quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (48): Vésperas da segunda-feira da III semana

As Catequeses sobre os salmos e o cântico das Vésperas da segunda-feira da III semana do Saltério foram proferidas pelo Papa Bento XVI nos dias 15 de junho (Sl 122), 22 de junho (Sl 123) e 06 de julho de 2005 (Ef 1,3-10).

138. Deus, esperança do seu povo: Sl 122(123),1-4
15 de junho de 2005

1. Jesus, no Evangelho, afirma de modo muito incisivo que os olhos são um símbolo expressivo do “eu” profundo, são um espelho da alma (cf. Mt 6,22-23). Pois bem, o Salmo 122, agora proclamado, concentra-se totalmente num cruzar de olhares: o fiel eleva os seus olhos ao Senhor e aguarda uma reação divina, para nela ver um gesto de amor, um olhar de benevolência. Também nós elevamos um pouco os olhos e aguardamos um gesto de benevolência do Senhor.
Não raramente, no Saltério, se fala do olhar do Altíssimo que “olhou para os seres humanos a ver se havia alguém sensato, alguém que ainda procura Deus” (Sl 13,2). Como ouvimos, o salmista recorre a uma imagem, à dos escravos que estão voltados para o seu senhor à espera de uma decisão libertadora.
Mesmo se o cenário se refere ao mundo antigo e às suas estruturas sociais, a ideia é clara e significativa: aquela imagem tirada do mundo do antigo Oriente pretende exaltar a adesão do pobre, a esperança do oprimido e a disponibilidade do justo em relação ao Senhor.

"Eu levanto os meus olhos para vós" (Sl 122,1)
(Cura do cego de nascença - Orazio de Ferrari)

2. O orante está na expectativa de que as mãos divinas se movam, porque elas atuam segundo a justiça, destruindo o mal. Por isso muitas vezes no Saltério o orante eleva o seu olhar repleto de esperança no Senhor: “Os meus olhos estão sempre postos no Senhor, porque Ele tira os meus pés da armadilha” (Sl 24,15), “os meus olhos se cansam à espera do meu Deus” (Sl 68,4).
O Salmo 122 é uma súplica na qual a voz de um fiel se une à de toda a comunidade: de fato, o Salmo passa da primeira pessoa do singular - “Eu levanto os meus olhos” (v. 1) - ao plural: “os nossos olhos” (v. 2). É expressa a esperança de que as mãos do Senhor se abram para efundir dons de justiça e de liberdade. O justo espera que o olhar de Deus se revele em toda a sua ternura e bondade, como se lê na antiga bênção sacerdotal do Livro dos Números: “O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz” (Nm 6,25-26).

3. Revela-se na segunda parte do Salmo quanto é importante o olhar amoroso de Deus, que se caracteriza pela invocação: “Tende piedade, ó Senhor, tende piedade” (v. 3). Ela coloca-se em continuidade com o final da primeira parte, onde é recordada a expectativa confiante no Senhor, “até de nós ter piedade” (v. 2).
Os fiéis necessitam de uma intervenção divina, porque se encontram em uma situação dolorosa de desprezo e de escárnio da parte de pessoas prepotentes. A imagem que agora o salmista usa é a da saciedade: “Já é demais esse desprezo. Estamos fartos do escárnio dos ricaços e do desprezo dos soberbos!” (vv. 3-4).
À tradicional saciedade bíblica de alimentos e de anos, considerada um sinal da bênção divina, opõe-se agora uma saciedade intolerável, constituída de uma carga exagerada de humilhações. Sabemos como hoje tantas nações, tantos indivíduos, são realmente escarnecidos, demasiado saturados do desprezo dos arrogantes, da troça dos orgulhosos. Rezemos por eles e ajudemos estes nossos irmãos humilhados.
Por isso os justos confiaram a sua e a nossa causa ao Senhor e Ele não permanece indiferente àqueles olhos implorantes, não ignora a sua invocação, nem desilude a sua esperança.

4. Por fim, deixemos espaço à voz de Santo Ambrósio, o grande Bispo de Milão, o qual, no espírito do salmista, ritma poeticamente a obra de Deus que nos alcança em Jesus Salvador: “Cristo é tudo para nós. Se quiseres curar uma ferida, Ele é o médico; se ardes de febre, Ele é a fonte; se és oprimido pela iniquidade, Ele é a justiça; se precisas de ajuda, Ele é a força; se temes a morte, Ele é a vida; se desejas o céu, Ele é o caminho; se evitas as trevas, Ele é a luz; se procuras alimento, Ele é o pão” (A virgindade, 99: Saemo, XIV/2, Milão-Roma, 1989, p. 81).

139. O nosso auxílio está no nome do Senhor: Sl 123(124),1-8
22 de junho de 2005

1. Eis diante de nós o Salmo 123, um cântico de ação de graças entoado por toda a comunidade orante, que eleva a Deus o louvor pelo dom da libertação. O salmista proclama na abertura este convite: “Que o diga Israel!” (v. 1), estimulando assim todo o povo a elevar um agradecimento vivo e sincero ao Deus salvador. Se o Senhor não tivesse se declarado da parte das vítimas, elas, com as suas forças limitadas teriam sido impotentes para se libertar e os adversários, semelhantes a monstros, as teriam dilacerado e esmagado.
Mesmo tendo pensado em um determinado acontecimento histórico, como o fim do exílio da Babilônia, é provável que o Salmo queira ser um hino composto para agradecer ao Senhor os perigos evitados e para implorar d’Ele a libertação de qualquer mal. Neste sentido, ele permanece um Salmo sempre atual.

2. Depois da menção de certos “homens” que se levantavam contra os fiéis e eram capazes de “devorá-los” (vv. 2-3), o cântico tem dois momentos. Na primeira parte dominam as águas abundantes, símbolo na Bíblia da confusão devastadora, do mal e da morte: “As águas nos teriam submergido, a correnteza nos teria arrastado, e então, por sobre nós teriam passado essas águas sempre mais impetuosas” (vv. 4-5). O orante sente agora a sensação de estar numa praia, milagrosamente salvo da fúria impetuosa do mar.
A vida do homem está circundada pelas ciladas dos malvados, que não só atentam contra a sua existência, mas querem destruir também todos os valores humanos. Vemos como estes pequenos perigos existem também agora. Mas, disso podemos ter a certeza também hoje, o Senhor intervém para tutelar o justo e o salva, como se canta no Salmo 17: “Do alto, Deus interveio e recolheu-me; tirou-me das águas caudalosas. Livrou-me de inimigos poderosos, de adversários mais fortes do que eu... o Senhor foi o meu amparo. Retirou-me para um lugar seguro; libertou-me, porque me quer bem” (Sl 17, 17.20). Verdadeiramente o Senhor nos quer bem: esta é a nossa certeza e o motivo da nossa grande confiança.

3. Na segunda parte do nosso cântico de agradecimento passa-se da imagem marinha para um cenário de caça, típica em muitos Salmos de súplica (vv. 6-8). De fato, eis a evocação de uma fera que aperta entre os seus dentes uma presa, ou de uma rede de caçadores que captura um pássaro. Mas a bênção expressa pelo Salmo faz-nos compreender que o destino dos fiéis, que era um destino de morte, foi radicalmente mudado por uma intervenção salvífica: “Bendito seja o Senhor, que não deixou cairmos como presa de seus dentes! Nossa alma como um pássaro escapou do laço que lhe armara o caçador; o laço arrebentou-se de repente, e assim nós conseguimos libertar-nos” (vv. 6-7).
Neste ponto, a oração torna-se um respiro de alívio que se eleva do fundo da alma: também quando caem todas as esperanças humanas, pode surgir o poder divino que liberta. Por conseguinte, o Salmo conclui com uma profissão de fé, que há séculos entrou na Liturgia cristã como premissa ideal de qualquer oração nossa: “Adiutorium nostrum in nomine Domini, qui fecit caelum et terram”; “O nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra” (v. 8). Em particular o Onipotente declara-se da parte das vítimas e dos perseguidos “que a Ele clamam dia e noite” e “lhes fará justiça prontamente” (cf. Lc 18,7-8).

4. Santo Agostinho faz deste Salmo um comentário pormenorizado. Em um primeiro momento, observa que este Salmo é adequadamente cantado pelos “membros de Cristo que já obtiveram a bem-aventurança”. Depois, em particular, “cantaram-no os santos mártires, os quais, tendo saído deste mundo, estão com Cristo na alegria, prontos para retomar aqueles mesmos corpos incorruptíveis que antes eram corruptíveis. Em vida sofreram tormentos no corpo, mas na eternidade estes tormentos transformaram-se em ornamentos de justiça”. E Santo Agostinho fala dos mártires de todos os séculos, também do nosso.
Mas, em um segundo momento, o Bispo de Hipona diz-nos que também nós, não só os bem-aventurados no céu, podemos cantar este Salmo na esperança. Ele declara: “Também nós estamos animados por uma esperança certa e cantaremos na exultação. De fato, nos são familiares os cantores deste Salmo... Portanto, cantemos todos em unidade de coração: tanto os santos, que já possuem a coroa, como nós, que com o afeto nos unimos na esperança à sua coroa. Juntos desejamos aquela vida que aqui na terra não temos, mas que nunca poderemos ter se antes não a desejarmos”.
Santo Agostinho volta agora à primeira perspectiva e explica: “Os santos pensam nos sofrimentos que encontraram, e olham agora, do lugar de bem-aventurança e de tranquilidade onde se encontram, para o caminho percorrido a fim de alcançá-lo; e, dado que teria sido difícil obter a libertação se não tivesse intervido a mão do Libertador para socorrê-los, cheios de alegria exclamam: ‘Se o Senhor não tivesse estado conosco’. Inicia assim o seu cântico. Nem sequer disseram do que salvaram, tão grande é a sua exultação” (Exposição sobre o Salmo 123, 3: Nova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma, 1977, p. 65).

140. O plano divino da salvação: Ef 1,3-10
06 de julho de 2005

1. Ouvimos hoje não um salmo, mas um hino tomado da Carta aos Efésios (cf. Ef 1,3-14), que se repete na Liturgia das Vésperas em cada uma das quatro semanas. Este hino é uma oração de bênção dirigida a Deus Pai. O seu desenvolvimento dedica-se a traçar as várias etapas do plano de salvação que se realiza através da obra de Cristo.
No centro da bênção ressoa a palavra grega mysterion, uma palavra associada normalmente aos verbos de revelação (“revelar”, “conhecer”, “manifestar”). De fato, é este o grande projeto secreto que o Pai tinha guardado em si desde toda a eternidade (v. 9) e que decidiu pôr em prática e revelar “na plenitude dos tempos” (v. 10) em Jesus Cristo, seu Filho.
As etapas deste plano são cadenciadas no hino pelas ações salvíficas de Deus por Cristo no Espírito. Antes de tudo - este é o primeiro ato - o Pai escolhe-nos desde a eternidade para que sermos “sem mácula e santos pelo amor” (v. 4); depois nos predestina para sermos seus filhos (vv. 5-6); além disso, nos redime e perdoa os nossos pecados (vv. 7-8); revela-nos plenamente o mistério da salvação em Cristo (vv. 9-10); e, por fim, nos dá a herança eterna (vv. 11-12), oferecendo-nos já agora, como sinal, o dom do Espírito Santo, em vista da ressurreição final (vv. 13-14).

2. São numerosos, por conseguinte, os acontecimentos salvíficos que se sucedem no desenvolvimento do hino. Eles incluem as três Pessoas da Santíssima Trindade: parte-se do Pai, que é o iniciador e o artífice supremo do plano de salvação; fixa-se o olhar sobre o Filho, que realiza o desígnio na história; e se chega ao Espírito Santo, que imprime o seu “selo” a toda a obra da salvação. Agora nos deteremos brevemente nas duas primeiras etapas, a da santidade e a da filiação (vv. 4-6).
O primeiro gesto divino, revelado e concretizado em Cristo, é a eleição dos crentes, fruto de uma iniciativa livre e gratuita de Deus. Portanto, no princípio, “antes de o mundo ser criado” (v. 4), na eternidade de Deus, a graça divina está disponível para entrar em ação. Comovo-me ao meditar esta verdade: desde toda a eternidade estamos diante do olhar de Deus e Ele decidiu salvar-nos. Esta chamada tem como conteúdo a nossa “santidade”, uma grande palavra. Santidade é participação na pureza do Ser divino. Mas sabemos que Deus é caridade. E por isso, participar na pureza divina significa participar na “caridade” de Deus, conformar-nos com Deus que é “caridade”. “Deus é amor” (1Jo 4,8.16): esta é a verdade confortadora que nos faz compreender também que “santidade” não é uma realidade distante da nossa vida, mas na medida em que podemos tornar-nos pessoas que amam a Deus entramos no mistério da “santidade”. O ágape torna-se assim a nossa realidade quotidiana. Portanto, entramos no horizonte sagrado e vital do próprio Deus.

3. Neste caminho passa-se a outra etapa, também ela contemplada no plano divino desde a eternidade: a nossa “predestinação” como filhos de Deus. Não só criaturas humanas, mas realmente pertencentes a Deus como seus filhos.
Em outra parte, Paulo exalta esta sublime condição de filhos (cf. Gl 4,5; Rm 8,15.23), que exige e deriva da fraternidade com Cristo, o Filho por excelência, “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29), e a intimidade em relação ao Pai celeste, que pode agora ser invocado como “Abbá”, ao qual podemos dizer “pai querido”, no sentido de verdadeira familiaridade com Deus, em uma relação de espontaneidade e de amor. Estamos, por conseguinte, na presença de um dom grandioso, que se tornou possível “por livre decisão da vontade” divina e da “graça”, luminosa expressão do amor que salva.

4. Em conclusão, confiamo-nos agora ao grande Bispo de Milão, Santo Ambrósio, o qual, em uma das suas Cartas, comenta as palavras do Apóstolo Paulo aos efésios, detendo-se em reflexão precisamente sobre o rico conteúdo do nosso hino cristológico. Ele realça antes de tudo a graça superabundante com a qual Deus nos tornou seus filhos adotivos em Cristo Jesus. “Por isso, não devemos duvidar de que os membros estão unidos à sua cabeça, sobretudo porque desde o princípio fomos predestinados para a adoção de filhos de Deus, por meio de Jesus Cristo” (Carta XVI a Ireneu, 4; Saemo, XIX, Milão-Roma, 1988, p. 161).
O santo Bispo de Milão continua a sua reflexão observando: “Quem é rico, a não ser unicamente Deus, criador de todas as coisas?”. E conclui: “Mas é muito mais rico de misericórdia, porque a todos redimiu e - como autor da natureza - transformou-nos, a nós que, segundo a natureza da carne, éramos filhos da ira e sujeitos ao castigo, para que fôssemos filhos da paz e da caridade” (n. 7: ibid., p. 163).

O hino da Carta aos Efésios: um hino à Trindade
(Para saber mais sobre o ícone, clique aqui)

Fonte: Santa Sé (15 de junho, 22 de junho e 06 de julho de 2005).

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