As Catequeses sobre os salmos e o cântico das Vésperas da segunda-feira da III semana do Saltério foram proferidas pelo Papa Bento XVI nos dias 15 de junho (Sl 122), 22 de junho (Sl 123) e 06 de julho de 2005 (Ef 1,3-10).
138. Deus, esperança do seu povo: Sl
122(123),1-4
15 de junho de 2005
1. Jesus, no
Evangelho, afirma de modo muito incisivo que os olhos são um símbolo expressivo
do “eu” profundo, são um espelho da alma (cf.
Mt 6,22-23). Pois bem, o Salmo 122, agora proclamado, concentra-se
totalmente num cruzar de olhares: o fiel eleva os seus olhos ao Senhor e
aguarda uma reação divina, para nela ver um gesto de amor, um olhar de
benevolência. Também nós elevamos um pouco os olhos e aguardamos um gesto de
benevolência do Senhor.
Não raramente,
no Saltério, se fala do olhar do Altíssimo que “olhou para os seres humanos a
ver se havia alguém sensato, alguém que ainda procura Deus” (Sl 13,2). Como ouvimos, o salmista
recorre a uma imagem, à dos escravos que estão voltados para o seu senhor à
espera de uma decisão libertadora.
Mesmo se o
cenário se refere ao mundo antigo e às suas estruturas sociais, a ideia é clara
e significativa: aquela imagem tirada do mundo do antigo Oriente pretende
exaltar a adesão do pobre, a esperança do oprimido e a disponibilidade do justo
em relação ao Senhor.
"Eu levanto os meus olhos para vós" (Sl 122,1) (Cura do cego de nascença - Orazio de Ferrari) |
2. O orante está
na expectativa de que as mãos divinas se movam, porque elas atuam segundo a
justiça, destruindo o mal. Por isso muitas vezes no Saltério o orante eleva o
seu olhar repleto de esperança no Senhor: “Os meus olhos estão sempre postos no
Senhor, porque Ele tira os meus pés da armadilha” (Sl 24,15), “os meus olhos se cansam à espera do meu Deus” (Sl 68,4).
O Salmo 122 é uma
súplica na qual a voz de um fiel se une à de toda a comunidade: de fato, o
Salmo passa da primeira pessoa do singular - “Eu levanto os meus olhos” (v. 1) -
ao plural: “os nossos olhos” (v. 2). É expressa a esperança de que as mãos do
Senhor se abram para efundir dons de justiça e de liberdade. O justo espera que
o olhar de Deus se revele em toda a sua ternura e bondade, como se lê na antiga
bênção sacerdotal do Livro dos Números:
“O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti! O Senhor volte
para ti a sua face e te dê a paz” (Nm
6,25-26).
3. Revela-se na
segunda parte do Salmo quanto é importante o olhar amoroso de Deus, que se
caracteriza pela invocação: “Tende piedade, ó Senhor, tende piedade” (v. 3).
Ela coloca-se em continuidade com o final da primeira parte, onde é recordada a
expectativa confiante no Senhor, “até de nós ter piedade” (v. 2).
Os fiéis necessitam
de uma intervenção divina, porque se encontram em uma situação dolorosa de
desprezo e de escárnio da parte de pessoas prepotentes. A imagem que agora o salmista
usa é a da saciedade: “Já é demais esse desprezo. Estamos fartos do escárnio
dos ricaços e do desprezo dos soberbos!” (vv. 3-4).
À tradicional
saciedade bíblica de alimentos e de anos, considerada um sinal da bênção
divina, opõe-se agora uma saciedade intolerável, constituída de uma carga
exagerada de humilhações. Sabemos como hoje tantas nações, tantos indivíduos,
são realmente escarnecidos, demasiado saturados do desprezo dos arrogantes, da
troça dos orgulhosos. Rezemos por eles e ajudemos estes nossos irmãos
humilhados.
Por isso os
justos confiaram a sua e a nossa causa ao Senhor e Ele não permanece
indiferente àqueles olhos implorantes, não ignora a sua invocação, nem desilude
a sua esperança.
4. Por fim,
deixemos espaço à voz de Santo Ambrósio, o grande Bispo de Milão, o qual, no
espírito do salmista, ritma poeticamente a obra de Deus que nos alcança em
Jesus Salvador: “Cristo é tudo para nós. Se quiseres curar uma ferida, Ele é o
médico; se ardes de febre, Ele é a fonte; se és oprimido pela iniquidade, Ele é
a justiça; se precisas de ajuda, Ele é a força; se temes a morte, Ele é a vida;
se desejas o céu, Ele é o caminho; se evitas as trevas, Ele é a luz; se
procuras alimento, Ele é o pão” (A
virgindade, 99: Saemo, XIV/2, Milão-Roma, 1989, p. 81).
139. O nosso auxílio está no nome do
Senhor: Sl 123(124),1-8
22 de junho de 2005
1. Eis diante de
nós o Salmo 123, um cântico de ação de graças entoado por toda a comunidade
orante, que eleva a Deus o louvor pelo dom da libertação. O salmista proclama
na abertura este convite: “Que o diga Israel!” (v. 1), estimulando assim todo o
povo a elevar um agradecimento vivo e sincero ao Deus salvador. Se o Senhor não
tivesse se declarado da parte das vítimas, elas, com as suas forças limitadas
teriam sido impotentes para se libertar e os adversários, semelhantes a
monstros, as teriam dilacerado e esmagado.
Mesmo tendo
pensado em um determinado acontecimento histórico, como o fim do exílio da
Babilônia, é provável que o Salmo queira ser um hino composto para agradecer ao
Senhor os perigos evitados e para implorar d’Ele a libertação de qualquer mal.
Neste sentido, ele permanece um Salmo sempre atual.
2. Depois da
menção de certos “homens” que se levantavam contra os fiéis e eram capazes de “devorá-los”
(vv. 2-3), o cântico tem dois momentos. Na primeira parte dominam as águas
abundantes, símbolo na Bíblia da confusão devastadora, do mal e da morte: “As
águas nos teriam submergido, a correnteza nos teria arrastado, e então, por
sobre nós teriam passado essas águas sempre mais impetuosas” (vv. 4-5). O
orante sente agora a sensação de estar numa praia, milagrosamente salvo da
fúria impetuosa do mar.
A vida do homem
está circundada pelas ciladas dos malvados, que não só atentam contra a sua
existência, mas querem destruir também todos os valores humanos. Vemos como
estes pequenos perigos existem também agora. Mas, disso podemos ter a certeza
também hoje, o Senhor intervém para tutelar o justo e o salva, como se canta no
Salmo 17: “Do alto, Deus interveio e recolheu-me; tirou-me das águas
caudalosas. Livrou-me de inimigos poderosos, de adversários mais fortes do que
eu... o Senhor foi o meu amparo. Retirou-me para um lugar seguro; libertou-me,
porque me quer bem” (Sl 17, 17.20). Verdadeiramente o Senhor nos quer bem: esta
é a nossa certeza e o motivo da nossa grande confiança.
3. Na segunda
parte do nosso cântico de agradecimento passa-se da imagem marinha para um
cenário de caça, típica em muitos Salmos de súplica (vv. 6-8). De fato, eis a
evocação de uma fera que aperta entre os seus dentes uma presa, ou de uma rede
de caçadores que captura um pássaro. Mas a bênção expressa pelo Salmo faz-nos
compreender que o destino dos fiéis, que era um destino de morte, foi
radicalmente mudado por uma intervenção salvífica: “Bendito seja o Senhor, que
não deixou cairmos como presa de seus dentes! Nossa alma como um pássaro
escapou do laço que lhe armara o caçador; o laço arrebentou-se de repente, e
assim nós conseguimos libertar-nos” (vv. 6-7).
Neste ponto, a
oração torna-se um respiro de alívio que se eleva do fundo da alma: também
quando caem todas as esperanças humanas, pode surgir o poder divino que
liberta. Por conseguinte, o Salmo conclui com uma profissão de fé, que há
séculos entrou na Liturgia cristã como premissa ideal de qualquer oração nossa:
“Adiutorium nostrum in nomine Domini, qui
fecit caelum et terram”; “O nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o
céu e a terra” (v. 8). Em particular o Onipotente declara-se da parte das
vítimas e dos perseguidos “que a Ele clamam dia e noite” e “lhes fará justiça
prontamente” (cf. Lc 18,7-8).
4. Santo
Agostinho faz deste Salmo um comentário pormenorizado. Em um primeiro momento,
observa que este Salmo é adequadamente cantado pelos “membros de Cristo que já obtiveram
a bem-aventurança”. Depois, em particular, “cantaram-no os santos mártires, os
quais, tendo saído deste mundo, estão com Cristo na alegria, prontos para
retomar aqueles mesmos corpos incorruptíveis que antes eram corruptíveis. Em
vida sofreram tormentos no corpo, mas na eternidade estes tormentos transformaram-se
em ornamentos de justiça”. E Santo Agostinho fala dos mártires de todos os
séculos, também do nosso.
Mas, em um
segundo momento, o Bispo de Hipona diz-nos que também nós, não só os bem-aventurados
no céu, podemos cantar este Salmo na esperança. Ele declara: “Também nós
estamos animados por uma esperança certa e cantaremos na exultação. De fato, nos
são familiares os cantores deste Salmo... Portanto, cantemos todos em unidade
de coração: tanto os santos, que já possuem a coroa, como nós, que com o afeto
nos unimos na esperança à sua coroa. Juntos desejamos aquela vida que aqui na
terra não temos, mas que nunca poderemos ter se antes não a desejarmos”.
Santo Agostinho
volta agora à primeira perspectiva e explica: “Os santos pensam nos sofrimentos
que encontraram, e olham agora, do lugar de bem-aventurança e de tranquilidade
onde se encontram, para o caminho percorrido a fim de alcançá-lo; e, dado que
teria sido difícil obter a libertação se não tivesse intervido a mão do
Libertador para socorrê-los, cheios de alegria exclamam: ‘Se o Senhor não
tivesse estado conosco’. Inicia assim o seu cântico. Nem sequer disseram do que
salvaram, tão grande é a sua exultação” (Exposição
sobre o Salmo 123, 3: Nova Biblioteca
Agostiniana, XXVIII, Roma, 1977, p. 65).
140. O plano divino da salvação: Ef 1,3-10
06 de julho de 2005
1. Ouvimos hoje
não um salmo, mas um hino tomado da Carta
aos Efésios (cf. Ef 1,3-14), que se
repete na Liturgia das Vésperas em cada uma das quatro semanas. Este hino é uma
oração de bênção dirigida a Deus Pai. O seu desenvolvimento dedica-se a traçar
as várias etapas do plano de salvação que se realiza através da obra de Cristo.
No centro da
bênção ressoa a palavra grega mysterion,
uma palavra associada normalmente aos verbos de revelação (“revelar”,
“conhecer”, “manifestar”). De fato, é este o grande projeto secreto que o Pai
tinha guardado em si desde toda a eternidade (v. 9) e que decidiu pôr em
prática e revelar “na plenitude dos tempos” (v. 10) em Jesus Cristo, seu Filho.
As etapas deste
plano são cadenciadas no hino pelas ações salvíficas de Deus por Cristo no
Espírito. Antes de tudo - este é o primeiro ato - o Pai escolhe-nos desde a
eternidade para que sermos “sem mácula e santos pelo amor” (v. 4); depois nos
predestina para sermos seus filhos (vv. 5-6); além disso, nos redime e perdoa
os nossos pecados (vv. 7-8); revela-nos plenamente o mistério da salvação em
Cristo (vv. 9-10); e, por fim, nos dá a herança eterna (vv. 11-12), oferecendo-nos
já agora, como sinal, o dom do Espírito Santo, em vista da ressurreição final
(vv. 13-14).
2. São
numerosos, por conseguinte, os acontecimentos salvíficos que se sucedem no
desenvolvimento do hino. Eles incluem as três Pessoas da Santíssima Trindade:
parte-se do Pai, que é o iniciador e o artífice supremo do plano de salvação;
fixa-se o olhar sobre o Filho, que realiza o desígnio na história; e se chega
ao Espírito Santo, que imprime o seu “selo” a toda a obra da salvação. Agora
nos deteremos brevemente nas duas primeiras etapas, a da santidade e a da
filiação (vv. 4-6).
O primeiro gesto
divino, revelado e concretizado em Cristo, é a eleição dos crentes, fruto de
uma iniciativa livre e gratuita de Deus. Portanto, no princípio, “antes de o
mundo ser criado” (v. 4), na eternidade de Deus, a graça divina está disponível
para entrar em ação. Comovo-me ao meditar esta verdade: desde toda a eternidade
estamos diante do olhar de Deus e Ele decidiu salvar-nos. Esta chamada tem como
conteúdo a nossa “santidade”, uma grande palavra. Santidade é participação na
pureza do Ser divino. Mas sabemos que Deus é caridade. E por isso, participar
na pureza divina significa participar na “caridade” de Deus, conformar-nos com
Deus que é “caridade”. “Deus é amor” (1Jo
4,8.16): esta é a verdade confortadora que nos faz compreender também que
“santidade” não é uma realidade distante da nossa vida, mas na medida em que
podemos tornar-nos pessoas que amam a Deus entramos no mistério da “santidade”.
O ágape torna-se assim a nossa
realidade quotidiana. Portanto, entramos no horizonte sagrado e vital do
próprio Deus.
3. Neste caminho
passa-se a outra etapa, também ela contemplada no plano divino desde a
eternidade: a nossa “predestinação” como filhos de Deus. Não só criaturas humanas,
mas realmente pertencentes a Deus como seus filhos.
Em outra parte,
Paulo exalta esta sublime condição de filhos (cf. Gl 4,5; Rm 8,15.23),
que exige e deriva da fraternidade com Cristo, o Filho por excelência,
“primogênito entre muitos irmãos” (Rm
8,29), e a intimidade em relação ao Pai celeste, que pode agora ser invocado
como “Abbá”, ao qual podemos dizer
“pai querido”, no sentido de verdadeira familiaridade com Deus, em uma relação
de espontaneidade e de amor. Estamos, por conseguinte, na presença de um dom
grandioso, que se tornou possível “por livre decisão da vontade” divina e da
“graça”, luminosa expressão do amor que salva.
4. Em conclusão,
confiamo-nos agora ao grande Bispo de Milão, Santo Ambrósio, o qual, em uma das
suas Cartas, comenta as palavras do Apóstolo
Paulo aos efésios, detendo-se em reflexão precisamente sobre o rico conteúdo do
nosso hino cristológico. Ele realça antes de tudo a graça superabundante com a
qual Deus nos tornou seus filhos adotivos em Cristo Jesus. “Por isso, não devemos
duvidar de que os membros estão unidos à sua cabeça, sobretudo porque desde o
princípio fomos predestinados para a adoção de filhos de Deus, por meio de
Jesus Cristo” (Carta XVI a Ireneu, 4;
Saemo, XIX, Milão-Roma, 1988, p. 161).
O santo Bispo de
Milão continua a sua reflexão observando: “Quem é rico, a não ser unicamente Deus,
criador de todas as coisas?”. E conclui: “Mas é muito mais rico de
misericórdia, porque a todos redimiu e - como autor da natureza - transformou-nos,
a nós que, segundo a natureza da carne, éramos filhos da ira e sujeitos ao
castigo, para que fôssemos filhos da paz e da caridade” (n. 7: ibid., p. 163).
O hino da Carta aos Efésios: um hino à Trindade (Para saber mais sobre o ícone, clique aqui) |
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