Embora tenha dado continuidade ao ciclo de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas iniciado por João
Paulo II, o Papa Bento XVI não retomou os textos que já haviam sido abordados, à
exceção os hinos das Cartas Paulinas.
Portanto, em relação às II Vésperas do domingo da III semana do Saltério, o Papa
refletiu apenas sobre o Sl 110, no dia 08 de junho de 2005.
137. As grandes obras do Senhor: Sl 110(111),1-10
08 de junho de 2005
1. Hoje sentimos
o vento forte. Na Sagrada Escritura o vento é símbolo do Espírito Santo.
Esperemos que o Espírito nos ilumine agora na meditação do Salmo 110, que acabamos
de ouvir. Neste Salmo encontra-se um hino de louvor e ação de graças pelos
numerosos benefícios que definem Deus nos seus atributos e na sua obra de salvação:
fala-se de piedade, de ternura, de justiça, de poder, de verdade, de retidão, de fidelidade,
de aliança, de obras, de prodígios, até
de alimentos que Ele doa e, no fim,
do seu “nome” glorioso, isto é, da
sua pessoa. Por conseguinte, a oração é contemplação do mistério de Deus e das
maravilhas que Ele realiza na história da salvação.
2. O Salmo
abre-se com o verbo de agradecimento, que se eleva não apenas do coração do
orante, mas também de toda a assembleia litúrgica (v. 1). O objeto desta
oração, que inclui também o rito da ação de graças, é expresso com a palavra
“obras” (vv. 2.3.6.7). Elas indicam as intervenções salvíficas do Senhor,
manifestação da sua “justiça” (v. 3), palavra que na linguagem bíblica indica,
antes de tudo, o amor que gera salvação.
Portanto, o
coração do Salmo transforma-se num hino da aliança (vv. 4-9), aquele vínculo
íntimo que une Deus com o seu povo e que inclui uma série de atitudes e de
gestos. Fala-se assim de “bondade e clemência”, “piedade e ternura” (v. 4), em
continuidade com a grande proclamação do Sinai: “Senhor! Senhor! Deus
misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade” (Ex 34,6).
A “piedade” é a
graça divina que envolve e transfigura o fiel, enquanto a “ternura” é expressa
no original hebraico com uma palavra característica que remete para as
“vísceras” maternas do Senhor, ainda mais misericordioso do que as de uma mãe (cf. Is 49,15).
"O Senhor... confirmou sua Aliança para sempre" (Sl 110,9) (Moisés recebe os Dez Mandamentos - Arnold Friberg) |
3. Este vínculo
de amor abrange o dom fundamental do alimento e, por conseguinte, da vida (v. 5)
que, na releitura cristã, se identificará com a Eucaristia, como diz São
Jerônimo: “Como alimento deu o pão que desceu do céu: se dele somos dignos,
alimentemo-nos dele!” (Breviarium in
Psalmos, 110: PL XXVI,
1238-1239).
Há depois o dom
da terra, “a herança das nações” (v. 6), que alude à grande vicissitude do êxodo,
quando o Senhor se revela como o Deus da libertação. Portanto, devemos procurar
a síntese do corpo central deste cântico no tema do pacto especial entre o
Senhor e o seu povo, como afirma de maneira clara o v. 9: “Confirmou sua Aliança
para sempre”.
4. O Salmo 110 é
selado com a palavra da contemplação do rosto divino, da pessoa do Senhor,
expressa através do seu “nome” santo e transcendente. Citando depois uma expressão
sapiencial (cf. Pr 1,7; 9,10; 15,33),
o salmista convida cada fiel a cultivar o “temor do Senhor” (v. 10), início da
verdadeira sabedoria. Esta expressão não quer significar o medo e o terror, mas
o respeito sério e sincero, que é fruto do amor, a adesão genuína e laboriosa
ao Deus libertador. E, se a primeira palavra do cântico tinha sido de agradecimento,
a última é de louvor: assim como a justiça salvífica do Senhor “permanece
eternamente” (v. 3), também a gratidão do orante não conhece pausas, ressoando
na oração: “Permaneça eternamente o seu louvor” (v. 10).
Para resumir, o
Salmo convida-nos a descobrir as numerosas coisas boas que o Senhor nos oferece
todos os dias. Nós vemos mais facilmente os aspectos negativos da nossa vida. O
Salmo convida-nos a ver também as coisas positivas, os numerosos dons que
recebemos, e assim encontrar a gratidão, porque só um coração grato pode
celebrar dignamente a grande Liturgia da gratidão, a Eucaristia.
5. Como
conclusão da nossa reflexão desejaríamos meditar com a tradição eclesial dos
primeiros séculos cristãos o versículo final, com a sua célebre declaração
reiterada em outra parte da Bíblia (Pr
1,7): “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (v. 10).
O escritor
cristão Barsanúfio de Gaza, na primeira metade do século VI, comentava-o assim:
“O que é o princípio de sabedoria, a não ser abster-se de tudo o que Deus
repudia? E de que forma pode abster-se, a não ser evitando fazer seja o que for
sem ter pedido conselho, ou com não dizer nada do que não se deve dizer e, além
disso, considerando-se a si mesmo insensato, estulto, desprezível e nada do
todo?” (Epistolário, 234: Coleção de textos patrísticos, XCIII, Roma,
1991, pp. 265-266).
João Cassiano, que
viveu entre os séculos IV e V, preferia esclarecer que “há muita diferença
entre o amor, ao qual nada falta e que constitui o tesouro da sabedoria e da
ciência, e o amor imperfeito, denominado ‘início da sabedoria’; este, contendo
em si a ideia do castigo, é excluído do coração dos perfeitos devido ao advento
da plenitude de amor” (Conferências aos
monges, 2, 11, 13; Coleção de textos
patrísticos, CLVI, Roma, 2000, p. 29). Assim, no caminho da nossa vida rumo
a Cristo, o temor servil que se verifica no início é substituído por um temor
perfeito, que é amor, dom do Espírito Santo.
Fonte: Santa Sé (08 de junho de 2005).
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