quinta-feira, 7 de julho de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Introdução 10

Concluindo a seção introdutória das suas Catequeses sobre o Creio, o Papa São João Paulo II refletiu sobre a fé enraizada na Palavra de Deus e a importância do diálogo ecumênico.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL

19. A fé enraizada na Palavra de Deus
João Paulo II - 19 de junho de 1985

1. Retomemos o discurso sobre a fé. Segundo a doutrina contida na Constituição Dei Verbum, a fé cristã é a resposta consciente e livre do homem à autorrevelação de Deus, que em Jesus Cristo atingiu a sua plenitude. Mediante o que São Paulo chama “a obediência da fé” (cf. Rm 16,26; 1,5; 2Cor 10,5-6), o homem abandona-se totalmente a Deus, aceitando como verdade aquilo que está contido na palavra da Divina Revelação. A fé é obra da graça que age na inteligência e na vontade do homem, e, ao mesmo tempo, é um ato consciente e livre do sujeito humano.
A fé, dom de Deus ao homem, é também uma virtude teologal, e contemporaneamente uma disposição estável do espírito, isto é, um hábito ou atitude interior duradoura. Ela exige, portanto, que o homem crente a cultive continuamente, cooperando ativa e conscientemente com a graça que Deus lhe oferece.

João Paulo II durante Celebração Ecumênica (2000):
O diálogo ecumênico será destacado na Catequese n. 20

2. Uma vez que a fé encontra sua fonte na Revelação Divina, um aspecto essencial da colaboração com a graça da fé é dado pelo constante e, quanto possível, sistemático contato com a Sagrada Escritura, na qual nos é transmitida a verdade revelada por Deus na sua forma mais genuína. Isso encontra expressão múltipla na vida da Igreja, como lemos também na Constituição Dei Verbum:
“Toda a pregação eclesiástica, assim como a própria religião cristã, deve se nutrir e ser conduzida pela Sagrada Escritura. (...) tão grande é a força e o poder da Palavra de Deus que ela constitui o sustento e o vigor da Igreja e é para os seus filhos fortaleza da fé, alimento da alma e fonte pura e perene da vida espiritual, de modo que se aplicam de modo insigne à Sagrada Escritura as palavras: ‘A Palavra de Deus é viva e eficaz’ (Hb 4,12), ‘que tem poder para edificar e dar a herança a todos os que foram santificados’ (At 20,32; cf. 1Ts 2,13)” (Dei Verbum, n. 21).

3. Eis porque a Constituição Dei Verbum, referindo-se ao ensinamento dos Padres da Igreja, não hesita em colocar juntas as «duas mesas», isto é, a mesa da Palavra de Deus e a mesa do Corpo do Senhor, e faz notar que a Igreja não cessa, sobretudo na sagrada Liturgia, “de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida” de ambas mesas (ibid.). Efetivamente, a Igreja sempre considerou e continua considerando a Sagrada Escritura, juntamente com a Sagrada Tradição, “como sua suprema regra de fé” (ibid.), e como tal a oferece aos fiéis para sua vida cotidiana.

4. Daqui derivam algumas indicações práticas de grande importância para a consolidação da fé na Palavra do Deus vivo. Aplicam-se de modo particular aos Bispos, “depositários da doutrina apostólica” (Santo Irineu, Adversus Haereses IV, 32, 1; PG 7, 1071), os quais “foram estabelecidos pelo Espírito Santo para apascentar a Igreja de Deus” (cf. At 20,28); mas, ao mesmo tempo, também a todos os outros membros do povo de Deus: os presbíteros, especialmente os párocos; os diáconos; os religiosos; os leigos; as famílias.
Antes de tudo “os fiéis devem poder ter amplo acesso à Sagrada Escritura” (Dei Verbum, n. 22). Aqui surge a questão das traduções dos livros sagrados. “A Igreja, desde os seus primórdios, acolheu como sua aquela antiquíssima versão grega do Antigo Testamento denominada dos Setenta (Septuaginta) e tem sempre grande apreço pelas outras versões orientais e latinas, de modo especial a que se denomina Vulgata” (ibid.). A Igreja procura também incessantemente que “se façam traduções adequadas e corretas nas diversas línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos Livros Sagrados” (ibid.).
A Igreja não é contrária à iniciativa de traduções em colaboração “com os irmãos separados” (ibid.), as chamadas traduções ecumênicas. Estas, com a oportuna permissão da Igreja, podem ser utilizadas também pelos católicos.

5. A tarefa seguinte se relaciona à correta compreensão da palavra da Divina Revelação: o “intellectus fidei”, que culmina na teologia. A este respeito o Concílio recomenda “o adequado estudo dos Santos Padres - tanto do Oriente como do Ocidente - assim como das sagradas Liturgias” (ibid., n. 23), e atribui uma grande importância ao trabalho dos exegetas e dos teólogos, sempre em íntima relação com a Sagrada Escritura: “A Sagrada Teologia se apoia, conjuntamente, como num fundamento perene, na Palavra de Deus escrita e na Sagrada Tradição, no qual ela firmemente se fortalece e sempre rejuvenesce, perscrutando toda a verdade contida no mistério de Cristo sob a luz da fé. (...) desta forma, o estudo da Sagrada Página seja como que a alma da Sagrada Teologia” (ibid., n. 24).
O Concílio dirige um apelo aos exegetas e a todos os teólogos para que ofereçam “ao povo de Deus o alimento das Escrituras, que ilumina a mente, fortalece a vontade e inflama o coração dos homens no amor de Deus” (ibid., n. 23). Conforme ao que foi dito antes sobre as regras da transmissão da Revelação, os exegetas e os teólogos devem exercer a sua missão “sob a vigilância do Sagrado Magistério” (ibid.) e, ao mesmo tempo, com a aplicação dos subsídios convenientes e métodos científicos (cf. ibid.).

6. Em seguida se abre o vasto e múltiplo ministério da Palavra na Igreja: “A pregação pastoral, a catequese e toda instrução cristã, na qual deve ter lugar preeminente a homilia litúrgica...”. Todo este ministério “se nutre com a palavra da Escritura” (cf. ibid., n. 24).
Portanto, a todos aqueles que exercem o serviço da Palavra recomenda-se que comuniquem aos fiéis “as vastíssimas riquezas da Palavra divina” (ibid., n. 25). Para este fim é indispensável a leitura, o estudo e a meditação-oração, a fim de que não se tornem “pregadores vazios e superficiais da Palavra de Deus, que não a escutam em seu interior” (Santo Agostinho, Sermo 179, 1; PL 38, 966).

7. O Concílio dirige tal exortação a todos os fiéis, fazendo referência às palavras de São Jerônimo: “Pois ignorar as Escrituras é ignorar o Cristo” (São Jerônimo, Commentarium in Isaiam, Prologus; PL 24, 17). O Concílio recomenda, pois, a todos não só a leitura, mas também a oração, que deve acompanhar a leitura da Sagrada Escritura: “pela leitura e estudo dos Livros Sagrados (...) o tesouro da Revelação, confiado à Igreja, enche sempre mais os corações dos homens” (Dei Verbum, n. 26). Tal “encher o coração” caminha lado a lado com a consolidação do nosso “creio” cristão na Palavra do Deus vivo.

20. A fé e o empenho pela unidade dos cristãos
João Paulo II - 26 de junho de 1985

1. A autorrevelação de Deus, que atingiu a sua plenitude em Jesus Cristo, é a fonte da fé cristã: isto é, daquele “creio” ao qual a Igreja dá expressão nos Símbolos da Fé. Todavia, no âmbito desta fé cristã, durante os séculos se verificaram várias fraturas e cisões. “Todos confessam serem discípulos do Senhor, embora [as Comunhões cristãs] tenham opiniões diversas e andem por caminhos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse dividido (cf. 1Cor 1,13)” (Unitatis redintegratio, n. 1). “Ora, Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja,  e, no entanto, muitas Comunhões cristãs se apresentam aos homens como a verdadeira herança de Jesus Cristo” (ibid.), em divergência umas das outras e principalmente da Igreja católica, apostólica, romana.

2. A dizer verdade, desde os tempos apostólicos se lamentam divisões entre os seguidores de Cristo, e São Paulo severamente reprende aos responsáveis como merecedores de condenação (1Cor 11,18-19; Gl 1,6-9; cf. 1Jo 2,18-19; Unitatis redintegratio, n. 3). As divisões não faltaram tampouco nos tempos pós-apostólicos. Particular atenção merecem aquelas que “aconteceram no Oriente (...) pela contestação das fórmulas dogmáticas dos Concílios de Éfeso e Calcedônia” (Unitatis redintegratio, n. 13), referentes à relação entre a natureza divina e a natureza humana de Jesus Cristo [1].

3. Todavia, devem-se nomear aqui sobretudo as duas divisões maiores, a primeira das quais diz respeito ao Cristianismo sobretudo no Oriente, e a segunda no Ocidente. A ruptura no Oriente, o chamado cisma oriental, ligado à data de 1054, ocorreu “pela ruptura da comunhão eclesiástica entre os Patriarcados orientais e a Sé Romana” (ibid.). Como consequência desta ruptura, existem no âmbito do Cristianismo a Igreja Católica (Romana) e a Igreja ou Igreja Ortodoxas, cujo centro histórico se encontra em Constantinopla [2].
“Outras (divisões) despois, após mais de quatro séculos, surgiram no Ocidente por causa dos acontecimentos comumente conhecidos pelo nome de “Reforma” [a partir de 1517]. Desde então, muitas Comunhões, nacionais ou confessionais, separaram-se da Sé Romana. Entre aquelas nas quais continuam parcialmente as tradições e estruturas católicas ocupa lugar especial a Comunhão Anglicana. Estas diversas divisões, porém, diferem muito entre si, não só em razão da origem, do lugar e da época, mas principalmente pela natureza e gravidade das questões pertinentes à fé e à estrutura eclesiástica” (ibid.).

4. Não se trata, pois, apenas de divisões referentes à disciplina. É o próprio conteúdo do “Creio” cristão que é atacado. Um teólogo protestante moderno, Karl Barth, expressou esta situação de divisão com a seguinte frase: “Todos cremos em um só Cristo, mas nem todos da mesma maneira”.
O Concílio Vaticano II se pronuncia assim: “Esta divisão não só contradiz abertamente a vontade de Cristo e é um escândalo para o mundo, mas também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda criatura” (ibid., n. 1).
Os cristãos de hoje devem recordar e meditar com uma particular sensibilidade as palavras da oração que o Cristo Senhor dirigiu ao Pai na noite em que ia ser entregue: “Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti. Que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21).

5. O vivo eco destas palavras faz com que, especialmente na atual situação histórica, sejamos invadidos, ao recitar o “Creio” cristão, por um ardente desejo pela unidade dos cristãos, rumo à plena unidade na fé.
Lemos no documento conciliar: “O Senhor dos séculos, que sábia e pacientemente prossegue o propósito de sua graça em favor de nós, pecadores, ultimamente começou a derramar com maior abundância nos cristãos divididos entre si a compunção do coração e o desejo de união. Em toda a parte, muitos homens sentiram o impulso dessa graça e também entre nossos irmãos separados, movidos pela graça do Espírito Santo, surgiu um movimento cada dia mais intenso para restaurar a unidade de todos os cristãos. Desse movimento de unidade, chamado ecumênico, participam aqueles que invocam o Deus Trino e confessam Jesus como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembleias, nas quais ouviram o Evangelho, e cada um declara que a Igreja é sua e de Deus. Quase todos, porém, embora de maneira diversa, aspiram a uma Igreja de Deus una e visível, que seja verdadeiramente universal e enviada ao mundo inteiro, para que o mundo se converta ao Evangelho e assim seja salvo para a glória de Deus” (Unitatis redintegratio, n. 1).

6. Esta longa citação está tomada do Decreto sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio, no qual o Concílio Vaticano II precisou o modo segundo o qual o desejo da unidade dos cristãos deve penetrar a fé da Igreja, o modo segundo o qual deve refletir-se na atitude concreta de fé de todo cristão católico e influir em seu agir, isto é, na resposta que deve dar às palavras da oração sacerdotal de Cristo.
Paulo VI viu no compromisso ecumênico o primeiro e mais íntimo círculo daquele “diálogo da salvação” que a Igreja deve levar avante com todos os irmãos na fé, separados mas sempre irmãos! Muitos acontecimentos dos últimos tempos, depois da iniciativa de João XXIII, a obra do Concílio, e sucessivamente os esforços pós-conciliares, nos ajudam a compreender e a experimentar que, apesar de tudo, “é maior o que nos une do que o que nos divide” [3].
É precisamente com esta disposição de espírito que, professando o “Creio”, “nos abandonamos a Deus” (cf. Dei Verbum, n. 5), esperando sobre todo d’Ele a graça do dom da plena unidade nesta fé de todas as testemunhas de Cristo. De nossa parte colocaremos todo o empenho da oração e da ação em favor da unidade, buscando os caminhos da verdade na caridade.


Notas:

[1] As Igrejas Ortodoxas Orientais ou Pré-Calcedonianas, que aceitam a doutrina dos três primeiros Concílios Ecumênicos, são seis: Igreja Ortodoxa Copta de Alexandria, Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo, Igreja Ortodoxa Eritreia Tewahedo, Igreja Sírio-Ortodoxa de Antioquia, Igreja Sírio-Ortodoxa Malankara e Igreja Apostólica Armênia. A estas se soma a Igreja Assíria do Oriente, que aceita apenas os dois primeiros Concílios Ecumênicos.

[2] As Igrejas Ortodoxas Bizantinas, que aceitam os sete primeiros Concílios Ecumênicos, são 14: os Patriarcados de Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Moscou, Sérvia, Romênia, Bulgária e Geórgia e as Igrejas Autocéfalas do Chipre, da Grécia, da Albânia, da Polônia e da República Tcheca e Eslováquia.

[3] Assim como no caso do diálogo com as outras religiões, no contexto do Concílio Vaticano II foi criado um Secretariado para o diálogo ecumênico, renomeado pelo Papa João Paulo II em 1988 como Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (19 de junho e 26 de junho de 1985). 

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