sexta-feira, 22 de julho de 2022

Carta Apostólica Desiderio desideravi - Primeira parte (nn. 01-26)

No dia 29 de junho de 2022 o Papa Francisco promulgou a Carta Apostólica Desiderio desideravi (Desejei ardentemente) sobre a formação litúrgica do povo de Deus.

Esta Carta é fruto da Assembleia Plenária do Dicastério para o Culto Divino (2019) e de uma reflexão feita pelo então Cardeal Jorge Mario Bergoglio em 2005 sobre a ars celebrandi, a “arte de celebrar”. Para acessar esse texto na íntegra, clique aqui.

Propomos aqui uma tradução nossa da Carta completa, a partir do seu texto italiano. Dividiremos os 65 parágrafos que a compõem em três postagens. Confira a seguir, pois, os nn. 01-26:

Papa Francisco
Carta Apostólica Desiderio desideravi
Aos Bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos
Sobre a formação litúrgica do povo de Deus

Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar” (Lc 22,15).

Caríssimos irmãos e irmãs,
1. Com esta Carta desejo chegar a todos - depois de ter escrito aos Bispos após a publicação do Motu Proprio Traditionis custodes - para compartilhar convosco algumas reflexões sobre a Liturgia, dimensão fundamental para a vida da Igreja. O tema é muito vasto e merece uma atenta consideração sobre todos os aspectos: todavia, com este escrito não pretendo tratar a questão de modo exaustivo. Desejo simplesmente oferecer alguns pontos de reflexão para contemplar a beleza e a verdade da celebração cristã.

"Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco" (Lc 22,15)

A Liturgia, “hoje” da história da salvação

2. “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco, antes de sofrer” (Lc 22,15). As palavras de Jesus, com as quais se abre o relato da última Ceia, são a “fresta” pela qual nos é dada a surpreendente possibilidade de intuir a profundidade do amor das Pessoas da Santíssima Trindade para conosco.

3. Pedro e João haviam sido enviados para preparar a Páscoa, mas, na verdade, toda a criação, toda a história - que finalmente estava prestes a revelar- se como a história de salvação - foi uma grande preparação para aquela Ceia. Pedro e os outros estão naquela mesa, inconscientes mas necessários: todo dom para ser tal deve ter alguém disposto a recebê-lo. Nesse caso, a desproporção entre a imensidão do dom e a pequenez de quem o recebe é infinita e não pode deixar de nos surpreender. No entanto - pela misericórdia do Senhor - o dom é confiado aos Apóstolos para que seja levado a cada ser humano.

4. Naquela Ceia ninguém ganhou um lugar: todos foram convidados, ou melhor, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tinha de comer aquela Páscoa com eles; Ele sabe que é o Cordeiro daquela Páscoa, sabe que Ele é a Páscoa. Esta é a absoluta novidade daquela Ceia, a única verdadeira novidade da história, que torna aquela Ceia única e por isso “última”, irrepetível. No entanto, o seu infinito desejo de restabelecer aquela comunhão conosco, que era e que permanece sendo o projeto original, não será satisfeito até que todo homem, de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5,9) tenha comido o seu Corpo e bebido o seu Sangue: por isso aquela mesma Ceia se fará presente, até o seu retorno, na celebração da Eucaristia.

5. O mundo ainda não sabe, mas todos são convidados para a ceia nupcial do Cordeiro (Ap 19,9). Para participar dela, basta a veste nupcial da fé que vem da escuta da sua Palavra (cf. Rm 10,17): a Igreja a confecciona sob medida, com a brancura de um tecido lavado no Sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,14). Não devemos ter um momento sequer de repouso sabendo que nem todos receberam ainda o convite para a Ceia ou que outros o esqueceram ou se perderam nos caminhos tortuosos da vida humana. Por isso disse que “sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal adequado à evangelização do mundo atual, mais do que à autopreservação” (Evangelii gaudium, n. 27): para que todos possam sentar-se à Ceia do sacrifício Cordeiro e viver d’Ele.

6. Antes da nossa resposta ao seu convite - muito antes - há o seu desejo por nós: podemos até não ser conscientes disso, mas cada vez que vamos à Missa, antes de tudo é porque somos atraídos pelo seu desejo por nós. Da nossa parte, a resposta possível, a ascese mais exigente, é, como sempre, aquela de entregar-se ao seu amor, de deixar-se atrair por Ele. Certamente toda a nossa comunhão com o Corpo e Sangue de Cristo foi desejada por Ele na Última Ceia.

7. O conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, o seu sacrifício em amorosa obediência ao Pai. Se não tivéssemos a última Ceia, isto é, a antecipação ritual da sua Morte, não poderíamos compreender como a execução da sua sentença de morte poderia ser o ato de culto perfeito e agradável ao Pai, o único verdadeiro ato de culto. Poucas horas depois, os Apóstolos poderiam ter visto na cruz de Jesus, se tivessem suportado o seu peso, o que significava “Corpo oferecido”, “Sangue derramado”: é disso que fazemos memória em cada Eucaristia. Quando volta, ressuscitado dos mortos, para partir o pão para os discípulos de Emaús e para os seus que voltaram a pescar peixes - e não homens - no lago da Galileia, aquele gesto abre os seus olhos, cura-os da cegueira infligida pelo horror da cruz, tornando-os capazes de “ver” o Ressuscitado, de crer na Ressurreição.

"O conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus"

8. Se tivéssemos chegado a Jerusalém depois de Pentecostes e tivéssemos sentido o desejo não apenas de ter informações sobre Jesus de Nazaré, mas de poder ainda encontrá-lo, não teríamos outra opção senão a de buscar os seus para ouvir as suas palavras e ver seus gestos, mais vivos do que nunca. Não teríamos outra possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele senão aquela da comunidade que celebra. Por isso a Igreja sempre guardou como seu mais precioso tesouro o mandato do Senhor: “Fazei isto em memória de mim”.

9. Desde o início a Igreja estava consciente de que não se tratava de uma representação, mesmo que sagrada, da Ceia do Senhor: não teria sentido e ninguém poderia pensar em “encenar” - ainda mais diante dos olhos de Maria, a Mãe do Senhor - aquele momento altíssimo da vida do Mestre. Desde o início a Igreja compreendeu, iluminada pelo Espírito Santo, que aquilo que era visível de Jesus, o que podia ser visto com os olhos e tocado com as mãos, as suas palavras e os seus gestos, a concretude do Verbo Encarnado, tudo d’ Ele havia passado à celebração dos sacramentos [1].

A Liturgia, lugar do encontro com Cristo

10. Aqui reside toda a poderosa beleza da Liturgia. Se a Ressurreição fosse para nós um conceito, uma ideia, um pensamento; se o Ressuscitado fosse para nós a memória da memória dos outros, ainda que revestidos de autoridade, como Apóstolos; se não nos fosse dada também a possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele, seria como declarar esgotada a novidade do Verbo feito carne. Ao contrário, a Encarnação, além de ser o único evento novo que a história conhece, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu para nos abrir o caminho da comunhão. A fé cristã ou é um encontro com Ele vivo ou não é.

11. A Liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Não precisamos de uma vaga recordação da última Ceia: nós precisamos estar presentes naquela Ceia, poder ouvir a sua voz, comer o seu Corpo e beber o seu Sangue: precisamos d’Ele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos nos é garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pela força da sua Páscoa. A força salvífica do sacrifício de Jesus, de cada palavra sua, de cada gesto, olhar, sentimento chega até nós na celebração dos sacramentos. Eu sou Nicodemos e a Samaritana, o possesso de Cafarnaum e o paralítico na casa de Pedro, a pecadora perdoada e a mulher com hemorragia, a filha de Jairo e o cego de Jericó, Zaqueu e Lázaro, o ladrão e Pedro perdoados. O Senhor Jesus que imolado, já não morre; e, morto, vive eternamente [2] continua a perdoar-nos, a curar-nos, a salvar-nos com a força dos sacramentos. É o modo concreto, por meio da Encarnação, com o qual Ele nos ama; é o modo pelo qual satisfaz sua própria sede por nós, como declarou sobre a cruz (Jo 19,28).

12. O nosso primeiro encontro com a sua Páscoa é o evento que marca a vida de todos nós que cremos em Cristo: o nosso Batismo. Não é uma adesão mental ao seu pensamento ou a “assinatura” de um código de conduta imposto por Ele: é mergulhar na sua Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão. Não é um gesto mágico: a magia é o oposto da lógica dos sacramentos, porque pretende ter poder sobre Deus e por isso vem do tentador. Em perfeita continuidade com a Encarnação, nos é dada a possibilidade, em virtude da presença e da ação do Espírito, de morrer e ressuscitar em Cristo.

13. O modo como isso acontece é comovente. A oração de bênção da água batismal [3] nos revela que Deus criou a água precisamente em vista do Batismo. Quer dizer que enquanto Deus criava a água pensava no Batismo de cada um de nós e este pensamento o acompanhou em sua ação ao longo da história da salvação todas as vezes que, com um desígnio preciso, quis servir-se da água. É como se, depois de criá-la, quisesse aperfeiçoá-la para vir a ser a água do Batismo. Foi por isso que quis enchê-la com o movimento do seu Espírito que pairava sobre ela (cf. Gn 1,2) para que contivesse em germe o poder de santificar; usou-a para regenerar a humanidade no dilúvio (cf. Gn 6,1-9.29); dominou-a, separando-a para abrir um caminho de libertação no Mar Vermelho (cf. Ex 14); consagrou-a no Jordão mergulhando nela a carne do Verbo imbuída do Espírito (cf. Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22). Por fim, misturou-a com o Sangue do seu Filho, dom do Espírito inseparavelmente unido ao dom da vida e da morte do Cordeiro imolado por nós, e do lado transpassado a derramou sobre nós (Jo 19,34). É nesta água que fomos mergulhados para que, pelo seu poder, pudéssemos ser enxertados no Corpo de Cristo e com Ele ressuscitar para a vida imortal (cf. Rm 6,1-11).

"Enquanto Deus criava a água pensava no Batismo de cada um de nós"

A Igreja, sacramento do Corpo de Cristo

14. Como o Concílio Vaticano II nos recordou (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 5), citando a Escritura, os Padres e a Liturgia - as colunas da verdadeira Tradição - do lado de Cristo adormecido na cruz brotou o admirável sacramento de toda a Igreja [4]. O paralelo entre o primeiro e o novo Adão é surpreendente: como do lado do primeiro Adão, depois de ter feito descer sobre ele um torpor, Deus formou Eva, do lado do novo Adão, adormecido no sono da morte, nasce a nova Eva, a Igreja. O espanto está nas palavras que podemos pensar que o novo Adão faz suas olhando para a Igreja: “Esta sim, é osso dos meus ossos, carne da minha carne” (Gn 2,23). Por termos acreditado na Palavra e descidos às águas do Batismo, nos tornamos osso dos seus ossos, carne da sua carne.

15. Sem esta incorporação não há possibilidade de viver a plenitude do culto a Deus. Com efeito, um só é o ato de culto perfeito e agradável ao Pai: a obediência do Filho, cuja medida é a sua morte na cruz. A única possibilidade de podermos participar da sua oferta é tornarmo-nos filhos no Filho. É este o dom que recebemos. O sujeito que atua na Liturgia é sempre e apenas Cristo-Igreja, o Corpo místico de Cristo.

O sentido teológico da Liturgia

16. Devemos ao Concílio - e ao Movimento Litúrgico que o precedeu - a redescoberta da compreensão teológica da Liturgia e da sua importância na vida da Igreja: os princípios gerais enunciados pela Sacrosanctum Concilium, assim como foram fundamentais para a reforma, continuam a sê-lo para a promoção daquela participação plena, consciente, ativa e frutuosa na celebração (cf. Sacrosanctum Concilium, nn. 11.14), “primeira e indispensável fonte da qual os fiéis podem haurir o genuíno espírito cristão” (ibid., n. 14). Com esta Carta desejo simplesmente convidar toda a Igreja a redescobrir, conservar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza da celebração cristã e das suas necessárias consequências na vida da Igreja não fossem deturpadas por uma compreensão superficial e redutiva do seu valor ou, pior ainda, por sua intrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja ela qual for. A oração sacerdotal de Jesus na última Ceia para que todos sejam um (Jo 17,21) julga todas as nossas divisões em torno do Pão partido, sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade [5].

A Liturgia, antídoto para o veneno do mundanismo espiritual

17. Em várias ocasiões adverti contra uma perigosa tentação para a vida da Igreja, que é o “mundanismo espiritual”: falei dela amplamente na Exortação Evangelii gaudium (nn. 93-97), identificando no gnosticismo e no neopelagianismo os dois modos interconectados que a alimentam.
O primeiro reduz a fé cristã a um subjetivismo que fecha o indivíduo “na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos” (Evangelii gaudium, n. 94).
O segundo anula o valor da graça para confiar apenas nas próprias forças, dando lugar a “um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias em controlar” (ibid.).
Essas formas distorcidas do cristianismo podem ter consequências desastrosas para a vida da Igreja.

18. Do quanto quis recordar acima, fica claro que a Liturgia é, por sua própria natureza, o antídoto mais eficaz contra esses venenos. Obviamente falo da Liturgia em seu sentido teológico e certamente não - Pio XII já o afirmava - como cerimonial decorativo ou mera soma de leis e preceitos que regulam o culto [6].

19. Se o gnosticismo nos intoxica com o veneno do subjetivismo, a celebração litúrgica nos liberta da prisão de uma autorreferencialidade alimentada pela própria razão ou pelos próprios sentimentos: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo, mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu”, mas “nós” e qualquer limitação na amplitude desse “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sozinhos na busca de um presumido conhecimento individual do mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos conduzir ao mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam. E o faz, coerentemente com a ação de Deus, seguindo o caminho da Encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se estende nas coisas, no espaço e no tempo.

20. Se o neopelagianismo nos intoxica com a presunção de uma salvação conquistada por nossas próprias forças, a celebração litúrgica nos purifica proclamando a gratuidade do dom da salvação acolhido na fé. Participar do sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa como se pudéssemos nos vangloriar disso diante de Deus e dos irmãos. O início de cada celebração me recorda quem sou, pedindo-me para confessar meu pecado e convidando-me a implorar à Bem-aventurada Virgem Maria, aos anjos, aos santos e a todos os irmãos e irmãs, que rezem por mim ao Senhor: certamente não somos dignos de entrar em sua casa, precisamos de uma palavra sua para sermos salvos (cf. Mt 8,8). Não temos outra glória senão a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Gl 6,14). A Liturgia nada tem a ver com um moralismo ascético: é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida. Não se entra no Cenáculo se não pela força de atração do seu desejo de comer a Páscoa conosco: Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (Lc 22,15).

"O Espírito, mergulhando-nos no Mistério Pascal, transforma toda a nossa vida"

Redescobrir cada dia a beleza da verdade da celebração cristã

21. Devemos, porém, estar atentos: para que o antídoto da Liturgia seja eficaz, somos chamados a redescobrir cada dia a beleza da verdade da celebração cristã. Refiro-me mais uma vez ao seu sentido teológico, como o n. 7 da Sacrosanctum Concilium admiravelmente descreveu: a Liturgia é o sacerdócio de Cristo revelado e doado a nós na sua Páscoa, tornado presente e ativo hoje através de sinais sensíveis (água, óleo, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, mergulhando-nos no Mistério Pascal, transforme toda a nossa vida, conformando-nos sempre mais a Cristo.

22. A contínua redescoberta da beleza da Liturgia não é a busca de um esteticismo ritual que se compraz apenas com o cuidado da formalidade externa de um rito ou se satisfaz com uma escrupulosa observância das rubricas. Obviamente esta afirmação não quer de forma alguma aprovar a atitude oposta que confunde a simplicidade com uma banalidade desleixada, a essencialidade com uma ignorante superficialidade, a concretude da ação ritual com um exasperado funcionalismo prático.

23. Sejamos claros: todos os aspectos da celebração devem ser cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música...) e todas as rubricas devem ser observadas: bastaria essa atenção para evitar roubar à assembleia aquilo que lhe é devido, ou seja, o Mistério Pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece. Mas ainda que a qualidade e a norma da ação celebrativa fossem garantidas, isso não seria suficiente para tornar plena a nossa participação.

Assombro diante do Mistério Pascal, parte essencial da ação litúrgica

24. Se viesse a faltar o assombro pelo Mistério Pascal que se faz presente na concretude dos sinais sacramentais, poderíamos realmente arriscar-nos a ser impermeáveis ​​ao oceano de graça que inunda cada celebração. Não são suficientes, ainda que louváveis, os ​​esforços a favor de uma melhor qualidade da celebração, nem mesmo o apelo à interioridade: também esta corre o risco de reduzir-se a uma subjetividade vazia se não acolhe a revelação do mistério cristão. O encontro com Deus não é o resultado de uma individual busca interior por Ele, mas é um acontecimento doado: podemos encontrar Deus através do fato novo da Encarnação, que na última Ceia chega ao extremo de querer ser comido por nós. Como pode acontecer-nos o infortúnio de subtrair-nos ao fascínio da beleza deste dom?

25. Com “assombro diante do Mistério Pascal” não pretendo de modo algum referir-me ao que às vezes me parece querer expressar-se com a vaga expressão “senso do mistério”: às vezes, entre as alegadas acusações contra a reforma litúrgica está a de tê-lo - diz-se - eliminado da celebração. O assombro do qual falo não é uma espécie de perplexidade diante de uma realidade sombria ou de um rito enigmático, mas, ao contrário, é a admiração pelo fato de que o plano salvífico de Deus nos foi revelado na Páscoa de Jesus (cf. Ef 1,3-14), cuja eficácia continua a chegar até nós na celebração dos “mistérios”, ou seja, dos sacramentos. Não deixa de ser verdade, porém, que a plenitude da revelação possui, em comparação com a nossa finitude humana, um excesso que nos transcende e que terá o seu cumprimento no fim dos tempos, quando o Senhor voltar. Se o assombro é verdadeiro não há risco de que a alteridade da presença de Deus não seja percebida, apesar da proximidade desejada pela Encarnação. Se a reforma litúrgica houvesse eliminado esse “sentido de mistério”, mais do que uma acusação, seria um mérito. A beleza, como a verdade, sempre gera assombro e quando se refere ao mistério de Deus, leva à adoração.

26. O assombro é parte essencial da ação litúrgica, porque é a atitude de quem sabe encontrar-se diante da peculiaridade dos gestos simbólicos; é a maravilha de quem experimenta a força do símbolo, que não consiste em referir-se a um conceito abstrato, mas em conter e expressar o que ele significa na sua concretude.

"A beleza, como a verdade, gera assombro e leva à adoração"

Notas:

[1] cf. Leão Magno, Sermão LXXIV: De Ascensione Domini II, 1: “quod (...) Redemptoris nostri conspicuum fuit, in sacramenta transivit”.
[2] Missal Romano, Prefácio da Páscoa III, p. 423 (Missale Romanum, Praefatio Paschalis III: “Qui immolátus iam non móritur, sed sempre vivit occísus”).
[3] cf. Missal Romano, pp. 286-287.
[4] cf. Agostinho, Enarrationes in Psalmos. Ps. 138, 2; Vigília Pascal: Oração após a sétima leitura (Missal Romano, p. 282); Missa pela Igreja (B): Oração sobre as oferendas (ibid., p. 877).
[5] cf. Agostinho, In Ioannis Evangelium Tractatus XXVI, 13.
[6] cf. Carta Encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947); in: AAS 39 (1947), 532.

Atualização:
Para acessar a Segunda parte, com os nn. 27-47 da Carta, clique aquiPara acessar a Terceira parte, com os nn. 48-65, clique aqui.

Tradução nossa a partir do texto italiano da Carta, disponível no site da Santa Sé.

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