sábado, 30 de julho de 2022

Homilia do Papa: Missa em Québec

Viagem Apostólica do Papa Francisco ao Canadá
Santa Missa pela Reconciliação
Homilia do Santo Padre
Santuário Nacional de Sainte Anne de Beaupré
Quinta-feira, 28 de julho de 2022

[Leituras: Gn 3,8-15.20-21; Sl 129; Lc 24,13-35]

A viagem dos discípulos de Emaús, que encontramos na conclusão do Evangelho de São Lucas, é uma imagem do nosso caminho pessoal e da Igreja. Na estrada da vida, e vida de fé, ao levarmos por diante os sonhos, os projetos, os anseios e as esperanças que habitam no nosso coração, nos encontramos também com nossas fragilidades e fraquezas, experimentamos derrotas e decepções e, às vezes, nos tornamos prisioneiros de uma sensação de fracasso que nos paralisa. O Evangelho anuncia-nos que, mesmo em tais momentos, não estamos sozinhos: o Senhor vem ao nosso encontro, coloca-Se ao nosso lado, caminha pela nossa própria estrada com a discrição de um amável viandante que deseja reabrir os olhos e inflamar de novo o nosso coração. E quando o fracasso deixa espaço ao encontro com o Senhor, a vida reabre-se à esperança e podemos reconciliar-nos conosco, com os irmãos e com Deus.

Sigamos então o itinerário deste caminho que poderíamos intitular do fracasso à esperança.


Primeiro, há a sensação de fracasso, que habita o coração destes dois discípulos depois da morte de Jesus. Tinham abraçado um sonho com entusiasmo. Em Jesus, tinham depositado todas as suas esperanças e desejos. Agora, depois da escandalosa morte na cruz, viram costas a Jerusalém para voltar a casa, à vida anterior. A deles é uma viagem de regresso, como se quisessem esquecer aquela experiência que encheu de amargura os seus corações, aquele Messias condenado à morte na cruz como um malfeitor. Voltam a casa abatidos, «com o rosto triste» (Lc 24,17): as expectativas que cultivavam deram em nada, as esperanças em que acreditavam desfizeram-se em pedaços, os sonhos que teriam querido realizar cedem lugar à desilusão e à amargura.

Trata-se de uma experiência que tem a ver também com a nossa vida e com o próprio caminho espiritual, em todas as ocasiões nas quais somos obrigados a redimensionar os nossos anseios e a lidar com as ambiguidades da realidade, com as obscuridades da vida, com as nossas fraquezas. Acontece-nos sempre que os nossos ideais se deparam com as decepções da existência e os nossos propósitos são menosprezados por causa das nossas fragilidades; quando cultivamos projetos de bem, mas depois não temos a capacidade de realizá-los (cf. Rm 7,18); nas atividades que realizamos ou nas nossas relações mais cedo ou mais tarde experimentamos alguma derrota, algum erro, um fracasso, uma queda, e vemos desabar aquilo em que tínhamos acreditado ou nos tínhamos empenhado, e nos sentimos ao mesmo tempo esmagados pelo nosso pecado e pelos sentimentos de culpa.

É isto que acontece a Adão e Eva, como escutamos na 1ª leitura. O seu pecado não só os afastou de Deus, mas tornou-os distantes entre si: conseguem apenas acusar-se um ao outro. E vemo-lo também nos discípulos de Emaús, cuja contrariedade por terem visto desabar o projeto de Jesus deixa espaço apenas a uma estéril discussão. E o mesmo pode verificar-se também na vida da Igreja, a comunidade dos discípulos do Senhor, representados naqueles dois de Emaús. Apesar de ser a comunidade do Ressuscitado, pode encontrar-se a vagar perdida e desiludida perante o escândalo do mal e a violência do Calvário. Então nada mais consegue fazer senão apertar nas mãos a sensação de fracasso e interrogar-se: O que aconteceu? Por que aconteceu? Como pôde acontecer?

Irmãos e irmãs, são as perguntas que cada um põe a si mesmo; e são também as ardentes interrogações que esta Igreja peregrina no Canadá faz ressoar no seu coração, em um árduo caminho de cura e reconciliação. Também nós, perante o escândalo do mal e do Corpo de Cristo ferido na carne dos nossos irmãos indígenas, caímos na amargura e sentimos o peso do fracasso. Permiti então que me una espiritualmente a tantos peregrinos que percorrem aqui a “Escada Santa”, que evoca a escada subida por Jesus até ao Pretório de Pilatos, e vos acompanhe como Igreja nestas interrogações que brotam de um coração cheio de pesar: Por que aconteceu tudo isto? Como pôde isto acontecer na comunidade daqueles que seguem Jesus?

Aqui, porém, devemos ter cuidado com a tentação da fuga, presente nos dois discípulos do Evangelho: fugir, percorrer em sentido inverso o caminho, escapar do lugar onde sucederam os fatos, tentar removê-los, procurar um «lugar tranquilo» como Emaús para esquecê-los. Não há nada pior, perante os fracassos da vida, do que fugir para não enfrentá-los. É uma tentação do inimigo, que ameaça o nosso caminho espiritual e o caminho da Igreja: ele quer fazer-nos acreditar que aquele fracasso é definitivo, quer paralisar-nos na amargura e na tristeza, convencer-nos de que não há mais nada a fazer e, consequentemente, não vale a pena encontrar uma estrada para recomeçar.

O Evangelho, ao contrário, revela-nos que precisamente nas situações de decepção e tristeza, precisamente quando, atônitos, experimentamos a violência do mal e a vergonha da culpa, quando o rio da nossa vida seca no pecado e no fracasso, quando, despojados de tudo, parece que não temos mais nada, precisamente então é que o Senhor vem ao nosso encontro e caminha conosco. No caminho de Emaús, coloca-Se discretamente ao lado para acompanhar e partilhar os passos resignados daqueles discípulos tristes. E que faz? Não oferece palavras genéricas de encorajamento, expressões de circunstância ou consolações fáceis, mas, desvendando nas Sagradas Escrituras o mistério de sua Morte e Ressurreição, ilumina a sua história e os acontecimentos que viveram. Assim abre os olhos deles para uma nova visão das coisas. Também nós, que partilhamos a Eucaristia nesta Basílica, podemos reler muitos acontecimentos da história. Neste mesmo terreno, já houve anteriormente três templos; e houve aqueles que não fugiram diante das dificuldades, voltaram a sonhar apesar dos erros próprios e alheios; não se deixaram vencer pelo incêndio devastador há cem anos e edificaram, com coragem e criatividade, este templo. E quantos partilham aqui a Eucaristia, vindos das vizinhas “Planícies de Abraão”, podem também perceber o ânimo daqueles que não se deixaram cair reféns do ódio da guerra, da destruição e do sofrimento, mas souberam voltar a planear uma cidade e um país.

Por fim, diante dos discípulos de Emaús, Jesus parte o pão, reabrindo os seus olhos e mostrando-Se mais uma vez como o Deus do amor que oferece a vida pelos seus amigos. Deste modo, ajuda-os a retomar o caminho com alegria, recomeçar, passar do fracasso à esperança. Irmãos e irmãs, o Senhor quer fazer o mesmo com cada um de nós e com a sua Igreja. E como podem ser reabertos os nossos olhos, como pode ainda o coração inflamar-se em nós pelo Evangelho? Que devemos fazer enquanto nos vemos atribulados por várias provações espirituais e materiais, enquanto procuramos a estrada para uma sociedade mais justa e fraterna, enquanto desejamos nos recuperar das nossas decepções e fadigas, enquanto esperamos sarar das feridas do passado e reconciliar-nos com Deus e entre nós?

Só há uma estrada, um único caminho: é o caminho de Jesus, é o caminho que é Jesus (cf. Jo 14,6). Acreditemos que Jesus vem juntar-Se ao nosso caminho, deixemo-nos encontrar por Ele; deixemos que seja a sua Palavra a interpretar a história que vivemos como indivíduos e como comunidades, e a indicar-nos o caminho para nos curarmos e reconciliarmos; com fé, partamos juntos o Pão Eucarístico para que, ao redor desta Mesa, possamos redescobrir-nos filhos amados do Pai, chamados a ser todos irmãos. Quando parte o pão, Jesus confirma aquilo que os discípulos já tinham recebido como testemunho das mulheres e em que não quiseram acreditar: que Ele ressuscitou! Nesta Basílica, onde recordamos a mãe da Virgem Maria, e onde se encontra também a cripta dedicada à Imaculada Conceição, não podemos senão pôr em evidência o papel que Deus quis dar à mulher no seu plano de salvação. Santa Ana, a Santíssima Virgem Maria, as mulheres da manhã de Páscoa apontam-nos um novo caminho de reconciliação: a ternura materna de tantas mulheres pode acompanhar-nos - como Igreja - rumo a tempos novamente fecundos, nos quais deixemos para trás tanta esterilidade e tanta morte, e no centro colocar de novo Jesus, o Crucificado Ressuscitado.

De fato, no centro das nossas interrogações, das fadigas que acumulamos, da própria vida pastoral, não podemos colocar-nos a nós mesmos e ao nosso fracasso; devemos colocar Ele, o Senhor Jesus. No coração de cada coisa, coloquemos a sua Palavra, que ilumina os acontecimentos e reabre-nos os olhos para ver a presença operante do amor de Deus e a possibilidade do bem mesmo em situações aparentemente perdidas; coloquemos o Pão da Eucaristia, que Jesus ainda hoje parte para nós, para partilhar a sua vida com a nossa, abraçar as nossas fragilidades, sustentar os nossos passos cansados e conceder-nos a cura do coração. E, reconciliados com Deus, com os outros e conosco, podemos também nós tornar-nos instrumentos de reconciliação e de paz na sociedade em que vivemos.

Senhor Jesus, nosso caminho, nossa força e consolação, a Vós nos dirigimos como os discípulos de Emaús: «Fica conosco, Senhor, pois a noite já vai caindo» (Lc 24,29).
Fica conosco, Senhor, quando a esperança conhece o ocaso e desce, escura, a noite da decepção.
Fica conosco, porque contigo, Jesus, muda o rumo do caminho e, dos becos sem saída da desconfiança, renasce a maravilha da alegria.
Fica conosco, Senhor, porque contigo a noite da tristeza transforma-se em manhã radiosa da vida.
Simplesmente dizemos: Fica conosco, Senhor, porque, se caminhas ao nosso lado, o fracasso abre-se à esperança de uma nova vida. Amém.


Fonte: Santa Sé.

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