A possibilidade da salvação perfeita
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo!» Quantas vezes ouvimos, quantas
rezamos estas palavras… Repetindo-as, não nos repetimos a nós, antes avançamos
para onde devemos avançar; antes nos retomamos aonde nos devemos
retomar. Aonde o próprio Deus nos retomou. Aonde o próprio Deus criou e
pôde encontrar depois um “sim” perfeito da criatura: «Eis a escrava do Senhor:
faça-se em mim segundo a tua palavra». Para nos poder dizer sim a nós, em
Cristo, o Filho de Maria.
Foi uma longuíssima história, justamente chamada “da
salvação”. Reiterados apelos de Deus, para formar um povo que fosse
inteiramente seu. Confrontados com reiteradas resistências e desistências da
parte do mesmo povo. A história do povo antigo vale pela história dos demais,
em que nunca se extinguiu nem extingue o apelo a todas as criaturas para não se
separarem do seu Criador, como a toda a humanidade para não se esconder do seu
Deus.
Até que finalmente – na plenitude que este advérbio exige –
Deus recriou, com a Imaculada Conceição de Maria, a possibilidade incólume da
salvação perfeita. A salvação que d’Ela nasceria depois: Jesus Cristo, o Homem
Novo, que nos trouxe de Deus a divinização também.
Percebamos o que estamos a celebrar, tanto quanto possamos e
para obtermos maior fruto. A Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria é a
possibilidade que Deus para si criou de incarnar numa humanidade intacta, como
Maria a teve e conservou desde o primeiro momento da sua existência. Como “nova
terra”, onde a humanidade nova acontecesse por fim. Como alvorada plena do Sol
de Jesus.
Ouçamos um autor antigo, São Pedro Crisólogo: «Aquele que,
sem nascer, fez o homem de barro intacto, fez-Se homem nascendo de um corpo
também intacto [o de Maria]. A mão que se dignou tomar o barro para formar o
nosso corpo, também se dignou tomar a nossa carne para nos salvar» (S. Pedro
Crisólogo, Sermão 148).
Não se poderia dizer melhor, nem mais certo. Importa
agradecer e assimilar tão grande graça. “Graça”, precisamente, dom criador do
nosso Deus, que em Maria recriou o mundo, na pessoa de Cristo, “bendito fruto
do seu ventre”.
Leiamos as primeiras palavras do Testamento Antigo: «No
princípio criou Deus os céus e a terra, a terra era informe e vazia e as trevas
cobriam o abismo, e o espírito de Deus movia-se sobre as águas.» (Gn 1,1-2).
Depois, Deus “diz” e tudo vai aparecendo, até à criação do homem.
Porém, como ouvimos há pouco, o que podia ter sido comunhão
do homem com o seu Criador tornou-se desobediência e escondimento, separação e
morte, afastamento da fonte da vida.
Mas lemos também, felizmente lemos, o princípio do Novo
Testamento. Consente o paralelismo: O que era terra intacta é agora a Virgem
Imaculada; o espírito é agora o poder recriador de Deus, que fará Cristo
nascer: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a
sua sombra. Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus».
Maria é saudada como “cheia de graça”, imaculada portanto e
obediente em tudo ao que Deus lhe propõe. A criação renasce magnificamente assim.
Ouçamos outro trecho das origens cristãs, dizendo que Deus esperou tanto «a fim
de que, tendo-nos convencido, naquele tempo [antigo], de que pelas nossas
próprias obras éramos indignos da vida, nos tornássemos dignos dela pela
benignidade divina e, reconhecendo a nossa impossibilidade de entrar pelas
próprias forças no reino de Deus, pudéssemos ter acesso a ele mediante o poder
de Deus» (Carta a Diogneto, 8, 5).
A Imaculada Conceição surpreende a expetativa humana -
expetativa que o próprio Criador suscita e culmina. Corresponde ao sentimento
que temos da incapacidade para, só por nós, chegarmos ao cume que o coração
adivinha. O nosso coração, como sentimento profundo, só se sacia pulsando com
Deus. Aconteceu no Imaculado Coração de Maria, preenchido pela graça de Deus
Redentor.
As crianças de Fátima – duas delas já canonizadas –
perceberam-no inteiramente. Vislumbraram o Céu, na Senhora que de lá vinha.
Horrorizaram-se com o seu contrário, na visão do Inferno. Ouviram o remédio: o
Imaculado Coração de Maria. Esse mesmo Coração que Deus preparou para nascer no
mundo e salvá-lo em Cristo.
Irmãos caríssimos: É bom e belo celebrar a Imaculada
Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal. Como é verdadeiro,
quando reconhecemos o seu essencial porquê. E quando, reconhecendo-o, somos
coerentes agora. A novidade absoluta, que nos é dada em Cristo, só pôde nascer
n’Aquela Mãe que Deus para si criou no mundo. Acolhendo e agradecendo esta
absoluta novidade, permitamos que a graça divina nos refaça também. – Como é
importante e urgente que a Santa Madre Igreja se assemelhe sempre e mais à
Santa Mãe de Cristo, repudiando tudo o que não seja assim!
Três consequências, tão espirituais como práticas, resta
acrescentar. Primeira: Agradecer a resposta divina à expetativa humana,
recriando tudo em Cristo, que só em Maria pôde então incarnar. Segunda:
Celebrar coerentemente a Imaculada Conceição de Maria, tomando-A como Mãe,
exemplo e apelo do que toda a Igreja há de ser, com o mesmo fim. Terceira:
Conseguirmos nós, por ação da graça, concluir em cada um o que nela
começou.
Como ouvimos na Segunda Leitura: «Deus escolheu-nos em
Cristo, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em
caridade, na sua presença». Cristo foi o bendito fruto do ventre de Maria – de
Maria que foi o antecipado fruto da redenção de Cristo. Tudo pela divina graça
que nos batiza a nós – a nós, para frutificarmos evangelicamente agora.
Como São Paulo também escreveu, na Carta aos Romanos, «até a criação se
encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8,19).
– Não demoremos a resposta, ecoemos em nós o “sim” de Maria! Nas famílias e na
sociedade, nas escolas e nas empresas, nos hospitais, nas prisões, aqui e seja
onde for, não retardemos o Evangelho que com Maria começou!
Sé de Lisboa, 8 de
dezembro de 2018
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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