Viagem Apostólica do Papa Francisco ao Canadá
Vésperas na Catedral de Québec
Homilia do Santo Padre
Catedral de Notre-Dame de Québec
Quinta-feira, 28 de julho de 2022
Amados irmãos Bispos,
caros sacerdotes e diáconos, consagrados e consagradas, seminaristas e agentes de
pastoral, boa tarde!
Agradeço a Dom Raymond Poisson as palavras de
boas-vindas que me dirigiu e saúdo a todos vós, especialmente quantos tiveram
de percorrer um longo caminho para chegar: as distâncias no vosso país são
verdadeiramente grandes! Por isso, obrigado! Estou feliz por vos encontrar.
É significativo o nosso encontro nesta Basílica de
Notre-Dame de Québec, Catedral desta Igreja particular e sede primacial do
Canadá, cujo primeiro Bispo, São Francisco de Laval, abriu o Seminário em 1633,
tendo-se ocupado, durante todo o seu ministério, da formação dos presbíteros. E
dos presbíteros, isto é, dos «anciãos» falou-nos a leitura breve que acabamos
de ouvir. Assim nos exortou São Pedro: «Apascentai o rebanho de Deus que vos
foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade» (1Pd 5,2).
Enquanto estamos aqui reunidos como Povo de Deus, recordemo-nos de que Jesus é
o Pastor da nossa vida, que cuida de nós porque nos ama de verdade. A nós,
pastores da Igreja, é pedida esta mesma generosidade no pastoreio do rebanho,
para que se possa manifestar a solicitude de Jesus por todos e a sua compaixão
pelas feridas de cada um.
E precisamente porque somos sinal de Cristo, o Apóstolo
Pedro exorta-nos: Apascentai o rebanho, guiai-o, não deixeis que se extravie
enquanto vos ocupais dos próprios afazeres. Cuidai dele com dedicação e
ternura. E - acrescenta - fazei-o «de boa vontade», e não à força: não como um
dever, não como assalariados religiosos ou funcionários do sagrado, mas com
coração de pastores, com entusiasmo. Se olharmos mais para Ele, o Bom Pastor,
do que para nós mesmos, descobrimos que somos guardados com ternura, sentimos a
proximidade de Deus. Daqui nasce a alegria do ministério e, antes, a alegria da
fé: não de ver aquilo que somos capazes de fazer, mas de saber que Deus está
próximo, que nos amou primeiro e nos acompanha todos os dias.
Esta, irmãos e irmãs, é a nossa alegria: não uma
alegria fácil, como aquela que o mundo às vezes nos oferece, iludindo-nos com
fogos de artifício; esta alegria não está ligada a riquezas nem seguranças; nem
sequer está ligada à persuasão de que tudo nos correrá sempre bem na vida, sem
cruzes nem problemas. Antes, a alegria cristã está unida a uma experiência de
paz, que permanece no coração mesmo quando somos atingidos por dificuldades e
aflições, porque sabemos que não estamos sozinhos, mas acompanhados por um Deus
que não fica indiferente à nossa sorte. Como quando o mar está agitado: na
superfície é tempestuoso, mas nas profundezas permanece calmo e tranquilo.
Assim é a alegria cristã: um dom gratuito, a certeza de saber que somos amados,
sustentados e abraçados por Cristo em cada situação da vida. Porque é Ele que
nos liberta do egoísmo e do pecado, da tristeza da solidão, do vazio interior e
do medo, dando-nos um olhar novo sobre a vida, um olhar novo sobre a história:
«Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (Exortação Apostólica Evangelii
gaudium, n. 1).
Então podemos interrogar-nos: Como vai a nossa
alegria? Como vai a minha alegria? A nossa Igreja expressa a alegria do
Evangelho? Nas nossas comunidades, existe uma fé que atrai pela alegria que
comunica?
Se quisermos abordar estas questões na sua raiz,
não podemos deixar de refletir sobre o que, na realidade do nosso tempo, ameaça
a alegria da fé com o risco de obscurecê-la, pondo seriamente em crise a
experiência cristã. Pensa-se imediatamente na secularização, que há muito
tem transformado o estilo de vida das mulheres e homens de hoje, deixando Deus
quase no último lugar. Parece que Ele desapareceu do horizonte, que a sua
Palavra já não se assemelha a uma bússola de orientação para a vida, para as
opções fundamentais, para as relações humanas e sociais. Desde já, porém, há
que fazer um esclarecimento: quando observamos a cultura em que estamos
imersos, as suas linguagens e os seus símbolos, é preciso estarmos atentos para
não ficar prisioneiros do pessimismo e do ressentimento, deixando-nos cair em
juízos negativos ou em inúteis nostalgias. Com efeito são possíveis dois
olhares a respeito do mundo em que vivemos: um, eu chamaria «olhar negativo»; o
outro, «olhar que discerne».
O primeiro, o olhar negativo, nasce com
frequência de uma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de
«armadura» para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo:
«O mundo é mau, reina o pecado», e assim corre o risco de se revestir de um
«espírito de cruzada». Tenhamos cuidado com isto, porque não é cristão;
efetivamente não é o modo como atua Deus, o Qual - assim nos recorda o
Evangelho - «tanto amou o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito, para que não
morra todo o que n’Ele crê, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16). O
Senhor, que detesta o mundanismo e tem um olhar bom sobre o mundo.
Abençoa a nossa vida, bendiz-nos a nós e à nossa realidade, encarna-Se nas
situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do
Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas. Se, pelo contrário, nos
detivermos em um olhar negativo, acabaremos por negar a Encarnação, porque
fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Assim, nos fecharemos
em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, nos lamentaremos continuamente e
cairemos na tristeza e no pessimismo: tristeza e pessimismo que nunca vêm de
Deus. Em vez disso, somos chamados a ter um olhar semelhante ao de Deus, que
sabe distinguir o bem e é obstinado a procurá-lo, vê-lo e alimentá-lo. Não é um
olhar ingênuo, mas um olhar que discerne a realidade.
Para afinar o nosso discernimento sobre o mundo
secularizado, deixemo-nos inspirar pelo que escreveu São Paulo VI na Evangelii
nuntiandi, Exortação apostólica ainda hoje plenamente atual: para ele, a
secularização é «o esforço, em si mesmo justo e legítimo e não absolutamente
incompatível com a fé ou com a religião» (n. 55), por descobrir as leis da
realidade e da própria vida humana estabelecidas pelo Criador. De fato, Deus
não nos quer escravos, mas filhos, não quer decidir em nosso lugar, nem
oprimir-nos com um poder sacro em um mundo governado por leis religiosas. Não!
Ele criou-nos livres e pede-nos para sermos pessoas adultas, pessoas
responsáveis na vida e na sociedade. Coisa diversa - distinguia São Paulo VI -
é o secularismo, uma concepção de vida que separa completamente do
vínculo com o Criador, de tal modo que Deus Se torna «supérfluo e embaraçante»
e se geram «novas formas de ateísmo», sutis e variadas: «uma civilização do
consumo, o hedonismo erigido em valor supremo, uma ambição de poder e predomínio,
discriminações de todo o gênero» (ibid.). Compete-nos a nós, como Igreja
e sobretudo como pastores do Povo de Deus, como pastores, como consagradas e
consagrados, como seminaristas e como agentes e pastoral, saber fazer estas
distinções, discernir. Se cedermos ao olhar negativo e julgarmos de forma
superficial, arriscamo-nos a fazer passar uma mensagem errada, como se, por
trás da crítica da secularização, houvesse da nossa parte a nostalgia de um
mundo sacralizado, de uma sociedade de outros tempos, onde a Igreja e os seus
ministros tinham mais poder e relevância social. E esta é uma perspectiva
errada.
Ao contrário, como observa um grande estudioso
destes temas, o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da
menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e
privilégios; antes, essa nos pede refletir sobre as mudanças da sociedade, que
influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos
debruçarmos sobre este aspecto, damo-nos conta de que não é a fé que está em
crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização
é um desafio para a nossa imaginação pastoral, é «a ocasião para a
recomposição da vida espiritual em novas formas e para novas maneiras de
existir» (Charles Taylor, A Secular Age, Cambridge, 2007, 437).
Assim, o olhar que discerne, ao mesmo tempo em que nos mostra as dificuldades
que temos na transmissão da alegria da fé, estimula-nos a encontrar uma nova
paixão pela evangelização, procurar novas linguagens, mudar algumas prioridades
pastorais, ir ao essencial.
Queridos irmãos e irmãs, há necessidade de anunciar
o Evangelho para dar aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé. Mas este
anúncio não se realiza primariamente por palavras, mas através de um testemunho
transbordante de amor gratuito, como Deus faz conosco. É um anúncio que pede
para se encarnar em um estilo de vida pessoal e eclesial que possa fazer
reacender o desejo do Senhor, infundir esperança, transmitir confiança e
credibilidade. A propósito disto permiti que vos proponha, com espírito
fraterno, três desafios, que podereis desenvolver na oração e no
serviço pastoral.
O primeiro desafio: fazer Jesus conhecido.
Nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença,
é necessário voltar ao primeiro anúncio. Repito: é necessário voltar ao
primeiro anúncio. Não podemos presumir de comunicar a alegria da fé
apresentando aspectos secundários a quem ainda não abraçou o Senhor na vida, ou
então só repetindo algumas práticas ou copiando formas pastorais do passado. É
preciso encontrar novos caminhos para anunciar o coração do Evangelho a quantos
ainda não encontraram Cristo. Isto pressupõe uma criatividade pastoral para
chegar até as pessoas onde elas vivem, não esperando que sejam elas a vir até
nós - lá onde vivem! - encontrando ocasiões de escuta, diálogo e encontro.
Precisamos voltar ao essencial, precisamos voltar ao entusiasmo dos Atos dos Apóstolos, à beleza de nos
sentirmos instrumentos da fecundidade do Espírito hoje. Precisamos voltar à
Galileia. É o encontro com Jesus Ressuscitado: voltar à Galileia para - permiti
a expressão - recomeçar depois do fracasso. Voltar à Galileia. E cada um de nós
tem a sua própria “Galileia”, aquela do primeiro anúncio. Precisamos recuperar
esta memória.
Mas, para anunciar o Evangelho, é preciso também
sermos credíveis. E aqui está o segundo desafio: o testemunho.
Anuncia-se o Evangelho de modo eficaz quando é a vida que fala, que revela
aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em
troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras. A Igreja no Canadá
começou um percurso novo depois de ter sido ferida e transtornada pelo mal
perpetrado por alguns dos seus filhos. Penso em particular nos abusos sexuais
cometidos contra menores e pessoas vulneráveis, escândalos que exigem ações
fortes e uma luta irreversível. Quero, juntamente convosco, voltar a pedir
perdão a todas as vítimas. O pesar e a vergonha que sentimos devem tornar-se ocasião
de conversão: que nunca mais aconteçam! E, pensando no caminho de cura e
reconciliação com os irmãos e irmãs indígenas, que nunca mais a comunidade
cristã se deixe contaminar pela ideia da superioridade de uma cultura sobre as
outras e da legitimidade de usar meios de coação em relação aos outros.
Recuperemos o ardor missionário do vosso primeiro Bispo, São Francisco de
Laval, que arremeteu contra todos aqueles que degradavam os nativos
induzindo-os a consumir bebidas para enganá-los. Não permitamos que nenhuma
ideologia aliene e confunda os estilos e as formas de vida dos nossos povos,
procurando demovê-los e dominá-los. Que os novos progressos da humanidade sejam
assimiláveis nas suas identidades culturais com as chaves da cultura.
Mas, para derrotar esta cultura da exclusão, é
preciso começarmos por nós: que os pastores não se sintam superiores aos irmãos
e irmãs do Povo de Deus; que os consagrados vivam a fraternidade e a liberdade
na obediência em comunidade; que os seminaristas estejam dispostos a ser
servidores dóceis e disponíveis e que os agentes de pastoral não vejam o seu
serviço como poder. Começa-se daqui. Vós sois os protagonistas e os
construtores de uma Igreja diferente: humilde, mansa, misericordiosa, uma
Igreja que acompanha os processos, que trabalha decidida e serenamente na
inculturação, que valoriza cada um e cada diversidade cultural e religiosa.
Demos este testemunho!
Finalmente, o terceiro desafio: a
fraternidade. Primeiro, fazer Jesus conhecido; segundo, testemunho;
terceiro, fraternidade. A Igreja será testemunha mais credível do Evangelho
quanto mais os seus membros viverem a comunhão, criando ocasiões e espaços para
que toda a pessoa que se aproxima da fé encontre uma comunidade acolhedora, que
saiba ouvir, que saiba entrar em diálogo, que promova uma boa qualidade nas
relações. Assim dizia o vosso santo Bispo aos missionários: «Muitas vezes uma
palavra amarga, uma impaciência, um rosto que repele destruirão em um momento
aquilo que foi construído durante muito tempo» (Instruções aos Missionários,
1668).
Trata-se de viver em uma comunidade cristã que se
torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e
irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum. De fato, no coração do
anúncio evangélico está o amor de Deus, que transforma e torna capaz de
comunhão com todos e de serviço a todos. Um teólogo desta terra escreveu: «O
amor que Deus nos dá transborda em amor (...). É um amor que impele o bom
samaritano a parar e cuidar do viajante assaltado pelos ladrões. É um amor que
não tem fronteiras, que busca o reino de Deus (...) e este reino é universal»
(Bernard Lonergan, The Future of
Christianity; in: A
Second Collection: Papers by Bernard F. J. Lonergan SJ, London, 1974, 154).
A Igreja é chamada a encarnar este amor sem fronteiras para construir o sonho
que Deus tem para a humanidade: serem todos irmãos. Interroguemo-nos: Como está
a fraternidade entre nós? Os Bispos entre si e com os padres, os padres entre
si e com o Povo de Deus: somos irmãos ou concorrentes divididos em fações? E
como são as nossas relações com quem não é «dos nossos», com quem não crê, com
quem possui tradições e usos diferentes? Este é o caminho: promover relações de
fraternidade com todos, com os irmãos e irmãs indígenas, com cada irmã e irmão
que encontramos, porque, no rosto de cada um, reflete-se a presença de Deus.
Queridos irmãos e irmãs, estes são apenas alguns
desafios. Não nos esqueçamos de que só podemos levá-los adiante com a força do
Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em
nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que
funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma
idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus. E - uma recomendação ainda - não
nos fechemos no «retrogradismo», mas avancemos, com alegria!
Ponhamos em prática estas palavras que dirigimos a
São Francisco de Laval:
Foste o homem da partilha, visitando os doentes, vestindo
os pobres, lutando pela dignidade das populações originárias, apoiando os
missionários cansados, sempre pronto a estender a mão a quem estava pior do que
tu. Quantas vezes os teus projetos foram derrubados! Uma vez e outra voltaste a
pô-los de pé. Compreendeste que a obra de Deus não é de pedra, e que, nesta
terra de desânimo, havia necessidade de um construtor de esperança.
Agradeço-vos tudo o que fazeis e de coração vos
abençoo. E por favor, continuai a rezar por mim.
Fonte: Santa Sé.
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