Os textos das Vésperas da sexta-feira da II semana constituem um marco na
série de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas: no dia 26
de janeiro de 2005 o Papa João Paulo II proferiria sua última Catequese desta
série (Sl 114).
Após sua morte, no dia 02 de abril de 2005, o Papa Bento XVI
retomaria o ciclo de Catequeses a partir dos dias 04 de maio (Sl 120) e 11 de
maio de 2005 (Ap 15,3-4).
131. Ação de graças: Sl 114(116A),1-9
26 de janeiro de 2005
1. No Salmo 114, que acaba
de ser proclamado, a voz do salmista expressa amor reconhecido pelo Senhor, porque
escutou sua intensa súplica: “Eu amo o Senhor, porque ouve o grito da minha
oração. Inclinou para mim seu ouvido, no dia em que eu o invoquei.” (vv. 1-2).
Imediatamente após esta declaração de amor, tem-se uma profunda descrição do
pesadelo mortal que atormentou a vida do orante (vv. 3-6).
O drama é representado com os símbolos habituais presentes nos Salmos. Os laços que prendem a existência são os da morte, as cordas que a angustiam são as espirais dos sepulcros, que querem atrair a si os vivos sem jamais se aplacar (cf. Pr 30,15-16).
2. A imagem é a de uma presa
que caiu na armadilha de um caçador inexorável. A morte é como uma mordaça que
aperta (v. 3). Portanto, por detrás do orante encontra-se um perigo de morte,
acompanhado de uma experiência psíquica dolorosa: “Invadiam-me angústia e
tristeza” (v. 3). Contudo, desse abismo trágico foi lançado um grito ao Único
que pode estender a mão e tirar o orante angustiado daquele enredo
inextricável: “Salvai, ó Senhor, minha vida!” (v. 4).
É uma oração breve, mas intensa, do homem que, encontrando-se numa situação desesperada, se agarra à única tábua de salvação. Assim, no Evangelho, bradaram os discípulos na tempestade (cf. Mt 8,25), assim implorou Pedro quando, caminhando sobre as águas do mar, começava a afundar (cf. Mt 14,30).
O então Cardeal Ratzinger (futuro Bento XVI) apresenta a cruz ao Papa João Paulo II |
3. Tendo sido salvo, o orante proclama que o Senhor “é justiça e bondade”, aliás, “é amor-compaixão” (v. 5). No horizonte hebraico, este último adjetivo remete para a ternura da mãe, de quem ele evoca as “entranhas”.
A confiança autêntica sente sempre Deus como amor, embora em certos momentos seja difícil intuir o percurso da sua ação. De qualquer forma, permanece certo que “o Senhor defende os humildes” (v. 6). Portanto, na miséria e no abandono pode-se contar sempre com ele, “pai dos órfãos e protetor das viúvas” (Sl 67,6).
4. Agora tem início um diálogo do salmista com a sua alma, que continuará no sucessivo Salmo 115, considerado um só com o nosso. Foi o que fez a tradição judaica, dando origem ao único Salmo 116, segundo a numeração hebraica do Saltério. O salmista convida a sua alma a voltar a encontrar a paz serena, depois do pesadelo mortal (v. 7).
Invocado com fé, o Senhor estendeu a mão, rompeu os laços que amordaçavam o orante, enxugou as lágrimas dos seus olhos e deteve a sua descida precipitosa ao abismo infernal (v. 8). A mudança já é clara e o cântico termina com uma cena de luz: o orante volta à “terra dos vivos”, ou seja, pelos caminhos da terra, para andar na “presença de Deus” (v. 9). Ele une-se à oração comunitária no templo, antecipação daquela comunhão com Deus, que o aguardará no final da sua existência.
5. Enfim, gostaríamos de retomar os trechos mais importantes do Salmo, deixando-nos orientar por um grande escritor cristão do século III, Orígenes, cujo comentário ao Salmo 114, em grego, chegou até nós na versão latina de São Jerônimo.
Ao ler que o Senhor “inclinou para mim seu ouvido”, ele observa: “Nós somos pequenos e humildes, e não podemos estender-nos nem elevar-nos para o alto; é por isso que o Senhor inclina o seu ouvido e se digna escutar-nos. Afinal, dado que somos homens e não podemos tornar-nos deuses, Deus fez-se homem e inclinou-se, segundo quanto está escrito: ‘Inclinou os céus e desceu’ (Sl 17,10)”.
Com efeito, o Salmo continua: “O Senhor defende os humildes” (v. 6): “Se alguém é grande, se exalta e é soberbo, o Senhor não o protege; se alguém se julga grande, o Senhor não tem misericórdia dele; mas se alguém se humilha, o Senhor tem misericórdia dele e protege-o. A tal ponto que diz: ‘Eis que eu e os filhos que o Senhor me deu’ (Is 8,18). E ainda: ‘Eu estava sem forças e Ele salvou-me’”.
Assim, quem é pequeno e desventurado pode voltar à paz e ao descanso, como diz o Salmo (v. 7) e como comenta o próprio Orígenes: “Quando se diz: ‘Volta ao teu repouso’, é sinal que antes tinha o descanso e que depois o perdeu... Deus criou-nos bons, fez-nos árbitros das nossas decisões e colocou-nos todos no paraíso, juntamente com Adão. Mas dado que, pela nossa livre decisão, precipitamo-nos daquela bem-aventurança, terminando no vale de lágrimas, por isso o justo exorta a sua alma a voltar ao lugar de onde caiu... ‘Volta, minha alma, ao teu repouso, porque o Senhor foi bom para contigo’. Se tu, alma, voltas ao Paraíso, não é porque és digna disto, mas porque é obra da misericórdia de Deus. Se saíste do Paraíso, foi por tua culpa; contudo, voltar para ali é obra da misericórdia do Senhor. Digamos também nós à nossa alma: ‘Volta ao teu repouso’. O nosso descanso é Cristo, nosso Deus” (Orígenes-Jerônimo, 74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 409.412-413).
132. Deus protetor de seu povo: Sl 120(121),1-8
04 de maio de 2005
1. Como já anunciei na quarta-feira passada, decidi retomar nas Catequeses o comentário aos salmos e cânticos que compõem as Vésperas, usando os textos predispostos pelo meu querido predecessor, o Papa João Paulo II.
Iniciamos hoje com o Salmo 120. Este salmo faz parte da coleção dos “cânticos das subidas”, ou seja, da peregrinação rumo ao encontro com o Senhor no templo de Sião. É um salmo de confiança, porque nele ressoa seis vezes o verbo hebraico shamar, “guardar, proteger”. Deus, cujo nome é invocado repetidamente, emerge como o “guarda” sempre acordado, atento e solícito, a “sentinela” que vigia sobre o seu povo para guardá-lo de qualquer risco e perigo.
O cântico abre-se com um olhar do orante dirigido para o alto, “para os montes”, isto é, para as colinas sobre as quais se eleva Jerusalém: de lá vem a ajuda, porque sobre eles habita o Senhor no seu templo (vv. 1-2). Contudo os “montes” podem evocar também os lugares onde surgem os santuários idolátricos, as chamadas “alturas”, muitas vezes condenadas pelo Antigo Testamento (cf. 1Rs 3,2; 2Rs 18,4). Neste caso haveria um contraste: enquanto o peregrino progride em direção a Sião, os seus olhos caem sobre os templos pagãos, que constituem uma grande tentação para ele. Mas a sua fé é inabalável e a sua certeza é uma só: “Do Senhor é que me vem o meu socorro, do Senhor que fez o céu e fez a terra!” (v. 2). Também na peregrinação da nossa vida existem coisas semelhantes. Vemos alturas que se abrem e se apresentam como uma promessa de vida: a riqueza, o poder, o prestígio, a vida confortável. Alturas que são tentações, porque se apresentam realmente como a promessa da vida. Mas nós, na nossa fé, vemos que não é verdade e que estas alturas não são a vida. A verdadeira vida, a verdadeira ajuda vem do Senhor. E o nosso olhar dirige-se, portanto, para a altura verdadeira, para o verdadeiro monte: Cristo.
2. Esta confiança é ilustrada no Salmo através da imagem do guarda e da sentinela, que vigiam e protegem. É feita alusão também ao pé que não vacila (v. 3) no caminho da vida e talvez ao pastor que na pausa noturna vigia sobre o seu rebanho sem adormecer nem cochilar (v. 4). O pastor divino não conhece repouso na obra de tutela do seu povo, de todos nós.
Depois, surge no Salmo outro símbolo, o da “sombra”, que supõe a retomada da viagem durante o dia ensolarado (v. 5). O pensamento corre para a histórica marcha no deserto do Sinai, onde o Senhor caminha diante de Israel “durante o dia, numa coluna de nuvem para conduzi-los na estrada” (Ex 13,21). No Saltério reza-se assim com frequência: “Protege-me à sombra das tuas asas...” (Sl 16,8; cf. Sl 90,1). Há aqui também um aspecto realístico da nossa vida. Com frequência a nossa vida move-se sob um sol desumano. O Senhor é a sombra que nos protege, que nos ajuda.
3. Depois da vigília e da sombra, eis o terceiro símbolo, o do Senhor que “está à direita” do seu fiel (v. 5). Esta é a posição do defensor, quer militar quer processual: é a certeza de não ser abandonados no tempo das provações, do assalto do mal, da perseguição. Neste ponto o salmista volta à ideia da viagem durante um dia quente, no qual Deus nos protege do sol escaldante.
Mas depois do dia vem a noite. Na antiguidade considerava-se que também os raios lunares fossem nocivos, causa de febre, ou de cegueira, ou até de loucura; por isso, o Senhor também nos protege durante a noite (v. 6), nas noites da nossa vida.
O Salmo chega agora ao final com uma declaração sintética de confiança: Deus nos guardará com amor a cada momento, protegendo a nossa vida de qualquer mal (v. 7). Todas as nossas atividades, resumidas nos dois verbos extremos de “sair” e “entrar”, a “partida” e a “chegada”, estão sempre sob o olhar vigilante do Senhor. Ele protege cada um dos nossos atos e todo o nosso tempo, “desde agora e para sempre” (v. 8).
4. Desejamos agora, no final, comentar esta última declaração de confiança com um testemunho espiritual da antiga tradição cristã. De fato, no Epistolário de Barsanúfio de Gaza (falecido a meados do século VI), um asceta de grande fama, interpelado por monges, eclesiásticos e leigos devido à sabedoria do seu discernimento, encontramos citado várias vezes o versículo do Salmo: “O Senhor te guardará de todo o mal, Ele mesmo vai cuidar da tua vida” (v. 7). Com este versículo ele pretendia confortar quantos lhe manifestavam as próprias fadigas, as provas da vida, os perigos, as desgraças.
Certa vez, Barsanúfio, tendo-lhe sido pedido por um monge que rezasse por ele e pelos seus companheiros, respondeu do seguinte modo, incluindo nos seus votos a citação deste versículo: “Diletos filhos meus, abraço-vos no Senhor, suplicando-o que vos proteja de qualquer mal e que vos conceda, como a Jó a resignação, como a José a graça, como a Moisés a humildade, como a Josué, filho de Nun, o valor nos combates, como aos juízes o perdão dos pensamentos, como aos reis Davi e Salomão a subjugação dos inimigos, e como aos israelitas, a fertilidade da terra... Conceda-vos a remissão dos vossos pecados com a cura do corpo como ao paralítico. Salve-vos das ondas como a Pedro e vos poupe às tribulações como a Paulo e aos outros Apóstolos. Proteja-vos de todo o mal, como seus verdadeiros filhos e vos conceda o que o vosso coração pede, para benefício da alma e do corpo no seu nome. Amém!” (Barsanúfio e João de Gaza, Epistolário, 194: Coleção de Textos Patrísticos, XCIII, Roma, 1991, pp. 235.236).
133. Hino de adoração: Ap 15,3-4
11 de maio de 2005
1. Breve e solene, incisivo e grandioso na sua tonalidade, é o cântico que agora ouvimos e assim fizemos nosso, elevando-o como hino de louvor ao “Senhor e nosso Deus onipotente” (v. 3). Este é um dos numerosos textos orantes inseridos no Apocalipse, o último livro da Sagrada Escritura, livro de julgamento, de salvação e sobretudo de esperança.
De fato, a história não está nas mãos de poderes obscuros, deixada ao acaso ou unicamente às opções humanas. Contra o desencadear-se de energias malévolas que vemos, contra a irrupção veemente de Satanás, contra o surgir de tantos flagelos e males, eleva-se o Senhor, árbitro supremo da vicissitude histórica. Ele conduz a história sabiamente, para o alvorecer dos novos céus e da nova terra, cantados na parte final do livro, sob a imagem da nova Jerusalém (cf. Ap 21–22).
Quem entoa este cântico, que agora queremos meditar, são os justos da história, os vencedores da Besta satânica, os que, através da derrota aparente do martírio, são na realidade os verdadeiros construtores do mundo novo, com Deus, artífice supremo.
2. Eles iniciam exaltando as obras “grandes e admiráveis” e os “caminhos verdadeiros e justos” do Senhor (v. 3). A linguagem usada neste cântico é característica do êxodo de Israel da escravidão egípcia. O primeiro cântico de Moisés - pronunciado depois da passagem do Mar Vermelho - celebra o Senhor “temível de glória, fazendo maravilhas” (Ex 15,11). O segundo cântico - referido pelo Deuteronômio no final da vida do grande legislador - recorda que “perfeitas são as suas obras. Todos os seus caminhos são justiça” (Dt 32,4).
Por conseguinte, pretende-se reafirmar que Deus não é indiferente às vicissitudes humanas, mas penetra nelas realizando os seus “caminhos”, isto é, os seus projetos e as suas “obras” eficazes.
3. Segundo o nosso hino, esta intervenção divina tem uma finalidade bem clara: ser um sinal que convida todos os povos da terra à conversão. Por conseguinte, o hino convida todos nós sempre de novo à conversão. As nações devem aprender a “ler” na história uma mensagem de Deus. A aventura da humanidade não é confundida e sem significado, nem está destinada sem apelo à prevaricação dos prepotentes e dos perversos.
Existe a possibilidade de reconhecer o agir divino escondido na história. Também o Concílio Ecumênico Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, convida o crente a perscrutar, à luz do Evangelho, os sinais dos tempos para encontrar neles a manifestação do próprio agir de Deus (cf. nn. 4.11). Esta atitude de fé leva o homem a reconhecer o poder de Deus que age na história, e a abrir-se assim ao temor do nome do Senhor. Na linguagem bíblica, de fato, este “temor” de Deus não é receio, não coincide com o medo, é algo totalmente diferente: é o reconhecimento do mistério da transcendência divina. Por isso ele está na base da fé e entrelaça-se com o amor. Diz a Sagrada Escritura no Deuteronômio: “O Senhor, teu Deus, exige de ti que o temas para seguires todos os seus caminhos, com todo o teu coração e com toda a tua alma” (cf. Dt 10,12). E Santo Hilário, Bispo do século IV, disse: “Todo o nosso temor está no amor”.
Nesta linha, no nosso breve hino, tirado do Apocalipse, unem-se temor e glorificação de Deus. O hino diz: “Quem, Senhor, não haveria de temer-vos, e quem não honraria o vosso nome?” (v. 4). Graças ao temor do Senhor não se tem medo do mal que se desencadeia na história e retoma-se com vigor o caminho da vida.
Precisamente graças ao temor de Deus não temos receio do mundo nem de todos esses problemas, não temos medo dos homens, porque Deus é mais forte. O Papa João XXIII disse certa vez: “Quem crê não teme, porque temendo a Deus que é bom, não sente receio nem do mundo nem do futuro”. E o profeta Isaías diz assim: “Fortalecei as mãos débeis, robustecei os joelhos vacilantes. Dizei aos que têm o coração pusilânime: ‘Tomai ânimo, não temais!’” (Is 35,3-4).
4. O hino termina com a previsão de uma procissão universal de povos que se apresentarão diante do Senhor da história, revelado através das suas “justas decisões” (v. 4). Eles se prostrarão em adoração. E o único Senhor e Salvador parece repetir-lhes as palavras pronunciadas na última noite da sua vida terrena, quando disse aos seus Apóstolos: “Tende confiança; eu já venci o mundo!” (Jo 16,33).
Queremos concluir a nossa breve reflexão sobre o cântico do “Cordeiro vitorioso”, entoado pelos justos do Apocalipse, com um antigo hino do lucernário, ou seja, da oração vespertina, já conhecido de São Basílio de Cesareia. Este hino diz: “Tendo chegado o pôr- do-sol, ao ver a luz da noite, cantamos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo de Deus. És digno de ser cantado em cada momento com vozes santas, Filho de Deus, tu que dás a vida. Por isso o mundo te glorifica” (S. Pricoco-M Simonetti, A oração dos cristãos, Milão, 2000, p. 97).
"Eu levanto os meus olhos para os montes: De onde pode vir o meu socorro? Do Senhor é que me vem o meu socorro" (Sl 120,1-2) (Ícone de Cristo, o Bom Pastor) |
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