domingo, 30 de dezembro de 2018

II Catequese do Papa João Paulo II sobre o Natal

João Paulo II
Audiência Geral
Quarta-feira, 3 de janeiro de 1979
Natal (2): Amor e respeito pela vida nascente

1. A última noite de expectativa da humanidade, que nos é recordada todos os anos pela liturgia da Igreja com a vigília e a festa da Natividade do Senhor, é ao mesmo tempo a noite em que a Promessa se cumpriu. Nasce Aquele que era esperado, que era o fim do Advento e não cessa de o ser. Nasce Cristo. Aconteceu uma vez, na noite de Belém, mas na liturgia repete-se cada ano, «realiza-se» em certo modo cada ano. E também cada ano é rico dos mesmos conteúdos, divinos e humanos, que superabundam a ponto de o homem não ser capaz de abrangê-los a todos com um só olhar; e é difícil encontrar palavras para exprimi-los todos juntos. Até o período litúrgico do Natal nos parece demasiado breve para nos determos neste acontecimento, que apresenta mais as características de «mysterium fascinosum» que as de «mysterium tremendum». Período demasiado breve para «gozarmos» plenamente a vinda de Cristo, o nascimento de Deus na natureza humana. Demasiado breve para evidenciarmos todos os fios deste acontecimento e deste mistério.
2. A liturgia centra a nossa atenção sobre um daqueles fios e coloca-o em especial relevo. O nascimento do Menino na noite de Belém deu início à Família. Por isso, o domingo durante a oitava do Natal é a festa da Família de Nazaré. É a Santa Família, porque foi plasmada pelo nascimento d'Aquele que até o seu «Adversário» será obrigado a proclamar um dia Santo de Deus (Mc 1,24). Família Santa, porque a santidade d'Aquele que nasceu se tornou a fonte duma singular santificação, tanto da sua Virgem-Mãe como do Esposo dela, que diante dos homens, como legítimo consorte, era considerado pai do Menino nascido durante o recenseamento em Belém.
Esta Família é, ao mesmo tempo, Família humana, e por isso a Igreja, no período natalício, dirige-se, por meio da Sagrada Família, a todas as famílias humanas. A santidade imprime nesta Família, em que veio ao mundo o Filho de Deus, um carácter único, excepcional, sem repetição e sobrenatural. E, ao mesmo tempo, tudo o que podemos dizer de cada família humana, da sua natureza, dos seus deveres e das suas dificuldades, podemos dizê-lo também desta Família Sagrada. Na verdade, esta Santa Família é verdadeiramente pobre; na altura do nascimento de Jesus, está sem teto, depois será obrigada a exilar-se e, quando o perigo tiver passado, continuará a ser uma família que vive modestamente, na pobreza, com o trabalho das próprias mãos.
A sua condição é semelhante à de tantas outras famílias humanas. É o lugar de encontro da nossa solidariedade com todas as famílias, com todas as comunidades de homem e mulher, em que nasce um novo ser humano. É uma Família que não fica unicamente sobre os altares, como objeto de louvor e veneração, mas, graças a tantos episódios que nos são conhecidos pelos Evangelhos de S. Lucas e S. Mateus, se aproxima, em certo modo, de toda a família humana. Toma sobre si aqueles problemas profundos, belos e ao mesmo tempo difíceis que a vida conjugal e familiar traz consigo. Quando lemos com atenção o que os Evangelistas (sobretudo Mateus) escreveram sobre os acontecimentos vividos por José e Maria antes do nascimento de Jesus, estes problemas, a que aludi, tornam-se ainda mais evidentes.
3. A solenidade do Natal e, no seu contexto, a festa da Sagrada Família, são-nos particularmente próximas e queridas, exatamente porque nelas se encontra a dimensão fundamental da nossa fé, quer dizer, o mistério da Encarnação, com a dimensão não menos fundamental das alternativas próprias do homem. Todos devem reconhecer que esta dimensão essencial das vicissitudes do homem é precisamente a família. E na família é-o a procriação: concebe-se e nasce um novo homem, e, por meio da concepção e do nascimento, o homem e a mulher, na qualidade de marido e mulher, tornam-se pai e mãe, atingindo uma dignidade nova e assumindo deveres novos. A importância destes deveres fundamentais é grandíssima sob múltiplos pontos de vista. Não só do ponto de vista desta comunidade concreta que é a família de ambos, mas também do ponto de vista de toda a comunidade humana, de toda a sociedade, nação, estado, escola, profissão e ambiente. Tudo depende, em princípio, do modo como os pais e a família vierem a cumprir os seus primeiros e fundamentais deveres, do modo e da medida como ensinarem a «ser homem» àquela criatura que, devido a eles se tornou um ser humano, obteve «a humanidade». Nisto é a família insubstituível. É necessário fazer tudo para que a família não tenha de ser substituída. É o que requer não só o bem «privado» de cada pessoa, mas também o bem comum de cada sociedade, nação e estado, de qualquer dos continentes. A família está colocada no centro mesmo do bem comum nas suas várias dimensões, exatamente porque nela é concebido e nasce o homem.
É necessário fazer todo o possível para que este ser humano - desde o princípio, desde o momento de ser concebido - seja querido, esperado e vivido como um valor particular, único e irrepetível. Ele deve sentir que é importante, útil, caro e de grande valor, mesmo que seja inválido ou diminuído; mais: por isto mais amado deve ser ainda.
Assim nos ensina o mistério da Encarnação. Esta é a lógica da nossa fé. Esta é também a lógica de todo o humanismo autêntico; penso de facto, que não pode ser doutro modo. Não procuramos pontos de encontro, que são a simples consequência da verdade plena sobre o homem. A fé não afasta os crentes desta verdade, mas introdu-los precisamente no coração dela.
4. Uma coisa mais. Na noite de Natal, a Mãe que ia dar à luz (Virgo Paritura) não encontrou para si um teto. Não encontrou as condições em que normalmente se realiza aquele divino e ao mesmo tempo humano Mistério de dar à luz um homem.
Permiti-me que me sirva da lógica da fé e da lógica dum humanismo consequente. Este facto, de que falo, é um clamoroso brado, é um permanente desafio a cada um e a todos, especialmente na nossa época, em que à mãe que anda de esperança é muitas vezes exigida uma grande prova de coerência moral. Com efeito, o que é eufemisticamente definido como «interrupção da gravidez» (aborto) não pode ser apreciado com outras categorias autenticamente humanas que não sejam as da lei moral, isto é, da consciência. Muito poderiam a tal propósito dizer, se não as confidências feitas nos confessionários, sem dúvida as apresentadas nos consultórios para a maternidade responsável.
Não se pode, por conseguinte, deixar sozinha a mãe que vai dar à luz, deixá-la com as suas dúvidas, dificuldades e tentações. Devemos estar ao lado dela, para que tenha suficiente coragem e confiança, para que não sobrecarregue a sua consciência, e para que não seja destruído o mais fundamental vínculo de respeito do homem pelo homem. De facto, tal é o vínculo que tem início no momento da concepção, em virtude do qual todos devemos, em certo modo, estar com cada uma das mães que vão dar à luz; e devemos oferecer-lhe todo o auxílio possível.
Olhemos para Maria: Virgo Paritura (Virgem que dará à luz). Olhemos para ela, nós Igreja, nós homens, e procuremos compreender melhor a responsabilidade que traz consigo o Natal do Senhor para com todos os homens que devem nascer na terra. Por agora, detemo-nos neste ponto e interrompemos estas considerações: certamente haveremos, e não uma só vez, de voltar a elas.


Fonte: Santa Sé

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