Neste dia 06 de agosto recordamos pela primeira vez a morte do Papa Paulo VI (06 de agosto de 1978) desde sua canonização, ocorrida em 14 de outubro passado. Sua memória litúrgica, porém, celebra-se no dia 29 de maio, data de sua ordenação presbiteral.
Para marcar esta data, publicamos aqui nossa tradução de um artigo do Padre Corrado Maggioni, Sub-Secretário da Congregação para o Culto Divino, intitulado "Paolo VI e la Liturgia: Alcuni aspetti peculiari". Este artigo foi publicado no jornal L’Osservatore Romano do último dia 23 de julho e compartilhado pelo Padre Matias Augé em seu blog "Munus: Liturgia e dintorni" no dia seguinte.
O texto evidencia quatro aspectos da teologia litúrgica de São Paulo VI: o uso da língua vernácula, a participação do Povo de Deus, as celebrações papais e o culto mariano.
Paulo VI e a Liturgia: Alguns aspectos peculiares·
Pe. Corrado Maggioni
O ensinamento de Paulo VI em matéria litúrgica se pode
resumir dizendo que ele desejou, guiou, explicou, defendeu e promoveu a reforma
litúrgica, a fim de reformar a Igreja, já que é através da ação litúrgica que a
Igreja experimenta o encontro transfigurante com Cristo, por Cristo e em
Cristo. Sem a pretensão de abarcar todos os aspectos, recordamos alguns mais
significativos.
A
língua corrente como “voz da Igreja” em oração
Nos anos preparatórios ao Concílio foram
interrogados todos os Bispos do mundo acerca do uso da língua vulgar na
Liturgia. Existiam já algumas limitadas concessões da Sé Apostólica acerca do
uso da língua vulgar no Ritual Romano. As claras decisões dos Padres do Vaticano
II a este respeito foram progressivamente implementadas e ampliadas. Paulo VI
era bem consciente da gravidade da mudança da língua, mas ao mesmo tempo via
com lucidez que era necessária em virtude da participação do povo na Liturgia.
Eis algumas passagens do seu ensinamento a este respeito.
Assim Paulo VI se exprimia no histórico Ângelus de
07 de março de 1965, I Domingo da Quaresma: «Este domingo assinala uma data
memorável na história espiritual da Igreja, porque a língua falada entre
oficialmente no culto litúrgico, como haveis visto já esta manhã».
«A Igreja considerou esta disposição necessária – o
Concílio a sugeriu e deliberou – e isto para tornar inteligível e fazer
compreender a sua oração. O bem do povo exige este cuidado, de modo a tornar possível
a participação ativa dos fiéis no culto público da Igreja. É um sacrifício que
a Igreja fez da sua própria língua, o latim; língua sacra, grave, bela,
extremamente expressiva e elegante. Sacrificou tradições de séculos e sobretudo
sacrifica a unidade da linguagem nos vários povos em honra a esta maior
universalidade, para chegar a todos. E isto por vós, fiéis, para saibais melhor
unir-vos à oração da Igreja, para que saibais passar de um estado de simples
espectadores àquele de fiéis participantes e ativos e se souberdes
verdadeiramente corresponder a este cuidado da Igreja, tereis a grande alegria,
o mérito e a fortuna de uma verdadeira renovação espiritual» (Insegnamenti di Paolo VI, III [1965],
1131).
O valor da oração em língua corrente, chamada a
exprimir a «voz da Igreja» orante, foi recordado por Paulo VI no discurso ao
Congresso de tradutores dos livros litúrgicos, em 10 de novembro de 1965,
nestes termos: «Versiones, quae ante
promulgatam Constitutionem de Sacra Liturgia hic atque illic editae erant, eo
pertinebant, ut fideles ritus lingua Latina celebratos intellegerent; erant
videlicet subsidia populi, veteris huius linguae ignari. Nunc autem versiones
factae sunt partes ipsorum rituum, factae sunt vox Ecclesiae» (ibid., 599).
A instância da participação na Liturgia pela
compreensão da língua como «magnum
principium» a ser levado em conta, foi ressoada no discurso de Paulo VI na
oitava sessão do Consilium, em 19 de
abril de 1967, onde assim respondia a propósito de uma publicação polêmica em
defesa do latim: «Essa não edifica ninguém, e não traz portanto nenhuma
vantagem à causa que deseja defender, isto é, a conservação da língua latina na
Liturgia; questão esta digna certamente de toda atenção, mas não resolvível em
sentido contrário ao grande princípio, reafirmado pelo Concílio, da
inteligibilidade, a nível do povo, da oração litúrgica, nem daquele outro
princípio, hoje reivindicado pela cultura da coletividade, de poder exprimir os
próprios sentimentos, mais profundos e mais sinceros, em linguagem viva» (Insegnamenti di Paolo VI, V [1967],
167).
O mesmo pensamento reafirmou Paulo VI na Audiência
Geral de 26 de novembro de 1969, há apenas alguns dias do início, a 30 de
novembro, I Domingo do Advento, da adoção obrigatória na Liturgia do novo rito
da Missa nas dioceses italianas: «Não mais o latim será a linguagem principal
da Missa, mas a língua falada. Para quem conhece a beleza, a força, a
sacralidade expressiva do latim, certamente sua substituição pela língua vulgar
é um grande sacrifício: perdemos o modo de falar dos séculos cristãos, tornamo-nos
quase intrusos e profanos no recinto literário da expressão sagrada, e assim
perderemos grande parte daquele estupendo e incomparável patrimônio artístico e
espiritual que é o canto gregoriano. Temos, sim, razão para lamentarmos, e
quase para perdermo-nos: que coisa substituirá esta língua angélica? É um
sacrifício de inestimável preço. E por qual razão? Que coisa vale mais que este
altíssimo valor da nossa Igreja? A resposta parece banal e prosaica, mas é
válida, porque é humana, porque é apostólica. Vale mais a compreensão da oração
do que as vestes sedosas e antigas de que ela se vestiu regiamente; vale mais a
participação do povo, deste povo moderno cheio de palavras claras,
inteligíveis, traduzíveis na sua conversação profana. Se o divino latim nos
mantivesse segregados da infância, da juventude, do mundo do trabalho e dos
negócios, se fosse um diafragma opaco, em vez de um cristal transparente, nós,
pescadores de almas, faríamos bom cálculo em conservá-lo no domínio exclusivo
da conversação orante e religiosa? O que dizia São Paulo? Leia-se o capítulo 14
da Primeira Carta aos Coríntios: “Na assembleia prefiro dizer cinco palavras
segundo a minha inteligência para instruir também os outros, do que dez mil em
virtude do dom das línguas” (1Cor 14,19) » (Insegnamenti
di Paolo VI, VII [1969], 1128-1129).
A
participação do Povo de Deus
Desde o discurso de promulgação da Sacrosanctum Concilium (SC) em 04 de
dezembro de 1963, Paulo VI quis enfatizar o nexo entre Liturgia e Igreja, com
implicações também sobre a missão que essa é chamada a desempenhar no
mundo hodierno, eco em certo sentido da célebre afirmação de SC 10 que a
Liturgia é «fonte e ápice da vida da Igreja»: «A Liturgia (...) primeiro dom que
nós podemos oferecer ao povo cristão, que conosco crê e ora, e primeiro convite
ao mundo, para que solte em oração feliz e autêntica a sua língua muda e sinta
a inefável força regeneradora de cantar conosco os louvores divinos e as
esperanças humanas, por Cristo no Espírito Santo. Será bom que recolhamos como
tesouro este fruto do nosso Concílio, como aquilo que deve animar e
caracterizar a vida da Igreja».
Em outros termos, é posto em destaque o princípio
que recita: «A Liturgia faz a Igreja e a Igreja faz a Liturgia». O primado da
Liturgia é por isso vital para a Igreja; não é, de fato, clerical a Liturgia, uma
vez que diz respeito e envolve todo o povo de Deus, como recordava Paulo VI na
Audiência Geral de 20 de julho de 1966: «É conhecido por todos vós como a
primeira afirmação, a primeira reforma, a primeira renovação que o Concílio
Ecumênico deu à Igreja teve como objeto a Liturgia, isto é, a oração oficial da
Igreja mesma. Lembremo-nos bem! » (Insegnamenti
di Paolo VI, IV [1966], 817).
Sob esta ótica, Paulo VI tinha bem presente e pedia
para se ter presente «o propósito fundamental da Constituição Conciliar sobre a
Liturgia, que é aquele de restituir ao Povo de Deus a participação ativa na
celebração cultual» (Audiência Geral de 04 de janeiro de 1967: Insegnamenti di Paolo VI, V [1967], 6.)
E assim explicava na Audiência Geral de 06 de abril de 1966: «Participação: eis
uma das mais repetidas e das mais competentes afirmações do Concílio Ecumênico
a respeito do culto divino, da Liturgia; tanto que esta afirmação pode ser
considerada um dos princípios característicos da doutrina e da reforma
conciliar. (...) O pensamento da Igreja é claro: o povo cristão não deve
simplesmente e passivamente assistir às cerimônias do culto divino; deve
compreender o seu sentido e deve ser associado de modo que a celebração seja
plena, ativa e comunitária (cf. SC n. 21)» (Insegnamenti
di Paolo VI, IV [1966], 739-740).
Advertindo contra uma ideia imprópria de
participação vista como ativismo, sem envolvimento interior que se manifesta
depois de modo exterior, Paulo VI explicava o significado da reforma, apenas
iniciada, na Audiência Geral de 14 de setembro de 1966: «Gostaríamos que cada
um de vós acolhesse o convite feito pela Igreja aos seus filhos com a reforma
da Liturgia; reforma que sobretudo consiste em fazer “participar” os fiéis na
celebração do culto divino e da oração eclesial. Em que ponto se encontra a
vossa participação? É preciso, sobre este ponto, alcançar a unanimidade, o
quanto possível! Ai dos ausentes, ai dos indiferentes, ai dos tépidos, dos
indiferentes, dos retardatários! A vitalidade da Igreja depende, sob este
aspecto, da prontidão, da inteligência, do fervor de cada cristão, seja
ministro ou simples fiel» (Insegnamenti
di Paolo VI, IV [1966], 849).
Sendo inclusiva de todo o povo de Deus, a Liturgia
cuida também daqueles que, por distração ou ignorância, não têm plena
consciência do seu mistério. No discurso aos membros do Consilium em 19 de abril de 1967, Paulo VI convidava «a delinear
aquele rosto da sagrada Liturgia que nos mostre a verdade, a beleza, a
espiritualidade, e que deixe sempre melhor transparecer o Mistério Pascal nela
vivente, para a glória de Deus e para a regeneração espiritual das multidões
distraídas, mas sedentas, do mundo contemporâneo» (Insegnamenti di Paolo VI, V [1967], 168-169).
Na vigília das primeiras mudanças no modo de
celebrar a Missa, na Audiência de 19 de novembro de 1969, chamava a atenção
sobre o fato de que os fiéis «na Missa são e se sentem plenamente “Igreja”; (…)
sabei apreciar como a Igreja, mediante esta nova e difundida linguagem, deseja
dar maior eficácia à sua mensagem litúrgica, e deseja de maneira mais direta e
pastoral aproximar-se a cada um dos seus filhos e a todo o Povo de Deus» (Insegnamenti di Paolo VI, VII [1969],
1123-1124).
As
celebrações papais
Habituados por mais de cinquenta anos a ver o Papa
presidir a Liturgia, tanto em São Pedro como nos mais diversos lugares do
mundo, não sabemos hoje colher o impacto inovador desta práxis, tornada
habitual com Paulo VI. No costume precedente eram muito raras as liturgias em
São Pedro; na noite de Natal o Papa celebrava na Capela Sistina apenas para o
corpo diplomático. Pio XII nunca presidiu os ritos da Semana Santa. Começou a
fazê-lo João XXIII, que retomando as visitas às paróquias romanas na Quaresma
ali celebrava a Missa. Foi, portanto, Paulo VI a dar relevância às liturgias
papais: a noite de Natal em São Pedro, as celebrações pascais, do Domingo de
Ramos ao Tríduo Sacro, com a Vigília em hora noturna. Desejou também presidir
pessoalmente a celebração de alguns sacramentos, especialmente no Ano Santo de
1975.
Nos anos imediatamente sucessivos ao Vaticano II
(1965-1969), à luz do princípio conciliar segundo o qual os ritos devem
resplandecer de «nobre simplicidade» (SC, n. 34) e a arte a serviço da Liturgia
(vestes e ornamentos) «antes por uma nobre beleza que por mera suntuosidade» (SC,
n. 124), as celebrações pontifícias, em particular da Capela Papal, foram
transformadas de cerimônias derivadas da corte renascentista em celebrações da
assembleia litúrgica do Povo de Deus, presididas pelo Bispo de Roma. O Papa
vestia e celebrava como os livros litúrgicos prescreviam para o Bispo. Se era
normal que até então ninguém comungasse na Missa celebrada pelo Papa, começou
Paulo VI a distribuir pessoalmente a Comunhão aos fiéis desde a primeira Missa
celebrada em italiano, em 07 de março de 1965.
O Papa dirigia-se ao altar processionalmente,
precedido pelos acólitos, pelos diáconos e pelos concelebrantes; endossava as
vestes litúrgicas prescritas pela Introdução Geral do Missal Romano, não
revestindo mais a “falda”, mas uma túnica sem bordados, a casula elegante pela amplitude
e preciosidade do tecido, portando sobre os ombros o pálio e não mais o
“fânon”.
Assim observa Annibale Bugnini entre as suas
recordações: «A paixão com a qual Paulo VI atuou em primeira pessoa a reforma
litúrgica, a fé com a qual a celebrou, foram certamente o mais válido estímulo
aos Bispos para serem eles mesmos os primeiros responsáveis da vida litúrgica
das suas dioceses, os primeiros celebrantes» (La riforma liturgica [1948-1975], Centro Liturgico Vincenziano,
Roma, 1972, p. 789).
O
culto mariano
Se houve quem criticou como “antimariana” a reforma
“paulina”, se deve reconhecer que a reorganização da memória litúrgica de Maria
foi consequente aos princípios conciliares. Era necessária uma leitura lúcida e
objetiva da dimensão mariana da Liturgia renovada - Calendário, Missal,
Lecionário e Liturgia das Horas - e Paulo VI a proporcionou na Exortação Apostólica
Marialis cultus (02 de fevereiro de
1974).
Em um momento histórico difícil, entre tendências
opostas, foi como o acendimento de uma lâmpada que ajudou todos a ver melhor o
lugar de Maria na piedade litúrgica: os céticos encontraram convincentes
indicações para uma fundamentada piedade mariana; os partidários encontraram a
síntese de quanto queriam dizer sobre a comunhão orante com a Mãe de Cristo e
da Igreja; os tímidos encontraram motivos válidos para uma redescoberta da
presença viva de Maria no mistério do culto cristão; os nostálgicos encontraram
a explicação de que com a renovação litúrgica não se pretendia tirar nada da
Mãe de Deus, mas apenas purificar a fim de que resplandecesse melhor aquilo que
devia brilhar; os fanáticos encontraram indicados os limites de uma correta e
frutuosa devoção à Virgem Maria; os hostis, por fim, encontraram o necessário
convite a estimar, na oração comum e pessoal, a companhia e o exemplo de Maria.
Entre os ensinamentos contidos na Exortação Apostólica ressaltam-se três
aspectos.
Antes de tudo a consciência da dimensão “mariana”
da Liturgia. Herdeiro de uma época na qual a devoção mariana encontrava fôlego
sobretudo em “devoções” fora da Liturgia e paralelas a ela, a intenção de Paulo
VI foi de valorizar a devoção a Maria expressa antes de tudo nas ações
litúrgicas, sem esquecer os piedosos exercícios.
Em segundo lugar o nexo entre lex orandi - lex credendi,
em ordem à lex vivendi. A Marialis cultus contribuiu aos
desenvolvimentos litúrgico-marianos sucessivos, como a enriquecida segunda
edição do Missal Romano italiano (1983) e especialmente a Collectio Missarum de Beata Maria Virgine (1987), como também a Editio tertia del Missale Romanum (2002). Para tomar-se conta basta considerar os
acentos temáticos de alguns formulários da Collectio
que remetem à Marialis cultus, como
por exemplo Maria “discípula do Senhor” (n. 10), “mulher nova” (n. 20), “mestra
espiritual” (n. 32). Especialmente eloquente é o prefácio do formulário n. 26
(Virgem Maria, imagem e Mãe da Igreja), intitulado «Maria, modelo do autêntico
culto a Deus», cuja fonte direta são os números 17-20 da Marialis cultus. Não escapou a Paulo VI – várias vezes o retoma –
que venerar Maria significa viver como ela: «É impossível honrar a “cheia de
graça” sem honrar em si mesmo o estado de graça, isto é, a amizade com Deus, a
comunhão com Ele, a habitação do Espírito» (Marialis
cultus, n. 57).
Por fim, a solicitude pela piedade popular, que
sabe encorajar e orientar, acompanhando o crescimento harmônico da vida
espiritual. No relevante âmbito da piedade popular, a Marialis cultus teve o grande mérito de ter observado luzes e
sombras, indicando a estrada a percorrer para a renovação e a purificação da
piedade popular em geral, cujas linhas guias foram depois amadurecidas com o
Diretório sobre piedade popular e Liturgia (2002).
Fonte: Munus: Liturgia e dintorni (Blog de Matias Augé) / Tradução nossa.
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