, de
significar e de realizar admiravelmente a Comunhão com a vida divina e a unidade
do povo de Deus. Estes atos arbitrários causam incerteza na doutrina, dúvida e
escândalo para o povo de Deus e, quase inevitavelmente, uma violenta
repugnância que confunde e aflige com força a muitos fiéis em nossos tempos, em
que frequentemente a vida cristã sofre o ambiente, muito difícil, da “secularização”.
Por outra parte,
todos os fiéis cristãos gozam do direito de celebrar uma Liturgia verdadeira,
especialmente a celebração da Santa Missa, que seja tal como a Igreja tem
querido e estabelecido, como está prescrito nos livros litúrgicos e nas outras
leis e normas. Além disso, o povo católico tem direito a que se celebre por
ele, de forma íntegra, o santo Sacrifício da Missa, conforme toda a essência do
Magistério da Igreja. Finalmente, a comunidade católica tem direito a que de
tal modo se realize para ela a celebração da Santíssima Eucaristia, que apareça
verdadeiramente como sacramento de unidade, excluindo absolutamente todos os
defeitos e gestos que possam manifestar divisões e facções na Igreja» [8].
Particularmente
significativo neste texto é o chamado ao direito dos fiéis de terem a Liturgia
celebrada segundo as normas universais da Igreja, além de sublinhar o fato de
que as transformações e modificações da Liturgia - ainda que se façam por
motivos “pastorais” - não têm na realidade um efeito positivo neste campo; ao
contrário, confundem, turbam, cansam e podem inclusive fazer os fiéis se
afastarem da prática religiosa.
3. A ars celebrandi
Eis aqui os
motivos pelos quais o Magistério nas últimas quatro décadas recordou várias
vezes aos sacerdotes a importância da ars
celebrandi, a qual - se bem não consiste apenas na perfeita execução dos
ritos de acordo com os livros, mas também e sobretudo no espírito de fé e
adoração com os que estes se celebram - não se pode no entanto realizar se se
afasta das normas fixadas para a celebração [9]. Assim o expressa, por exemplo,
o Santo Padre
Bento XVI: «O primeiro modo de favorecer a participação do Povo de Deus
no rito sagrado é a condigna celebração do mesmo; a arte da celebração é a
melhor condição para a participação ativa (actuosa
participatio). Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na
sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil
anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração
enquanto “Povo de Deus, sacerdócio real, nação santa” (cf. 1Pd 2,4-5.9)» [10].
Recordando estes
aspectos, não se deve cair no erro de esquecer os frutos positivos produzidos
pelo movimento de renovação litúrgica. O problema assinalado, contudo, subsiste
e é importante que a solução ao mesmo parta dos sacerdotes, os quais devem se
empenhar antes de tudo em conhecer de maneira aprofundada os livros litúrgicos,
e também em por fielmente em prática suas prescrições. Só o conhecimento das
leis litúrgicas e o desejo de se ater estritamente a elas impedirá ulteriores
abusos e “inovações” arbitrárias que, se no momento podem talvez emocionar os
presentes, na realidade acabam logo por cansar e defraudar. Salvas as melhores
intenções de quem as comete, depois de quarenta anos de experiência na questão,
a “desobediência litúrgica” não constrói de fato comunidades cristãs melhores,
mas, ao contrário, põe em risco a solidez de sua fé e de sua pertença à unidade
da Igreja Católica. Não se pode utilizar o caráter mais “aberto” das novas
normas litúrgicas como pretexto para desnaturalizar o culto público da Igreja:
«As novas normas
simplificaram muito as fórmulas, os gestos, os atos litúrgicos (...) Mas neste
campo não se deve ir além do estabelecido: de fato, procedendo assim, se
despojaria a Liturgia dos sinais sagrados e de sua beleza, que são necessários,
para que se realize verdadeiramente na comunidade cristã o mistério da salvação
e seja compreendido também, sob o véu das realidades visíveis, através de uma
catequese apropriada. A reforma litúrgica de fato não é sinônimo de dessacralização, nem quer ser motivo
para esse fenômeno que chamam de a secularização
do mundo. É necessário por isso conservar nos ritos dignidade, seriedade,
sacralidade» [11].
Entre as graças
que esperamos poder obter da celebração do Ano Sacerdotal está, portanto, também a de uma
verdadeira renovação litúrgica no seio da Igreja, para que a sagrada Liturgia
seja compreendida e vivida pelo que esta é na realidade: o culto público e
integral do Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros, culto de adoração que
glorifica a Deus e santifica os homens [12].
Notas
[1] cf. Concílio Vaticano II,
Sacrosanctum Concilium, n. 21.
[2] Abreviação
de Consilium ad exsequendam
Constitutionem de Sacra Liturgia.
[3] C. Giraudo, “La costituzione 'Sacrosanctum Concilium': il
primo grande dono del Vaticano II”, in:
La Civiltà Cattolica, 2003, IV, pp. 532; 531.
[4] João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n. 10.
[5] ibid., n. 52. cf. também Sacrosanctum Concilium,
n. 28.
[6] “Não é
estranho que os abusos tenham sua origem em um falso conceito de liberdade.
Posto que Deus nos tem concedido, em Cristo, não uma falsa liberdade para fazer
o que queremos, mas sim a liberdade para que possamos realizar o que é digno e
justo” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Redemptionis Sacramentum, n. 7).
[7] ibid., n. 9.
[8] ibid., nn. 11-12.
[9] Sagrada
Congregação dos Ritos, Eucharisticum
Mysterium, n. 20: “Para favorecer o correto desenvolvimento da celebração
sagrada e a participação ativa dos fiéis, os ministros não devem apenas
limitar-se a realizar seu serviço com exatidão, segundo as leis litúrgicas, mas
devem comportar-se de forma que inculquem, por meio deste, o sentido das coisas
sagradas”.
[10] Bento XVI, Sacramentum Caritatis, n. 38. Veja-se o n.
40, que desenvolve adequadamente o conceito.
[11] Sagrada Congregação
para o Culto Divino, Liturgicae
instaurationes, n. 1. O texto continua: “A eficácia das ações litúrgicas
não está na busca contínua de novidades rituais, ou de simplicações ulteriores,
mas no aprofundamento da Palavra de Deus e do mistério celebrado, cuja presença
está assegurada pela observância dos ritos da Igreja e não dos impostos pelo
gosto pessoal de cada sacerdote. Tenha-se presente, ademais, que a imposição de
reconstruções pessoais dos ritos sagrados por parte do sacerdote ofende a
dignidade dos fiéis e abre caminho para o individualismo e o personalismo na
celebração de ações que diretamente pertencem a toda Igreja”.
[12] cf. Pio XII, Mediator Dei, I, 1; Concílio Vaticano II , Sacrosanctum Concilium, n. 7.
Fonte: Santa Sé.
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