“Encontrei o amor de minha vida, e não o deixarei mais” (cf. Ct 3,4).
Recentemente realizamos aqui em nosso blog um breve percurso
pela história do culto a Santa Maria
Madalena, cuja Memória no dia 22 de
julho foi elevada pelo Papa Francisco em 2016 ao grau de Festa.
Como vimos, a Festa possui dois hinos próprios para a
Liturgia das Horas:
Laudes: Auróra surgit
lúcida (Luminosa, a aurora desperta);
Vésperas (e Ofício): Mágdalae
sidus, múlier beáta (Ó estrela feliz de Magdala).
Ambos são de nova composição, isto é, foram elaborados no
contexto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II pelo grupo coordenado
pelo Padre Anselmo Lentini (†1989) [1], uma vez que os hinos anteriores
identificavam Madalena com a mulher pecadora de Lc 7 e com Maria de Betânia, a irmã de Marta e Lázaro, associações
que foram abandonadas pela Igreja.
Santa Maria Madalena (Quentin Matsys) Note-se o frasco com perfume para ungir o Corpo do Senhor |
Como já fizemos aqui no blog com outros textos da Liturgia das Horas, nesta postagem e na próxima apresentaremos os dois hinos entoados em
honra de Santa Maria Madalena em seu texto original em latim e em sua tradução
oficial para o português do Brasil, seguidos de alguns breves comentários sobre
a sua teologia.
Começamos, naturalmente, pelo hino das Laudes, a oração da
manhã da Liturgia das Horas: Auróra
surgit lúcida (Luminosa, a aurora desperta).
Laudes: Auróra surgit lúcida
1. Auróra surgit lúcida
Christi triúmphos áfferens,
cum corpus eius vísere,
María, vis et úngere.
2. Anhéla curris; ángelus
at ecce laetus praedocet
mortis refráctis póstibus
redísse quem desíderas.
3. Sed te manet iucúndius
intácti amóris praemium,
cum, voce pulsans vílicum,
tuum Magístrum cónspicis.
4. Quae cum dolénti Vírgine
haesísti acérbo stípiti,
tu prima vivi ab ínferis
es testis atque núntia.
5. O flos venúste Mágdalae,
o Christi amóre sáucia,
tu caritátis ígnibus
fac nostra corda férveant.
6. Da, Christe, tantae sérvulae
dilectiónem pérsequi,
et nos ut in caeléstibus
tibi canámus glóriam. Amen [2].
Maria Madalena como "mirófora" (Mosaico de Nikolay Bodarevsky) |
Laudes: Luminosa, a aurora desperta
1. Luminosa, a aurora desperta
e o triunfo de Cristo anuncia.
Tu, porém, amorosa, procuras
ver e ungir o seu Corpo, ó Maria.
2. Quando o buscas, correndo ansiosa,
vês o anjo envolvido em luz forte;
ele diz que o Senhor está vivo
e quebrou as cadeias da morte.
3. Mas amor tão intenso prepara
para ti recompensa maior:
crês falar com algum jardineiro,
quando escutas a voz do Senhor.
4. Estiveste de pé junto à cruz,
com a Virgem das Dores unida;
testemunha e primeira enviada
és agora do Mestre da vida.
5. Bela flor de Magdala, ferida
pelo amor da divina verdade,
faze arder o fiel coração
com o fogo de tal caridade.
6. Dai-nos, Cristo, imitarmos Maria
em amor tão intenso, também,
para um dia nos céus entoarmos
vossa glória nos séculos. Amém [3].
Maria aguarda o amanhecer para ir ao sepulcro (Godfried Schalcken) A lamparina acesa remete à parábola das virgens prudentes (Mt 25,1-13) |
Comentário:
Antes de tudo, vale recordar que no antigo Breviarium Romanum entoava-se nas Laudes de Santa Maria Madalena o hino Summi Parentis Unice, uma adaptação realizada pelo Papa Urbano VIII (†1644) do hino Aeterni Patris Unice, atribuído a Santo Odo (ou Odão) de Cluny (†942) [4].
Das sete estrofes do texto original, a versão de Urbano VIII conservou apenas cinco. As duas versões, porém, possuem um forte teor penitencial, seguindo a tradição que associava Maria Madalena com a mulher pecadora que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas e os enxugou com seus cabelos (Lc 7,36-50).
Na 3ª estrofe do hino, com efeito, se pede que “pelas lágrimas de Madalena” nossas culpas sejam “dissolvidas” (Per Magdalénae lácrymas, peccáta nostra díluas).
Não obstante, gostaríamos de destacar aqui a 2ª estrofe que, igualmente seguindo a tradição da “pecadora arrependida”, associa Madalena à “moeda perdida” e reencontrada (drachma recondita), uma das três “parábolas da misericórdia” do capítulo 15 de Lucas, junto com a “ovelha perdida” e o “filho perdido” (cf. Lc 15,1-32).
O novo hino Auróra
surgit lúcida, em contrapartida, canta a participação de Maria Madalena no
Mistério Pascal da Morte-Ressurreição de Cristo, centrando-se nos textos do
Evangelho que a mencionam diretamente.
Podemos dividir o hino em duas partes: a anamnese (memorial
da história da salvação), composta pelas estrofes 1-4, e a epiclese (súplica),
invocando a intercessão de Madalena nas estrofes 5-6.
a) Anamnese (memorial): Estrofes 1-4
Sendo um hino para as Laudes (oração da manhã), a composição
começa situando-nos na aurora do domingo da Páscoa, quando Maria Madalena se
dirige ao túmulo para “ver e ungir” o Corpo do Senhor, conforme atestado nos
quatro Evangelhos (Mt 28,1; Mc 16,1-2; Lc 24,1; Jo 20,1).
Maria Madalena se dirige ao túmulo na manhã do domingo (Nikolay Ge) |
O primeiro verso da 2ª estrofe indica que Maria “corre
ansiosa” ao túmulo (anhéla curris). A
expressão remete ao capítulo 3 do Cântico
dos Cânticos, que narra a busca da amada por seu Amado, texto lido na Missa
da Festa (Ct 3,1-4a).
Ainda na 2ª estrofe, o hino narra o encontro de Maria
Madalena com um anjo, que alegremente lhe anuncia que Aquele que ela
deseja/busca ressuscitou, destruindo as portas da morte.
O anúncio do anjo, com efeito, é atestado nos três
Evangelhos Sinóticos, particularmente em Mateus
e Marcos (Mt 28,2-7; Mc 16,5-7). Lucas, por sua vez, atesta a presença de
dois anjos (Lc 24,4-7).
A “destruição das portas da morte”, em contrapartida, ainda
que referida indiretamente por alguns textos canônicos (At 2,24; 1Cor 15,54-56; Ap 1,17-18), é narrada poeticamente sobretudo
no relato apócrifo da Descida de Cristo
ao Hades, parte do Evangelho de
Nicodemos (séc. IV-V), texto que influenciou diretamente a arte sacra,
sobretudo no Oriente.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone bizantino da Ressurreição do Senhor clicando aqui.
A 3ª estrofe prossegue indicando que o amor de Maria
Madalena será recompensado por um “prêmio” ainda maior do que ver o mensageiro
do Senhor, isto é, o anjo: ela será a primeira a encontrar-se com o próprio
Ressuscitado, como atestam os Evangelhos de Mateus
e João (Mt 28,9-10; Jo 20,11-18).
O texto do nosso hino é devedor sobretudo do relato joanino,
que é atualmente o Evangelho proclamado na Festa do dia 22 de julho: após descobrir
o túmulo vazio, Maria encontra-se com o Senhor, confundindo-o com o jardineiro
(vílicus) antes de reconhecê-lo como
Mestre (Magister).
O túmulo, com efeito, “estava em um jardim” (Jo 19,41-42), traçando um paralelo com o Livro do Gênesis:
- na criação, Deus “plantou um jardim” (Gn 2,8); na Páscoa, nova criação, Jesus é confundido com o jardineiro por Maria;
- após o pecado, Deus chama o homem e a mulher (Gn 3,9-13); após a Ressurreição, Jesus chama a mulher pelo nome: “Maria!” (Jo 20,16).
O encontro de Madalena com o Ressuscitado: "Noli me tangere" (Correggio) |
Ainda seguindo o Evangelho
de João, a 4ª estrofe recorda a presença de Maria Madalena e da “Virgem das
Dores” (Dolénti Vírgine) aos pés do
“áspero lenho” (acérbo stípiti) da cruz.
Novamente aqui o paralelo com o Gênesis:
Eva peca junto à árvore do paraíso (Gn
3), enquanto Madalena e Maria permanecem fiéis junto à árvore da cruz.
Por fim, a 4ª estrofe conclui a anamnese do hino cantando o
papel fundamental de Maria Madalena como primeira testemunha e anunciadora do
Cristo Ressuscitado, “temas” fundamentais nas novas orações da Festa, incluindo
o novo Prefácio (“De apostolorum apostola”).
Segundo a tradução brasileira do hino, Maria Madalena é a “primeira testemunha
e enviada do Mestre da vida”.
b) Epiclese (súplica): Estrofe 5-6
As últimas estrofes do hino compõem uma dupla epiclese
(invocação ou súplica): a 5ª estrofe dirigida a Maria Madalena e a 6ª estrofe
ao próprio Cristo.
A 5ª estrofe começa invocando a intercessão da nossa santa
com algumas imagens poéticas: ela é a “flor graciosa de Magdala” (flos venúste Mágdalae) “ferida pelo amor
de Cristo” (Christi amóre sáucia).
Tais imagens remetem-nos tanto ao Cântico dos Cânticos quanto a diversos textos da mística cristã.
Basta citar, a guisa de exemplo, o Cântico
Espiritual de São João da Cruz (†1591), ou seu poema “Chama de amor viva”: “¡Oh
llama de amor viva que tiernamente hieres de mi alma en el más profundo centro!
(...)”.
O texto do hino retoma também as Homilias sobre os Evangelhos de São Gregório Magno (†604): em um
trecho da Homilia n. 25, lida no Ofício das Leituras da Festa, Gregório atesta que Maria Madalena era “abrasada
no fogo do divino amor”. Assim, em nosso hino pedimos que, por sua intercessão,
arda em nossos corações a chama desta mesma caridade (Tu caritátis ígnibus fac nostra corda férveant).
Por fim, a 6ª estrofe conclui a composição com uma súplica a
Cristo, igualmente evocando o exemplo de Maria. Como na oração após a Comunhão
da Missa da Festa, pedimos aqui, com efeito, que o Senhor nos conceda
imitar/perseguir o amor de tão grande serva, para com ela cantarmos um dia Sua
glória no céu.
Santa Maria Madalena em glória (Église de la Madeleine, Paris) |
[Atualização: Para acessar a postagem dedicada ao hino das Vésperas, clique aqui]
Notas:
[1] cf. BUGNINI,
Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975.
São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, pp. 461-463.
AROCENA, Félix. Los
himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992.
[2] Fonte: CATTOLICI ROMANI: Thesaurus Liturgiae: Inni della
«Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis & Communia. Acesso em 19 de julho de 2022.
[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 1437.
[4] cf. BREVIARIUM
ROMANUM. Ex Decreto Sacrosancti Concilii
Tridentini Restitutum. Pars aestiva.
Tournai: Desclée, 1942, pp. 790-791.
The Hymns of the
Breviary and Missal: Summi Parentis Unice. in: Catholic Cornucopia. Acesso em 19 de julho de 2022.
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