“Para as famílias
cristãs, nada pode ser imaginado de mais salutar nem eficaz que o exemplo da
Sagrada Família” (Papa Leão XIII, Breve Neminem Fugit) [1].
O Papa Leão XIII (†1903), como vimos em nossas postagens anteriores, foi um grande promotor da devoção à Sagrada Família de Jesus, Maria
e José.
Sagrada Família em Nazaré Note-se como as madeiras seguradas pelo Menino formam a Cruz (Christian Wilhelm Ernst Dietrich - séc. XVIII) |
Com efeito, dos três hinos para a Liturgia das Horas da Festa da Sagrada Família, celebrada no domingo após o Natal, dois são de sua autoria (enquanto o terceiro foi elaborado no contexto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II):
- I e II Vésperas: O lux beáta caelitum (Ó luz bendita dos céus);
- Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida oculta de Jesus);
- Laudes: Christe, splendor Patris (Ó Cristo, luz do Pai).
Para acessar o “índice” com todos os hinos do Próprio do Tempo, clique aqui.
Em nossa postagem anterior já apresentamos o hino das Vésperas, O lux beáta caelitum, com
seu texto em latim e sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos
de alguns comentários sobre a sua mensagem.
Cabe-nos agora fazer o mesmo com o segundo hino do Papa Leão
XIII para a Festa da Sagrada Família, entoado no Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida
oculta de Jesus edificante é relembrar):
Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum
Dulce fit nobis memoráre parvum
Názarae tectum tenuémque cultum;
éxpedit Iesu tácitam reférre
cármine vitam.
Arte qua Ioseph húmili excoléndus,
ábdito Iesus iuvenéscit aevo,
seque fabrílis sócium labóris
ádicit ultro.
Assidet nato pia mater almo,
ássidet sponso bona nupta, felix
si potest curas releváre lassis
múnere amíco.
O neque expértes óperae et labóris,
nec mali ignári, míseros iuváte;
quotquot implórant cólumen, benígno
cérnite vultu.
Sit tibi, Iesu, decus atque virtus,
sancta qui vitae documénta praebes,
quique cum summo Genitóre et almo
Flámine regnas. Amen [2].
Os três membros da Sagrada Família exercem a mesma e simples atividade doméstica: estender roupas (Lucio Massari - séc. XVI-XVII) |
Ofício das Leituras: A vida oculta de Jesus
A vida oculta de Jesus
edificante é relembrar;
dizer em verso a vida pobre
de Nazaré, humilde lar.
Na arte humilde de José,
jovem Jesus já se inicia
e ao trabalho do operário
de boa mente se associa.
Junto do filho está a mãe,
junto ao esposo a santa esposa.
Lá se compensam os cansaços
por amizade afetuosa.
Vós, ó Senhor, que conheceis
bem o trabalho e o suor
dai vossa ajuda aos que trabalham,
ouvi dos fracos o clamor.
A vós, Jesus, que pelo exemplo
a vida santa nos mostrais,
glória com o Pai e o Espírito
com Quem nos séculos reinais [3].
Comentário:
Assim como o hino das Vésperas, o hino do Ofício das
Leituras (antigamente chamado de “Matinas”), composto por Leão XIII em 1893,
está no Breviarium Romanum desde
1920, quando o Papa Bento XV (†1922) estendeu a Festa da Sagrada Família para
toda a Igreja de Rito Romano.
Originalmente, porém, este hino possuía nada menos que dez
estrofes, sendo intitulado Sacra jam
splendent [4]. Dessas, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II conservou cinco: a 3ª, a 5ª, a 7ª, a 8ª e a 10ª.
a) 1ª estrofe:
O hino da versão atual da Liturgia das Horas começa não com
uma epiclese, isto é, com uma “invocação” do Senhor, mas sim com uma anamnese: uma “recordação” ou “memorial” da história da salvação.
“Dulce fit nobis
memoráre parvum Názarae tectum tenuémque cultum; éxpedit Iesu tácitam reférre
cármine vitam” - “Seja doce para nós recordar a pequena casa de Nazaré e seu
simples modo de viver, e cantar um hino à vida oculta de Jesus”.
A tradução brasileira, por sua vez, altera ligeiramente a
ordem das frases, a fim de adequá-las à nossa língua (inclusive com rimas
alternadas entre os versos pares), conservando o sentido da estrofe: “A vida
oculta de Jesus edificante é relembrar, dizer em verso a vida pobre de Nazaré,
humilde lar”.
O hino, com efeito, está inteiramente dedicado à “vida
oculta de Jesus”, envolta na simplicidade da vida familiar e do trabalho, como
sintetiza São Paulo VI em seu célebre discurso em Nazaré, lido justamente no
Ofício das Leituras da Festa da Sagrada Família.
“Toda a vida de Cristo é mistério”, como indica o Catecismo da Igreja Católica (nn.
514-521). Assim, também a sua “vida oculta” é mistério de salvação (ibid., nn. 531-534) e deve ser devidamente celebrada, como indicam os dois últimos versos da estrofe.
b) 2ª estrofe:
A 2ª estrofe prossegue louvando a dimensão do trabalho, que
Jesus aprende com José:
“Arte qua Ioseph
húmili excoléndus, ábdito Iesus iuvenéscit aevo, seque fabrílis sócium labóris
ádicit ultro” - “Na arte que José humildemente exercia, o jovem Jesus vai
crescendo, aderindo voluntariamente ao trabalho do operário”.
A Vulgata, tradução
da Bíblia para o latim feita por São Jerônimo, utiliza o termo “faber” para referir-se a José, o qual
traduz o original grego τέκτων (tékton),
relacionado à palavra τέχνη (tékhne,
arte ou ofício manual, donde vem “técnica”). A tradição refere-se a José como
carpinteiro, embora os termos usados na Escritura indiquem qualquer pessoa que
trabalha com as mãos.
Jesus e José trabalhando como carpinteiros e Maria costurando (Mosaico no Santuário de Torreciudad, Espanha) |
O hino de Leão XIII destaca uma dupla dimensão do trabalho: “arte”
(no sentido de habilidade, de técnica) e “labor” (no sentido de empenho físico,
de cansaço), destacando que Jesus acolheu livremente o trabalho, como bem
sintetiza a monição introdutória da Bênção de locais de trabalho:
“Cristo Jesus revelou a grande dignidade do trabalho quando
Ele, a Palavra do Pai encarnada, se dignou ser chamado filho do operário, e
quis humildemente exercer com as próprias mãos as tarefas do operário, fazendo
assim desaparecer a maldição do pecado e transformando o trabalho numa fonte de
bênçãos” [6].
Com efeito, enquanto o primeiro Adão via o trabalho como
castigo (cf. Gn 3,17-19), o novo
Adão, Cristo, o santifica e transforma em fonte de bênçãos.
c) 3ª estrofe:
Após celebrar o trabalho, nosso hino exalta na estrofe
seguinte outra das “lições de Nazaré”: a vida familiar.
“Assidet nato pia
mater almo” - “A Mãe amorosa se senta com o Filho santo”. O adjetivo “pia” indica aqui o afeto maternal de
Maria em relação a Jesus, ao qual o hino aplica o adjetivo “almus”. Esse é um termo recorrente nos
hinos, como vimos em postagens anteriores, significando “benigno”, “santo”,
“aquele que dá a vida”.
A Virgem-Mãe com seu Filho ao colo, com efeito, imagem
amplamente utilizada na arte cristã, é intuída já no Evangelho, particularmente no relato da visita dos magos ao Menino (Mt 2,11).
“Assidet sponso bona
nupta” - “Sentada junto ao esposo está a boa esposa (ou a fiel esposa)”.
Este segundo verso da estrofe refere-se à Virgem Maria como esposa de José; mas
também pode nos remeter, em sentido simbólico, a Maria como modelo da Igreja,
fiel Esposa de Cristo.
A Virgem Maria com o Menino ao colo, tendo junto a si o esposo, São José O livro simboliza a obediência de ambos à Palavra de Deus (Francesco Albani - séc. XVI-XVII) |
Por fim, os dois últimos versos da estrofe retomam o tema do
cansaço do trabalho, indicando que a Esposa “é feliz por poder aliviar o
cansaço [do esposo e do Filho] com o serviço do seu amor” (felix si potest curas releváre lassis múnere amíco).
O amor familiar é expresso aqui, com efeito, com um “múnus”,
um serviço ou ministério, um dom: múnere
amíco. Amizade, por sua vez, remete ao termo grego φιλία (philia), empregado tanto para o amor
familiar quanto para o amor entre os amigos.
Como indica o Papa Bento XVI em sua Encíclica Deus Caritas Est (n. 3), o amor philia “é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos”: “Já não vos chamo servos, mas amigos” (Jo 15,5). Esta amizade será levada por Cristo ao extremo (Jo 13,1), transformando-se em amor αγάπη (ágape), quando Ele oferece a própria vida pela salvação dos amigos (Jo 15,12-14).
d) 4ª estrofe:
Após a “anamnese”
ou recordação nas primeiras três estrofes, a 4ª estrofe traz uma “epiclese”, isto é, uma invocação ou
súplica.
O primeiro verso do original é “O neque expértes óperae et labóris”, isto é, “Ó [vós] que não
fostes privados do trabalho e da fadiga”. A expressão poderia ser dirigida aos
três membros da Sagrada Família, uma vez que Jesus e José se dedicaram ao
trabalho braçal, como vimos na 2ª estrofe, e Maria ao trabalho doméstico.
Porém, na tradução brasileira se especifica o destinatário
da súplica: “Vós, ó Senhor, que conheceis bem o trabalho e o suor”.
Segue-se, a partir do segundo verso da estrofe, a súplica
propriamente dita, com dois pedidos:
- “Nec mali ignári, míseros iuváte” -
“[Vós] que não ignorais o mal, socorrei os míseros”;
- “Quotquot implórant
cólumen, benigno cérnite vultu” - “Olhai com rosto benigno a quantos
imploram sustento”.
Escultura da Sagrada Família em Turckheim, França (Note-se o Menino com os braços abertos, em um gesto de bênção) |
A tradução brasileira, por sua vez, inclui explicitamente na
súplica os trabalhadores: “dai vossa ajuda aos que trabalham, ouvi dos fracos o
clamor”.
Com efeito, Félix Arocena em sua obra Los himnos de la Liturgia de las Horas destaca como esta estrofe se
aproxima da preocupação do Papa Leão XIII pela condição dos operários, delineada sobretudo em sua Encíclica
Rerum Novarum (1891), um marco da Doutrina Social da Igreja [6].
e) 5ª estrofe:
Assim como no hino das Vésperas, a última estrofe compõe uma doxologia (breve fórmula de louvor), dirigida primeiramente a Cristo
e em seguida estendida às outras duas Pessoas da Santíssima Trindade
Como vimos em nossa postagem anterior, com efeito, Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro
Homem, é o ponto de intersecção entre a família humana e a Trindade, perfeito
Mediador entre nós e o Pai (1Tm 2,5).
“Sit tibi, Iesu, decus
atque virtus, sancta qui vitae documénta praebes” - “Jesus, a ti seja a
honra e a virtude (poder), a ti que nos dás um santo testemunho de vida”.
Como afirmamos anteriormente, toda a vida de Cristo é
mistério de salvação: Ele nos ensina não apenas por suas palavras, mas também
pelo seu exemplo de vida, como fica claro na tradução brasileira do nosso hino:
“A vós, Jesus, que pelo exemplo a vida santa nos mostrais”.
O hino conclui envolvendo toda a Trindade no louvor: “quique cum summo
Genitóre et almo Flámine regnas. Amen”; “Tu que reinas com o Pai Altíssimo
e o Espírito que dá vida. Amém”.
Como vimos acima, o adjetivo “almus”, aplicado a Cristo na 3ª estrofe, é agora usado para
qualificar o Espírito como “benigno”, “santo”, “aquele que dá a vida”.
Notas:
[1] “Nihil magis
salutare aut efficax familiis christianis cogitari potest exemplo Sacrae Familiae”: Acta Sanctae Sedis, vol. XXV,
1892-1893, p. 14.
[2] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus
Liturgiae: Inni della «Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis &
Communia.
[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 380.
[4] CATHOLIC CORNUCOPIA: The Hymns of the Breviary and Missal: Sacra jam splendent.
[5] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução
portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 220.
[6] AROCENA, Félix. Los
himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, p.
122.
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