Há cerca de uma semana, no dia 29 de junho de 2022, foi
promulgada a Carta Apostólica Desiderio
desideravi do Papa Francisco sobre a formação litúrgica do povo de Deus.
Além de recolher os frutos da Assembleia Plenária da
Congregação para o Culto Divino de 2019, o documento tem sua fonte primeira em
uma reflexão do então Cardeal Jorge
Mario Bergoglio na Plenária da Congregação de 2005, dedicada à ars
celebrandi, isto é, à “arte de celebrar”.
A reflexão do então Arcebispo de Buenos Aires (Argentina),
proferida no dia 01 de março de 2005, foi
retomada pelo Papa Francisco em seu encontro com o clero da diocese de Roma no
dia 19 de fevereiro de 2015.
O Cardeal Jorge Mario Bergoglio celebra a Santa Missa no Santuário Nacional de Aparecida |
Segue o texto da reflexão, publicado na íntegra em italiano pelo
jornal L’Osservatore Romano de 20 de
maio de 2015. A tradução é de Benno Dischinger, publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos, com
algumas correções realizadas pelo autor deste blog.
Ars celebrandi
Introdução
Na
Igreja hodierna muitos Bispos, sacerdotes e leigos sentem a exigência que seja
dada maior atenção ao aspecto por assim dizer contemplativo da celebração
litúrgica, isto é, àquela dimensão de interioridade que abriria a mente e o
coração ao mistério celebrado, que é Cristo nossa Páscoa. Esta
sensibilidade se exprime de diversas maneiras segundo as circunstâncias, os
lugares, as gerações e os gostos. Há quem sustenta que seria preciso insistir
no retorno de uma celebração realizada segundo o modelo ideal dos séculos
passados; e há quem fala, ao invés, de inculturação da Liturgia nos diferentes
contextos sociais. Não poucos apontam para a qualidade artística do interior
das nossas igrejas, para sua harmonia arquitetônica, para os materiais
preciosos, para o engenho de escultores e pintores. Aponta-se acima de tudo
para uma música que conduza os participantes “ao alto”, para além dos
sentimentos passageiros dos indivíduos, além das costumeiras dificuldades e
preocupações da vida cotidiana. Alguns, depois, imaginam que uma música
“popular” poderia estar em condições de atrair a atenção dos jovens, bem como
de favorecer neles o desejo religioso. Depois, a percepção de uma meta não
atingida impele muitos outros que se impacientam com o enquadramento dos livros
litúrgicos ou com a própria tradição da Igreja. Em consequência, procuram nas
inovações livres uma melhoria da celebração, um maior envolvimento do povo.
Diante
destas e de tantas outras propostas, se pode certamente argumentar a partir de
um sentido mais vivo do “ex opere operato”,
ou seja, a partir da eficácia da celebração dos sacramentos, que brota do fato
de que foram instituídos por parte do Salvador e emanam como que de sua
gloriosa e salvífica Paixão. De qualquer modo, isto é simbolizado no fluxo de
água e sangue do lado de Jesus Cristo por nós crucificado. É realmente
importante ter em conta esta visão da inesgotável eficácia “universal” dos
sacramentos quando se trata de celebrações em meio à pobreza do povo, em
circunstâncias humildes, longe do fausto, na perseguição e na clandestinidade,
onde se celebra com o pusillus grex,
o pequeno rebanho.
Em
todo caso, nas circunstâncias normais, nas nossas paróquias da cidade e do
campo, durante o domingo e os dias de festa, certamente não basta realçar a
eficácia do ex opere operato para
assegurar um verdadeiro envolvimento das pessoas. Então, retorna-se às
propostas anteriores: o embelezamento do espaço da celebração e dos ornamentos,
com vasos, paramentos, música em condições de atrair a atenção do povo e de
sugerir certa “riqueza” da experiência religiosa. Em todo caso, teríamos muito
a ganhar com uma cuidadosa meditação e aplicação das sadias normas que, a mais
de uma geração, se encontram nos próprios livros litúrgicos e nos documentos da
Santa Sé sobre estes e outros argumentos do gênero. Mas assim corremos o risco
de tocar apenas superficialmente a realidade humana e de fazer florescer ainda
menos a realidade da fé.
Recuperar o “estupor” (o fascínio da beleza)
Onde
o discurso da interioridade e a impressão que, não obstante todos os esforços -
ainda que generosos e bem intencionados - destes anos a favor de uma celebração
litúrgica mais bela, compreensível e envolvente, frequentemente tem faltado na
práxis algo muito importante.
O
próprio Santo
Padre [João Paulo II] o pressentiu, referindo-se
recentemente, em várias ocasiões, à necessidade de recuperar o sentido de
“estupor” do cristão diante do mistério da salvação em Cristo e, em particular,
diante da Eucaristia (cf.
Ecclesia de Eucharistia, n. 6). Mas o diz também o povo simples, as mães de
família e os jovens.
De
fato, também a interioridade corre o risco de permanecer no nível de uma
subjetividade vazia se não se eleva firmemente o discurso ao mistério cristão.
Recuperar o “estupor” diante do mistério. Como atingir este objetivo? Um conceito do qual se fala em vários ambientes há anos é a ars celebrandi. A noção exata ainda precisa ser definida. Mas, em geral, a ideia é a de um documento, de diretrizes, capazes de enfatizar a necessidade de valorizar certos elementos da celebração litúrgica, de modo a aumentar sua qualidade.
Na
última década deu-se muita ênfase nos documentos pontifícios à responsabilidade
do Bispo, também em matéria litúrgica. E com razão. Porém, na prática, do ponto
de vista do povo, o sacerdote permanece como ponto de referência essencial. Por
isso, em relação à ars celebrandi, penso
que se deva tratar sobretudo o que diz respeito ao sacerdote. Isso não
significa que o documento deva ser um texto somente para os sacerdotes. De
fato, caso se consiga definir a atitude do sacerdote, tal reflexão ajudará
também o povo: o ajudará a ver nele e a aprofundar sua própria função; mas,
sobretudo, favorecerá a oração.
No
contexto da campanha que a Igreja pôs em ação para uma atenção renovada ao
mistério eucarístico e, em todo caso, em vista de uma simplicidade e
linearidade de expressão, limitarei a ars celebrandi à celebração da Eucaristia,
e àquela pública, sobretudo paroquial.
O Cardeal Bergoglio celebra a Santa Missa |
Um estilo cuidadosamente direcionado
Desejo
um documento límpido e claro do ponto de vista expressivo, com uma dimensão
também bíblica e dos textos litúrgicos; um texto de meditação, mais do que um
tratado de teologia: exortativo, ou melhor, capaz de oferecer motivações, mais
do que jurídico ou rubricístico. Deveria, porém, distinguir-se de uma exposição
genérica sobre a espiritualidade sacerdotal, de modo a ser um texto prático,
que considere a celebração da Eucaristia e, em particular, os diversos aspectos
que deve cumprir o sacerdote.
Antes
de tudo, o sacerdote celebrante deve estar consciente do mandato recebido na Ordenação: Agnosce quod agis, imitare quod tractas [Toma
consciência do que vais fazer e põe em prática o que vais celebrar]. Que
primeiro capte o sentido do mistério, para depois comunicá-lo à comunidade
cristã, de modo que essa se conforme à grandeza do mistério. Isso requer uma fé
viva, nutrida, e um sadio espírito de oração.
De
resto, não é necessário um cerimonial, ainda que se deva tratar também dos
aspectos externos da celebração, no que diz respeito ao sacerdote. Estou
convencido que se poderia falar não só da preparação, mas também do cuidado dos
gestos, da atitude do corpo, da dignidade, daquela liderança humilde mas
incisiva que consiste em deixar intuir ao povo, que ama o homem que sabe rezar
a Liturgia, que sabe vestir-se não só com os paramentos tradicionais, mas
sobretudo da pessoa do Senhor Jesus Cristo. Em tudo isso, não se trata de
refinamento, de esteticismo; não é questão de devocionismo individualista e
clerical; está em jogo, ao contrário, um verdadeiro ministério pastoral, digno
diante de Deus, mas - de maneira tão verdadeira quão dificilmente definível -
perceptível por quem faz parte das nossas comunidades cristãs; por quem se
dirige à celebração da Eucaristia para receber e para dar; para quem, com a
graça de Deus, deseja fazer da Eucaristia realmente “fons et culmen” [fonte e ápice] da própria
existência.
Tudo
isso, é claro, o sacerdote deve deixar transparecer em estreita relação com o
povo do qual é pastor e ao qual, celebrando a Eucaristia,
não faz um ato de caridade, mas sim um ato de justiça.
Uma “ars dicendi”
É
aqui que entra em jogo o discurso daquilo que chamarei uma ars dicendi
[arte de dizer].
A
esta expressão atribuirei dois sentidos. O primeiro é a maneira com a qual o
sacerdote fala, quando pronuncia os
textos prescritos. Neste caso, ele não fala simplesmente com sua voz privada:
aqui sua voz é propriamente o veículo da oração da Igreja e dos fiéis
congregados naquela ocasião. O que ele diz é comunicação e testemunho. O
sacerdote deve estar consciente disso; antes, deve fazê-lo tornar-se um tema das
suas meditações, nas quais deve também aprofundar o sentido dos vários textos
litúrgicos. Além disso, o sacerdote, também através do tom da voz, de seu ritmo
e da relativa velocidade com que fala, deve de certo modo levar as pessoas
consigo na oração. É necessário um modo de falar que não é simplesmente um ler,
um pregar, um anunciar, mas antes de tudo um orar sincero.
O
segundo sentido que desejo atribuir à expressão ars dicendi intercepta em alguns aspectos o discurso sobre a homilia, que
será objeto de atenção particular nesta Plenária. Aqui quero especificamente
evocar a necessidade que o sacerdote esteja atento ao uso daquelas partes onde
é exigida dele a formulação livre.
Deve saber distinguir entre a “língua vulgar” (no sentido do vulgus) e a “língua popular”, no sentido da
linguagem da rua, ou seja, das conversações privadas. Deve comunicar em uma
língua viva e acessível. Deve falar ao coração. Não deve, porém, afastar-se
daquilo que requer a circunstância e a celebração do mistério.
Um movimento que parte do sacerdote
Se com um documento sobre a ars celebrandi se pudesse ajudar o sacerdote a celebrar com a justa consciência (agnosce quod agis), se inseriria, ipso facto, também no povo uma maior consciência acerca da celebração litúrgica. Condicionaria - no melhor sentido do termo - também o diácono, os leitores e os demais ministros. Tal consciência é um dom de Deus, que é implorada na oração e que é concedida por Deus aos santos. Diz-se, por exemplo, que a teve o Beato Alfredo Ildefonso Schuster, mas a arte cristã a atribui a muitos santos, como São Gregório Magno, São Bernardo, Santo Inácio.
Voltando ao primeiro sentido que dei à expressão ars dicendi, isto é, sobre a maneira com a qual o sacerdote pronuncia os textos prescritos, insistirei também sobre a variedade de formulários à escolha que de fato já existe nos livros litúrgicos atuais. Para mim são mais do que suficientes. Tal possibilidade de escolha aumentou muito após o Concílio e constitui um fato notável diante, por exemplo, de diversos Ritos Orientais. Portanto, que o sacerdote faça com cuidado a sua escolha entre os textos à disposição e depois, em consequência, saiba fazê-los uma oração viva da Igreja, levando consigo o povo. Se souber fazer isso, então resultarão supérfluos os míseros textos da “criatividade” selvagem. É uma grande arte aquela de pronunciar como se deve aqueles textos litúrgicos que se repetem com muita frequência, como a Oração Eucarística.
É
preciso, a meu ver, encontrar um modo de tocar rapidamente - sem dúvida, sem
ceder à polêmica - as atitudes a evitar, como aquela do sacerdote de gestos
rígidos, que parece quase ignorar a presença do povo; ou então o comportamento
do padre “mestre
de espetáculo”, um “showman”
que investe energias em uma espécie de animação superficial. Há também o padre “muito
ocupado”, que não tem tempo para uma digna celebração em tempo razoável (a
“síndrome de Marta“). Porém, na minha opinião, seria um erro transformar a ars celebrandi em um tratado sobre os abusos.
Oferecer motivos para uma boa práxis já é uma ação potente contra os abusos,
sem que sejam explicitados.
Exprimi
anteriormente minha convicção de que a ars
celebrandi não deveria ter uma concepção jurídica. Uma abordagem de tipo
jurídico ou disciplinar, embora seja legítima no momento devido, estaria neste
caso fora de lugar. Além disso, convém que o texto não tenha um aparato pesado
de notas ao pé da página. Pelo mesmo motivo, sou da opinião que se deva evitar
um collage de textos conciliares ou
pontifícios.
Ainda
que nos limitemos a tratar da celebração da Eucaristia, a ars celebrandi não pode, me parece, simplesmente retomar a Institutio Generalis Missalis Romani [Instrução Geral sobre o Missal Romano]. Não
convém nem que se torne uma espécie de vade-mécum
ou prontuário do conteúdo da referida Instrução,
nem que se ocupe de argumentos como a música sacra ou a arte sacra. Para ter
sucesso, deve ao contrário resistir serenamente à tentação não só de dizer tudo
sobre tudo, mas também muito sobre muito: que diga pouco e de modo direcionado;
que o diga bem, de maneira convicta e convincente.
Conclusão
Colocando
o argumento da ars celebrandi na ordem do dia desta Plenária, a
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos distribuiu, para
o que já estava em andamento há alguns anos, duas versões de textos que se
propõem tratar desta questão. Como foi explicado, os textos estão relacionados
entre si nas origens. Nem um nem o outro são propostos como uma redação
definitiva. Todavia, ambos podem ser úteis para suscitar o argumento e oferecer
uma primeira exemplificação. Em obséquio à tarefa de expositor que me foi
confiada, considero conveniente não procurar comentar estes textos, visto que
estão ao alcance da mão de todos. Gostaria, ao invés, de propor à discussão dos
Padres alguns critérios para progredir rumo à redação de um texto definitivo.
1. Sou da opinião de que efetivamente tenha chegado o momento para se proceder à confecção de um documento sobre a ars celebrandi.
2. Creio que tal documento deva ser breve, centrado nos argumentos essenciais, segundo uma ótica precisamente definida.
3. Deveria, a meu ver, assumir também um tom pastoral e espiritual, e até meditativo, deixando de lado uma abordagem de tipo jurídico ou disciplinar. O estilo deveria ser sincero, direto e simples, excluindo as expressões rebuscadas; mas evitando também os incisos e as frases ornamentais habituais nos documentos oficiais.
4. Para evitar dispersar a atenção, proponho tratar unicamente da celebração da Santa Missa, na consciência de que tal reflexão exercerá um influxo de modo natural e inevitável sobre todas as celebrações litúrgicas.
5. Pela mesma razão, considero que se requer um texto que explicite a atitude pastoral e espiritual que o sacerdote celebrante deve assumir no próprio ato da celebração, na consciência de que isso será de ajuda também ao povo e, em meio ao povo, àqueles que têm uma função particular.
6. Considero necessário, porém, prestar muita atenção para nem mesmo entrar na linha de redigir qualquer texto sobre a espiritualidade sacerdotal. Ao contrário, deve-se ter bem em vista que se trata da ação prática do sacerdote, no contexto especifico da celebração da Eucaristia.
7. Embora apreciando o trabalho de quantos contribuíram à confecção de um ou de outro texto postos à disposição do arquivo da Congregação, me parece que os critérios aqui anunciados poderiam por de parte ambos e empreender do início uma nova redação mais meditativa, fresca e vital.
8. Penso que tal documento não possa ser uma Instrução e provavelmente nem mesmo um Diretório, que resultaria demasiado pesado. Ao contrário, poderia ser publicado como um texto sui generis, com uma apropriada fórmula conclusiva que indique a aprovação do Santo Padre.
Roma, 01 de março de 2005.
Cardeal Jorge Mario Bergoglio, S. J.
Conforme
o resumo da Assembleia Plenária publicado na Revista Notitiae, os membros da Assembleia acolheram favoravelmente a
reflexão do Cardeal Bergoglio, porém decidiram não publicar um documento sobre
a ars celebrandi, aguardando as
conclusões do Sínodo sobre a Eucaristia, que se celebraria em outubro daquele
ano.
Como
fruto do Sínodo de 2005, com efeito, foi promulgada pelo Papa Bento XVI em 2207
a Exortação Apostólica Sacramentum
Caritatis, que reflete sobre a ars
celebrandi em sua II Parte (Eucaristia, mistério celebrado), sobretudo nos
nn. 38-42.
Infelizmente
a Carta Apostólica Desiderio desideravi não
cita em nenhum momento essa Exortação Apostólica nem as contribuições do Papa
Bento XVI em matéria litúrgica. Não obstante, a reflexão do Cardeal Bergoglio proferida em 2005 encontra amplo eco na Carta, cuja tradução oficial para o português ainda aguardamos.
Fontes:
Tradução
do texto: Instituto Humanitas Unisinos.
23 de fevereiro de 2015. Acesso em 07 de julho de 2022.
Texto
original: Believe, pray, live and preach.
Risorse per l'Ars Praedicandi e la formazione sacerdotale: Documenti. Acesso em 07 de julho de
2022.
Síntese
da Assembleia Plenária (Relazione sui
lavori): Notitiae, nn. 463-464,
vol. 41 (2005), nn. 3-4, pp. 196-199.
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