Pe. Raniero
Cantalamessa, OFMCap
III Pregação de Advento
21/12/2018
"Ninguém jamais viu a
Deus"
“O Deus vivo é a Trindade viva”, afirmamos da última vez.
Mas nós estamos no tempo e Deus está na eternidade. Como superar essa
"infinita diferença qualitativa"? Como lançar uma ponte em um abismo
tão infinito? A resposta está na solenidade que estamos nos preparando para
celebrar: "O Verbo se fez carne e veio habitar no meio de Deus".
Entre nós e Deus - escreveu o
grande teólogo bizantino Nícolas Cabasilas - erguiam-se três muros de
separação: o da natureza, porque Deus é espírito e nós somos carne, o do
pecado, o da morte. O primeiro desses muros foi derrubado na encarnação, quando
a natureza humana e a natureza divina se uniram na pessoa de Cristo; o muro do
pecado foi derrubado na cruz e o muro da morte na ressurreição. Jesus Cristo é
agora o lugar definido do encontro entre o Deus vivo e o homem vivo. Nele, o
Deus distante tornou-se próximo, o Emanuel, o Deus-conosco.
O caminho de busca pelo Deus
vivo que nós empreendemos neste Advento teve um precedente ilustre: "O
itinerário da mente para Deus" (Itinerarium mentis in Deum)
de São Boaventura. Como filósofo e teólogo especulativo, ele identifica sete
passos pelos quais a alma ascende ao conhecimento de Deus. São:
A visão dele através de seus
vestígios no universo.
A contemplação de Deus em seus
vestígios nesse mundo sensível.
A contemplação de Deus através
da sua imagem impressa nas faculdades naturais.
A contemplação de Deus na sua
imagem renovada pelos dons da graça.
A visão da beatíssima Trindade
em seu nome, isto é, o bem.
O arrebatamento místico da
alma na qual o trabalho do intelecto cessa enquanto o amor atravessa
inteiramente para dentro de Deus.
Depois de ter analisado os
vários meios que temos para elevar-nos ao conhecimento do Deus vivo e os
"lugares" onde podemos encontrá-lo – a criação, os seus vestígios no
mundo sensível, nas faculdades naturais, na sua imagem impressa em nós, na
contemplação da unidade e trindade de Deus – são Boaventura chega à conclusão
de que o meio definitivo, infalível e suficiente é a pessoa de Jesus Cristo.
Assim conclui o seu tratado:
Agora: à alma só lhe resta ir
além de tudo isso com a contemplação, e ir além do mundo sensível, não só, mas
até além de si mesma. Nesta passagem, Cristo é caminho e porta. Cristo é escada
e veículo como propiciatório posto sobre a arca de Deus e sacramento escondido
ao longo dos séculos.
O filósofo Blaise Pascal, em
seu famoso Memoriale,
chega à mesma conclusão: o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó "é
encontrado apenas pelos caminhos ensinados no Evangelho". A razão para
isso é simples: Jesus Cristo é "o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16). A
Carta aos Hebreus baseia nisso a novidade do Novo Testamento:
"Muitas vezes e de
diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente
nos falou por seu Filho, que constituiu herdeiro universal, pelo qual criou
todas as coisas." "(Hb 1,1-2).
O Deus vivo já não nos fala
através de uma pessoa interposta, mas pessoalmente, porque o Filho "é
irradiação da sua glória e marca da sua substância" (Hb 1, 3). Isso do
ponto de vista ontológico e objetivo. Do ponto de vista existencial, ou
subjetivo, a grande notícia é que agora não é mais o homem que,
"tateando" (At 17,2), vai em busca do Deus vivo; é o Deus vivo que
desce em busca do homem até habitar em seu próprio coração. É lá que a partir
de agora pode ser encontrado e adorado em espírito e verdade: "Se alguém
me ama, diz Jesus, guarde minha palavra e meu Pai o amará e nós viremos a ele e
passaremos a morar com ele" (Jo 14,23).
Quem se apoiou nessa verdade – ou seja, que Jesus Cristo é o
supremo revelador do Deus vivo e o "lugar" onde se entra em contato
com ele - foi o evangelista João. Contamos com ele para nos ajudar a fazer da
busca pelo Deus vivo algo mais do que uma simples "busca", mas uma
"experiência" dele, ter não apenas o conhecimento, mas um
"sentimento" vivo.
Para não perder a força e o
imediatismo de seu testemunho inspirado, evitamos impor qualquer quadro
interpretativo aos textos. Vamos simplesmente rever as palavras mais explícitas
em que o próprio Jesus se apresenta como o revelador definitivo de Deus. Cada uma
dessas palavras é capaz, por si só, de nos levar à beira do mistério e nos
fazer entrever um horizonte infinito.
João 1, 18: "Ninguém
jamais viu a Deus. O filho único que está no seio do Pai foi quem o
revelou". Para entender o significado dessas palavras, é preciso
referir-se a toda a tradição bíblica de Deus que não pode ser visto sem morrer.
Basta ler Êxodo 33, 18-20: "Moisés disse: ‘Mostrai-me vossa glória’. E
Deus respondeu: ‘Vou fazer passar diante de ti todo o meu esplendor, e
pronunciarei diante de ti o nome de Javé. Dou a minha graça a quem quero, e uso
de misericórdia com quem me apraz. Mas – ajuntou o Senhor – não poderás ver a
minha face, pois o homem não me poderia ver e continuar a viver’".
Existe um abismo tal entre a
santidade de Deus e a indignidade do homem que este deveria morrer vendo a Deus
ou apenas ouvindo-o. Portanto, Moisés (Êxodo 3,69) e também os serafins (Is
6,2) escondem seus rostos diante de Deus. Permanecendo vivos depois de ver a
Deus, a pessoa sente uma grata surpresa (Gn 32,31). É um favor raro que Deus
concede a Moisés (Ex 33,11) e Elias (1Rs 19,11s.) que serão significativamente
os dois admitidos no Tabor para contemplar a glória de Cristo.
João 10,30: "Eu
e o Pai somos um". É talvez a afirmação mais carregada de mistério
em todo o Novo Testamento. Jesus Cristo não é apenas o revelador do Deus vivo:
ele é o próprio Deus vivo! O revelador e revelação são a mesma pessoa. A
reflexão da Igreja começará dessa afirmação para chegar à fé plena e explícita
no dogma trinitário. O que nós traduzimos com a expressão "um" é um
substantivo neutro (en em
grego, unum em
latim). Se Jesus tivesse usado o masculino eis, unus a conclusão
seria que Pai e Filho são uma mesma pessoa e a doutrina da Trindade teria sido
excluída na raiz. Ao dizer "unum", apenas uma coisa, os Padres
corretamente deduzirão que Pai e Filho (e mais tarde o Espírito Santo) são uma
mesma natureza, mas não uma única pessoa.
João 14,6-7: "Jesus
lhe respondeu: 'Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão
por mim'". Aqui temos que nos alongar um pouco mais.
"Ninguém vem ao Pai senão por mim": lidos no contexto atual do
diálogo inter-religioso, estas palavras colocam uma questão que não podemos
passar em silêncio. O que pensar de toda aquela parte da humanidade que não
conhece a Cristo e o seu Evangelho? Nenhum deles vai ao Pai? Estão excluídos da
mediação de Cristo e, portanto, da salvação?
Uma coisa é certa: daí deve
partir toda teologia cristã das religiões: Cristo deu a sua vida "em
resgate" e por amor de todos os homens, porque todos são criaturas do seu
Pai e seus irmãos. Ele não fez distinções. Com certeza, a sua oferta de
salvação é universal. "E quando eu for levantado da terra (na cruz!),
atrairei todos a mim" (Jo 12,32); "Em nenhum outro há salvação,
porque debaixo do céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos
ser salvos", proclama Pedro perante o Sinédrio (At 4,12).
Alguns, embora professando-se
fieis cristãos, não conseguem admitir que um fato histórico particular, como é
a morte e a ressurreição de Cristo, possa ter mudado a situação de toda a
humanidade diante de Deus, e, portanto, substituem o evento histórico com um
começo universal "impessoal". Estes, creio eu, deveriam colocar-se
outra questão, isto é, se eles realmente acreditam no mistério que mantém de pé
ou derruba todo o cristianismo: a encarnação do Verbo e a divindade de Cristo,
que, uma vez admitida, não parece mais absurdo para a razão que um determinado
ato possa ter um alcance universal. Seria estranho pensar o contrário.
O maior erro, ao privar desse
alcance uma grande parcela da humanidade, não se comete com Cristo ou com a
Igreja, mas com a própria humanidade. Não é possível partir da afirmação que
"Cristo é a suprema, definitiva e normativa proposta de salvação feita por
Deus ao mundo", sem reconhecer a todos os homens o direito de se
beneficiar desta salvação?
"Mas é realista - resta
saber - continuar a acreditar em uma misteriosa presença e influência de Cristo
nas religiões que existiam antes dele e que não sentem nenhuma necessidade,
depois de vinte séculos, de acolher o seu evangelho?" Há, na Bíblia, um
fato que pode nos ajudar a responder a essa objeção: a humildade de Deus, o
escondimento de Deus. "Tu es um Deus escondido, Deus de Israel
salvador": Vere tu es Deus
absconditus (Is 45,15 - Vulgata). Deus é humilde no criar. Não coloca seu
rótulo em tudo, como fazem os homens. Não está escrito nas criaturas que elas
foram feitas por Deus. Foi deixado a elas descobrir.
Quanto tempo demorou para que
o homem reconhecesse a quem devia o ser, quem tinha criado para ele o céu e a
terra? Quanto tempo levará ainda para que todos consigam reconhecê-lo? Por este
motivo, Deus deixa de seja o criador de tudo? Ele deixa de aquecer com o seu
sol quem o conhece e quem não o conhece? O mesmo acontece na redenção. Deus é
humilde ao criar e é humilde ao salvar. Cristo está mais preocupado que todos
os homens sejam salvos, do que eles saibam quem é o seu Salvador.
Mais do que da salvação daqueles
que não conheceram a Cristo, teríamos de nos preocupar, penso eu, com a
salvação daqueles que o conheceram, se viveram como se nunca tivesse existido,
esquecidos totalmente do seu batismo, estranhos à Igreja e às práticas
religiosas. Quanto à salvação dos primeiros, a Escritura nos garante que “Deus
não faz distinção de pessoas, mas em toda nação lhe é agradável aquele que o
temer e fizer o que é justo." (At 10,34-35). Francisco de Assis, por sua
vez, faz uma afirmação quase inacreditável para o seu tempo: "Todo bem que
se encontra nos homens, pagãos ou não, deve referir-se a Deus, fonte de todo
bem".
O Paráclito vos ensinará toda a verdade
Falando do papel de Cristo em relação às pessoas que vivem
fora da Igreja, o Concílio Vaticano II afirma que "o Espírito Santo, de
uma maneira conhecida apenas por Deus, dá a cada pessoa a oportunidade de
entrar em contato com o mistério pascal de Cristo", ou seja, com a sua
obra redentora (Gaudium
et spes, 22). Assim, alcançamos o último estágio do nosso caminho, o
Espírito Santo. No final da sua vida terrena, Jesus dizia:
"Muitas coisas ainda
tenho a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Paráclito, o
Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade, porque não falará por si
mesmo, mas dirá o que ouvir, e vos anunciará as coisas que virão. Ele me
glorificará, porque receberá do que é meu, e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai
possui é meu. Por isso, disse: Há de receber do que é meu, e vo-lo anunciará.”
(Jo 16,12-15).
No Espírito Santo é ainda
Jesus quem continua a revelar-nos o Pai, porque o Espírito Santo é agora o
Espírito do Ressuscitado, o Espírito que continua e aplica a obra do Jesus
terreno. Logo após as palavras que acabamos de mencionar, Jesus acrescenta: "Disse-vos
essas coisas em termos figurados e obscuros. Vem a hora em que já não vos
falarei por meio de comparações e parábolas, mas vos falarei abertamente a
respeito do Pai." Quando Jesus será capaz de falar abertamente
aos discípulos do Pai, se estas foram das últimas palavras que ele pronunciou
em vida e logo depois morrerá na cruz? Ele o fará, precisamente, através do
Espírito Santo que enviará do Pai.
São Gregório de Nissa
escreveu: "Se tirarmos de Deus o Espírito Santo, o que resta não é mais o
Deus vivo, mas o seu cadáver". É o próprio Jesus quem explica a razão
disso. "O Espírito é que vivifica, a carne de nada serve" (Jo 6,63).
Aplicado ao nosso caso, isso significa: é o Espírito que dá a vida à ideia de
Deus e à busca por ele. A razão humana, marcada como está pelo pecado, sozinha,
não é suficiente. O homem que está prestes a falar de Deus, sob qualquer
título, se é um crente, deve lembrar que "as coisas de Deus ninguém as
conhece, a não ser o Espírito de Deus" (1Cor 2,11).
O Espírito Santo é o
verdadeiro "ambiente vital", o Sitzt im Leben, no qual
nasce e se desenvolve toda autêntica teologia cristã. O Espírito Santo é aquele
espaço invisível no qual é possível perceber a passagem de Deus e no qual o
próprio Deus aparece uma realidade viva e ativa. O Deus vivo, ao contrário dos
ídolos, é um "Deus que respira" e o Espírito Santo é o seu fôlego.
Isso é verdade também com relação a Cristo. "No Espírito Santo"
indica aquela área misteriosa na qual, depois de sua ressurreição, é possível
entrar em contato com Cristo e experimentar a sua ação santificadora. Ele agora
vive "no Espírito" (Rm 1,4; 1Pd 3,18). O Espírito Santo é, na
história, "o sopro do Senhor ressuscitado".
O grande circuito elétrico
entre Deus e o homem não se fecha, portanto, e o súbito lampejo de luz é
produzido apenas dentro desse "campo magnético" especial que é
constituído pelo Espírito do Deus vivo. É ele quem cria na intimidade do homem
aquele estado de graça no qual um dia se chega a ter a grande
"iluminação": descobre-se que Deus existe, é real, até "perder o
fôlego".
Para aqueles que buscam a Deus
em outro lugar, somente nas páginas de livros ou nos raciocínios humanos,
deve-se repetir o que o anjo disse às mulheres: "Por que buscais entre os
mortos aquele que está vivo?" (Lc 24,5) Do Espírito Santo - escreve são
Basílio - depende "a familiaridade com Deus". Depende, ou seja, se
Deus nos é familiar ou, pelo contrário, estranho, se somos sensíveis, ou, pelo
contrário, alérgicos à sua realidade.
O remédio é, portanto,
redescobrir um contato cada vez mais completo com a realidade, e mais, com a
pessoa, do Espírito Santo. Não ficarmos satisfeitos nem mesmo com uma
pneumatologia renovada, ou seja, com uma teologia do Espírito,
mas aspirar a fazer também uma experiência pessoal
dele. Milhões de cristãos do nosso tempo fizeram uma experiência forte do novo
Pentecostes desejado por São João XXIII. Veja como um daqueles que primeiro fez
essa experiência, na Igreja Católica, descreve seus efeitos a um amigo:
"A nossa fé se tornou
viva; a nossa crença se tornou um tipo de conhecimento. De repente, o
sobrenatural tornou-se mais real do que natural. Em resumo, Jesus é uma pessoa
viva para nós. Tente abrir o Novo Testamento e lê-lo como se fosse literalmente
verdade agora, cada palavra, cada linha. A oração e os sacramentos tornaram-se
verdadeiramente nosso pão de cada dia, e não práticas piedosas genéricas. Um
amor pelas Escrituras que eu nunca teria acreditado possível, uma transformação
dos nossos relacionamentos com os outros, uma necessidade e uma força para
testemunhar além de todas as expectativas: tudo isso se tornou parte da nossa
vida. A experiência inicial do batismo do Espírito não nos deu uma emoção
externa particular, mas a vida se tornou impregnada de calma, confiança,
alegria e paz".
"E o Verbo se fez carne"
Uma meditação sobre o papel de Cristo revelador único do
Deus vivo não pode ser concluída mais dignamente do que recitando juntos o
Prólogo de João. Não como uma passagem do evangelho a ser comentada - isso
faremos no dia de Natal - mas como um hino de louvor que jorra agora do nosso
coração para a glória da Santíssima Trindade. Que uma porção tão representativa
da Igreja, em um lugar como este, proclame a sua absoluta fé em Cristo
Filho de Deus e luz do mundo tem um valor salvífico. Em um ato de fé como este,
Cristo fundou a sua Igreja e prometeu que "os poderes dos infernos não
prevalecerão contra ela". Vamos recitar juntos de pé com o coração cheio
de admiração e gratidão:
No princípio era o Verbo, e o
Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo
foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a
vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas
não a apreenderam [...]. Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem; ele
vinha ao mundo. Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele; mas o
mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam. Mas
a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus: aos que creem
em seu nome, eles, que não foram gerados nem do sangue, nem de uma vontade da
carne, nem de uma vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, e
habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como
Filho único, cheio de graça e de verdade. [...]. Ninguém jamais viu a Deus: o
Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer.
Santo Padre, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs, Feliz Natal!
Fonte: Vatican News
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