Confira a homilia do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal:
Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição
Sempre e só por Cristo, como em Maria foi
Celebramos a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de
Portugal e sempre o fazemos com uma nota especial de adesão e afeto, que
ultrapassa a indicação do calendário e as explicações mais correntes.
Certamente que mantemos recordações familiares, eclesiais e até
nacionais que se avivam neste dia. É bom mantê-las e agradecê-las, por
sinalizarem a presença da Mãe de Jesus na nossa vida, pessoal e coletiva.
Também porque marcam o que em nós subsiste de melhor, em termos de aspiração à
verdade, à bondade e à beleza mais perfeitas, como na Imaculada Conceição se
apresentam e oferecem.
Aspiração que mantemos e nos mantém a nós, para que nada nos desvie do
ideal nela atingido e tudo o que houver a corrigir se corrija - em nós, na
Igreja e no mundo - para o manter vivo e nos refazer a todos. Lembre-se, a
propósito, que a declaração de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de
Portugal é do tempo da restauração da independência, como que apelando a uma
restauração mais alta, que só na virtude se consegue. E assim mesmo a tomaram
então alguns, como foi o caso do Padre António Vieira, aqui perto nascido.
É algo de forte e envolvente, como é próprio da fé teologal, dom divino
que nos abre os olhos da alma para a realidade completa das coisas, como são ou
hão de ser. Das coisas e sobretudo das pessoas, ligando-nos indissoluvelmente a
Jesus como nosso Cristo e a Maria como sua e nossa Mãe.
Abeiremo-nos pois da Virgem Santa Maria, no mistério da sua Imaculada
Conceição. Façamo-lo a partir das palavras garantidas que a Liturgia nos
oferece, tal como as ouviremos no prefácio desta Missa:
Dirigindo-se a Deus Pai, enuncia deste modo o essencial e o porquê da
Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria: «Vós a preservastes de toda a mancha
do pecado original, para que, enriquecida com a plenitude da vossa graça fosse
a digna Mãe do vosso Filho».
Mancha do pecado original é a triste mácula que como humanidade nos
ensombra a presença de Deus, porque que resistimos a aceitá-Lo como única fonte
de vida verdadeira. O trecho que ouvimos do Gênesis
representa esta triste realidade, que nos esconde de Deus e nos diminui a
todos.
Mas Deus não desistiu de nós. A antiga história bíblica - valendo também
como tipo da inteira história humana - ilustra em drama constante e tragédia
vária a persistência da primeira culpa em sucessivas descendências. Deus a formar
um povo que fosse finalmente seu e o povo a trocá-lo por deuses irreais ou
ídolos mais à mão.
Por fim, num fim que foi também início, Deus recriou o mundo para que nele
aparecesse uma humanidade nova. A terra recriada foi Maria, na sua Imaculada
Conceição. Nela pôde nascer o Homem novo, Jesus Cristo, plenamente de Deus para
Deus e inteiramente de Deus para nós. Deus criou Maria assim, para que nela
renascesse o mundo em forma de Cristo. De Cristo, “por quem todas as coisas
foram feitas”, como professamos na fé. De Cristo, em quem todas são refeitas, com
o sim imaculado de Maria.
A primeira concretização deste desígnio foi Ela própria, por graça do
Filho que teria. Por isso o prefácio dirá depois, sempre dirigido a Deus Pai:
«Dela, Virgem puríssima, devia nascer o vosso Filho, Cordeiro inocente que tira
o pecado do mundo». Havia um pecado a vencer, cumprindo o aviso feito à
serpente, como ouvimos no Gênesis:
«Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a
descendência dela. Esta te esmagará a cabeça...». A descendência da mulher é
Cristo, que de Maria tomou uma humanidade incólume e assim mesmo a restituiu a
Deus, qual cordeiro que no templo se imolasse.
Irmãos caríssimos, daqui renascemos nós, enquanto Igreja, Povo de Deus, Corpo
de Cristo e Templo do Espírito Santo. Maria, a Filha de Sião, resumia em si a
herança antiga, personificando um povo inteiro que finalmente dissesse “sim” a
Deus, como a ouvimos responder na Anunciação. Foi tão plena a graça que recebeu
como perfeita foi a correspondência que lhe deu. Assim nela encarnou o Filho
eterno, que conosco partilhou a vida que trazia e nos uniu a si como um só
Corpo. Corpo animado pelo Espírito filial de Cristo, novo templo do Espírito
também.
À verdade de Maria Imaculada corresponderá a santidade da Igreja, a
partir de Deus, sempre e só de Deus. Ouçamos ainda o Prefácio: «Nela destes
início à santa Igreja, esposa de Cristo, sem mancha e sem ruga, resplandecente
de beleza e santidade... Vós a destinastes, acima de todas as criaturas, a fim
de ser, para o vosso povo, advogada da graça e modelo de santidade».
Verificamos o facto de Deus no fato de Cristo, como pela Imaculada
aconteceu. Como na primeira criação, assim na nova criação de tudo em Cristo,
desde a Anunciação, tão discretamente também. Facto admirável que nos
responsabiliza a nós, para sermos santos e irrepreensíveis diante de Deus, como
na caridade diante de todos.
Porque o mundo não está como Deus o quer. Vale-nos o mesmo Deus, que não
desiste de o recriar em Cristo. Celebrar hoje a Imaculada Conceição de Maria, é
também tomá-la em correspondência efetiva à graça batismal que recebemos, como
Ela correspondeu à pleníssima graça, que a criara sem mancha.
E assim diremos que sim a Deus, para contar conosco em todas as fronteiras
da vida, para que a ninguém falte o que Deus quer dar através de nós. O sim de
Maria deu-nos Cristo a todos, o sim da nossa parte O dará também. Olhemos para
Maria, da Anunciação ao Presépio, do Presépio a Caná, de Caná à Cruz e da Cruz
ao Céu: em tudo veremos o que havemos de ser com Ela e o que havemos de ser
para os outros, dando Cristo a cada um, desamparado ou aflito que esteja, no
corpo ou no espírito. Imaculada significa completamente de Deus e para Deus, em
coincidência perfeita de vontade e ação, como conosco há de ser. Celebrar a
Imaculada é comprometermo-nos a nós, em tudo o que importe à purificação da
Igreja, para bem dum mundo de que Deus não desiste.
Como gerou a Cristo, também Maria nos acompanha agora, pois nos recebeu como
filhos ao pé da cruz: «Eis aí o teu filho», disse-lhe o Crucificado, indicando
o discípulo amado, que ali também éramos. E Maria aceita-nos, para nos ensinar
a cumprir a vontade recriadora de Deus. Assim continuará Cristo a salvar o
mundo. O grande mundo onde havemos de caber todos, sem que nada impeça a plena
realização de cada um, pessoa ou povo que seja. Um coração imaculado é um
coração sem fronteiras.
Guarda-nos São José, esposo virginal de Maria, que dela cuidou e de
Jesus. São José, a quem o Papa Francisco providencialmente dedicou o ano que
hoje se conclui, assinalando uma companhia que nenhum tempo esgota. Testemunha
e guardião das maravilhas de Deus em Maria, sê-lo-á também das que Deus
realizará em nós. Sempre e só por Cristo, como em Maria foi.
Sé de Lisboa, 08 de dezembro de 2021.
Manuel, Cardeal-Patriarca
Virgem Maria com o Menino circundada por anjos (Rosácea sul da Sé de Lisboa) |
Fonte: Patriarcado de Lisboa.
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