Viagem Apostólica do Papa Francisco ao Canadá
Lac Ste. Anne Pilgrimage - Liturgia da Palavra
Homilia do Santo Padre
Lac Ste. Anne, 26 de julho de 2022
Queridos irmãos e irmãs, âba-wash-did! Tansi! Oki! [Boa
tarde].
Como é bom encontrar-me aqui, peregrino
convosco e no meio de vós. Nestes dias, sobretudo hoje, fiquei impressionado
com o som dos tambores que me acompanharam por onde tenho andado. Neste
batimento dos tambores parecia ecoar o palpitar de muitos corações: os corações
que, ao longo dos séculos, vibraram junto destas águas; os corações de tantos
peregrinos que marcaram juntos o passo para chegar a este «lago de Deus»! Aqui se
pode verdadeiramente captar a palpitação unânime de um povo peregrino, de
gerações que se puseram em caminho rumo ao Senhor, para experimentar a sua obra
de cura. Quantos corações chegaram aqui ansiosos e trepidantes, sobrecarregados
pelo peso da vida, e junto destas águas encontraram a consolação e a força para
continuar! Também aqui, imerso na criação, há outro batimento que podemos
escutar: a palpitação materna da terra. E assim como o batimento dos bebês,
ainda no seio materno, está em harmonia com o das mães, assim para crescer como
seres humanos precisamos cadenciar os ritmos da existência com os da criação
que nos dá vida. Portanto, voltemos hoje às nossas fontes de vida: a Deus, aos
pais e, neste dia e na casa de Santa Ana, aos avós, que saúdo com grande afeto.
E aqui estamos, agora, transportados
por estas palpitações vitais, em silêncio, contemplando as águas deste lago.
Isto ajuda-nos a voltar também às fontes da fé. De fato,
permite-nos peregrinar idealmente até aos Lugares Santos: imaginar Jesus, que
realizou grande parte do seu ministério precisamente nas margens de um lago, o
Lago da Galileia. Lá escolheu e chamou os Apóstolos, proclamou as
Bem-Aventuranças, contou a maior parte das parábolas, realizou sinais e curas.
Ora, aquele lago constituía o coração da «Galileia dos gentios» (Mt 4,15),
uma zona periférica, de comércio, para onde confluíam as mais variadas
populações, colorindo a região de tradições e cultos diversos. Tratava-se do
lugar mais distante, geográfica e culturalmente, da pureza religiosa que se
concentrava em Jerusalém, no templo. Por isso podemos imaginar aquele lago,
chamado Mar da Galileia, como um condensado de diferenças: nas suas
margens, encontravam-se pescadores e cobradores de impostos, centuriões e
escravos, fariseus e pobres, homens e mulheres das mais variadas proveniências
e estratos sociais. E foi lá, precisamente, que Jesus pregou o Reino de Deus:
não a pessoas religiosas selecionadas, mas a populações diferenciadas que
acorriam de várias partes, como hoje: pregou acolhendo a todos em um cenário
natural como este. Deus escolheu aquele contexto poliédrico e heterogêneo para
anunciar ao mundo algo revolucionário: por exemplo, «oferecei a outra face,
amai os inimigos, vivei como irmãos para ser filhos do Pai do Céu que faz
brilhar o sol sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os
injustos» (cf. Mt 5,38-48).
E assim, precisamente aquele lago, «mestiçado de diversidade», tornou-se a sede
de um inaudito anúncio de fraternidade; de uma revolução sem mortos
nem feridos, a revolução do amor. E aqui, nas margens deste lago, o som dos
tambores que atravessa os séculos e une povos diferentes, remete-nos àquela
época. Recorda-nos que a fraternidade é verdadeira se une os distantes, que a
mensagem de unidade que o Céu envia à terra não teme as diferenças e
convida-nos à comunhão, à comunhão das diferenças, para recomeçar juntos,
porque todos - todos! - somos peregrinos a caminho.
Irmãos e irmãs peregrinos, que podemos
receber destas águas? A Palavra de Deus ajuda-nos a descobri-lo. O profeta
Ezequiel repetiu, por duas vezes, que as águas que jorram a partir do templo
para o povo de Deus «dão vida» e «curam» (cf. Ez 47,8-9).
Dão vida. Penso nas avós que estão aqui conosco. Tantas! Caríssimas, os vossos corações
são fontes de onde jorra a água viva da fé, com a qual saciastes a sede de filhos
e netos. Impressiona-me o papel vital das mulheres nas comunidades indígenas:
ocupam um lugar de relevo enquanto fontes abençoadas de vida, não apenas
física, mas também espiritual. E, ao pensar nas vossas kokum,
recordo também a minha avó. Dela recebi o primeiro anúncio da fé e aprendi que
é assim que se transmite o Evangelho: mediante a ternura do trato e da
sabedoria da vida. A fé raramente nasce lendo sozinho um livro na sala, mas
difunde-se em um clima familiar, transmite-se na língua das mães, com o doce
canto dialetal das avós. Inflama-me o coração ver aqui tantos avós e bisavós.
Obrigado! Agradeço-vos e quero dizer aos que têm idosos em casa, na família:
tendes um tesouro! Dentro das vossas paredes, guardais uma fonte de vida; por
favor, cuidai dela como a herança mais preciosa a amar e proteger.
O profeta dizia que as águas, além de
dar vida, curam. Este aspecto leva-nos de novo às margens do lago
da Galileia, onde Jesus «curou muitos enfermos atormentados por toda a espécie
de males» (Mc 1,34). Lá, «à noitinha, depois do sol-pôr, trouxeram-Lhe
todos os enfermos» (v. 32). Nesta tarde, imaginemo-nos ao redor do lago com
Jesus, enquanto Ele Se aproxima, inclina-Se com paciência, compaixão e ternura,
cura muitos doentes no corpo e no espírito: endemoninhados, leprosos, paralíticos,
cegos, mas também pessoas exaustas e desanimadas, transviadas e feridas. Jesus
veio, e continua a vir, cuidar de nós, consolar e sarar a nossa humanidade
abandonada e exausta. A todos, e também a nós, dirige o mesmo convite: «Vinde a
Mim, todos os que estais cansados e fatigados, e Eu vos darei descanso» (Mt 11,28).
Ou, como no texto que ouvimos esta tarde: «Se alguém tem sede, venha a Mim e
beba» (Jo 7,37).
Irmãos, irmãs, todos nós precisamos
da cura de Jesus, médico das almas e dos corpos. Senhor, como
as pessoas nas margens do Mar da Galileia não tinham medo de dizer em alta voz
as suas necessidades, também nós esta tarde, Senhor, viemos a Vós com a dor que
temos no nosso íntimo. Nós Vos trazemos a nossa aridez e as nossas fadigas, Vos
trazemos os traumas das violências sofridas pelos nossos irmãos e irmãs
indígenas. Neste lugar abençoado, onde reinam a harmonia e a paz, Vos apresentamos
as desarmonias das nossas histórias, os terríveis efeitos da colonização, a dor
indelével de tantas famílias, avós e crianças. Senhor, ajudai-nos a curar as
nossas feridas. Sabemos que isto exige empenho, cuidado e fatos concretos da
nossa parte; mas sabemos também, Senhor, que sozinhos não o conseguimos fazer.
Entregamo-nos a Vós e à intercessão da vossa Mãe e da vossa avó.
Sim, Senhor, confiamo-nos à intercessão
da vossa Mãe e da vossa avó, porque as mães e as avós ajudam a sarar as feridas
do coração. Durante os dramas da conquista, foi Nossa Senhora de Guadalupe que
transmitiu a reta fé aos indígenas, falando a sua língua, vestindo os seus
trajes, sem violências nem imposições. E pouco depois, com a chegada da
imprensa, foram publicadas as primeiras gramáticas e os primeiros catecismos
nas línguas indígenas. Quanto bem fizeram os missionários autenticamente
evangelizadores a fim de preservar as línguas e culturas autóctones em tantas
partes do mundo! No Canadá, esta «inculturação materna» deu-se por obra de
Santa Ana, unindo a beleza das tradições indígenas e a da fé e plasmando-as com
a sabedoria de uma avó, que é mãe duas vezes. Também a Igreja é mulher, também
a Igreja é mãe. De fato, nunca houve um momento na sua história em que a fé não
fosse transmitida em língua materna pelas mães e pelas avós. Aliás, parte da
dolorosa herança que estamos a enfrentar nasce do fato de se ter impedido às
avós indígenas de transmitirem a fé na sua língua e na sua cultura. Sem dúvida,
esta perda é uma tragédia, mas a vossa presença aqui é um testemunho de
resiliência e de recomeço, de peregrinação rumo à cura, de abertura do coração
a Deus que sara o nosso sermos comunidade. Ora todos nós, como Igreja,
precisamos de cura: precisamos ser curados da tentação de nos fecharmos em nós
mesmos, de escolhermos a defesa da instituição em vez da busca da verdade, de
preferirmos o poder mundano ao serviço evangélico. Queridos irmãos e irmãs,
ajudemo-nos a fim de dar a nossa contribuição para construir com a ajuda de
Deus uma Igreja mãe como Ele gosta: uma Igreja capaz de abraçar cada filho e
filha; aberta a todos e que fale a cada um e a cada uma; que não vai contra
ninguém, mas que vai ao encontro de quem quer que seja.
As multidões do lago da Galileia que se
aglomeravam em volta de Jesus eram compostas principalmente por gente comum, gente
simples, que Lhe apresentava as próprias necessidades e feridas. De forma
idêntica, se quisermos cuidar e sanar a vida das nossas comunidades, não
podemos começar senão pelos pobres, pelos mais marginalizados. Demasiadas vezes
deixamo-nos guiar pelos interesses de alguns que estão bem; é preciso olhar
mais para as periferias e pôr-se à escuta do clamor dos últimos; é necessário
saber escutar a dor de quantos, muitas vezes em silêncio, gritam nas nossas
cidades superlotadas e despersonalizadas: «Não nos deixeis sozinhos». É também
o grito dos idosos que correm o risco de morrer sozinhos em casa ou abandonados
em uma instituição, ou dos doentes “incômodos” que, em lugar do afeto, lhes é
subministrada a morte. É o grito sufocado de adolescentes e jovens, mais
criticados do que escutados, que delegam a sua liberdade a um celular, enquanto
nas mesmas ruas outros dos seus coetâneos vagueiam errantes, anestesiados por
qualquer diversão, à mercê de dependências que os tornam tristes e ansiosos,
incapazes de acreditar em si mesmos, de amar aquilo que são e a beleza da vida
que têm. “Não nos deixeis sozinhos” é o grito de quem deseja um mundo melhor, mas não
sabe por onde começar.
Jesus, que nos cura e consola com a
água viva do seu Espírito, no Evangelho desta tarde pede-nos que também de nós,
do seio de quem acredita, corram «rios de água viva» (cf. Jo 7,38). E nós, sabemos saciar a sede dos
nossos irmãos e irmãs? Enquanto continuamos a pedir consolação a Deus, sabemos
dá-la também aos outros? Quantas vezes nos libertamos de tantos pesos
interiores, como, por exemplo, o de não nos sentirmos amados e respeitados,
precisamente começando a amar de forma gratuita os outros! Nas nossas solidões
e ansiedades, Jesus impele-nos a sair, impele-nos a dar, impele-nos a amar. E
então me pergunto: que faço eu por quem tem necessidade de mim? Concretamente
pelas populações indígenas, pensando nas suas histórias e nas tribulações que
suportaram, que faço eu por elas? Limito-me a escutar com um pouco de
curiosidade mundana, escandalizo-me com tudo o que aconteceu no passado, ou
faço algo de concreto por elas? Rezo, encontro, leio, fundamento-me, deixo-me
tocar pelas suas histórias? E, olhando para mim mesmo, se me encontro no
sofrimento, escuto Jesus que me quer fazer sair do recinto da minha ansiedade e
convida-me a recomeçar, a ir mais além, a amar? Às vezes, uma boa maneira de
ajudar outra pessoa é não lhe dar imediatamente o que pede, mas acompanhá-la,
convidá-la a amar, a doar-se. Pois deste modo, através do bem que puder fazer
aos outros, é que descobrirá os seus rios de água viva, descobrirá o tesouro
único e precioso que é.
Queridos irmãos e irmãs indígenas, vim
como peregrino também para vos dizer quão preciosos sois para mim e para a
Igreja. Desejo que a Igreja esteja tão unida a vós como entrelaçados e unidos
estão os fios das faixas coloridas que muitos de vós usais. Que o Senhor nos
ajude a avançar no processo de cura, rumo a um futuro sempre mais sadio e
renovado. Creio que seja também o desejo das vossas avós e dos vossos avôs, das
nossas avós e dos nossos avôs. Que os avós de Jesus, São Joaquim e Santa Ana,
abençoem o nosso caminho.
Fonte: Santa Sé.
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