Confira nesta postagem as homilias do Patriarca de Lisboa (Portugal), Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, para a Solenidade do Natal do Senhor deste ano de 2020: “No grande presépio do mundo” (Missa da Noite) e “O Natal da humildade divina” (Missa do Dia)
Homilia na Missa da Noite do Natal do Senhor
No grande presépio do mundo
Esta noite traz-nos a notícia
do nascimento de Jesus e de como aconteceu. Relembremos: «Enquanto ali se
encontravam - José e Maria em Belém - chegou o dia de ela dar à luz, e teve o
seu filho primogênito. Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque
não havia lugar para eles na hospedaria».
Impressiona o fato de já
termos ouvido tantas vezes este trecho e sempre nos trazer algo de novo. É como
se ainda não tivéssemos extraído dele tudo quanto oferece, à meditação e à vida
de nós todos. E assim é realmente, como acontece aliás com tudo o que a Jesus
diz respeito e à nossa vida com Ele.
Por isso estamos aqui e assim
estão inumeráveis crentes por esse mundo além, quer se possam reunir em belos
templos, quer em recintos mais precários, ou mesmo escondidos de perseguições,
que infelizmente não faltam nalgumas latitudes.
É surpreendente a força
agregadora do Natal de Cristo. E exatamente na verdade do que aconteceu, que
acaba por se impor e até sobrepor a tudo o que o queira distorcer ou apagar,
seja em excesso consumista e decorativo, seja em laicismo desmemoriado e
espúrio.
O Natal vence porque nos
convence com a verdade de Deus como se apresenta no mundo, na simplicidade do
presépio e precisamente como foi, sem distração nem disfarce. É uma lição
também, a reaprender sem cessar. Foi assim que os Anjos a apresentaram aos
pastores e é assim que a devemos aprender e transmitir.
«Isto vos servirá de sinal: encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura». Sinal para eles e sinal para nós. Um menino envolto em panos, que já anunciavam os que o envolveriam na sepultura, porque daria a sua vida por nós. E deitado numa manjedoura, cujas tábuas prefiguravam as da cruz. Na verdade, veio preencher as nossas vidas com a sua, do nascimento à morte, por frágeis e custosas que sejam. É sempre o “Emanuel”, que significa Deus conosco e onde mais precisamos ser acompanhados.
Só assim nos salvaria onde temos de ser salvos - e assim aconteceu plenamente. Conclusões destas são próprias da meditação cristã, como o evangelista já fazia e nós continuamos a fazer, qual «pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro» (Mt 13, 52).
Como hoje aqui, neste Natal do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2021. Teremos feito algum presépio nas nossas casas, sobretudo com as suas figuras centrais: Jesus, Maria e José. Olhemo-las bem e deixemos que elas nos olhem a nós.
Mais além dos presépios que
fazemos com imagens simples ou trabalhadas, podemos e devemos fazê-los com
figuras em que Jesus se apresenta ao vivo e no que nos pede agora, em
tantos lugares deste mundo.
Partilho alguns deles, que se
juntam a tantos outros, casa a casa, situação a situação. Apenas alguns, de
especial clareza:
É o caso de um grupo que desde
há anos “faz presépio” com pessoas sem - abrigo. Começou quando uma religiosa
reparou em muitas delas, num jardim da cidade. Com alguns amigos, começou a
servir-lhes refeições. Depois, num autocarro cedido e transformado, manteve um
posto de primeiros socorros e atendimento para pessoas nessa situação.
Seguiram-se as equipas de voluntários que, noite após noite, levaram e
continuam a levar-lhes alimentos, em vários pontos da cidade. Aos que aceitam
um caminho de recuperação, oferecem a possibilidade de fazê-la nalguns centros
que fundaram e conseguem manter com os meios pessoais e materiais que vão
obtendo. E assim continuaram, mesmo em tempo de pandemia. Podemos dizer que
fazem presépio de verdade e de cada ano um Natal inteiro.
Outro presépio vivo surgiu
também há alguns anos, para casos em que as mães não têm possibilidade de
cuidar de filhos que nascem com graves dificuldades psicofísicas. Algumas
pessoas, com especial sensibilidade e grande determinação, levaram por diante
uma resposta solidária e capaz a tais situações. Com os recursos possíveis, que
advêm sobretudo do grande coração com que se entregam à causa, já conseguiram
acompanhar meio milhar de crianças em tais condições, com os recursos humanos e
materiais necessários. Sobretudo com o grande recurso dos seus corações
generosos. Fazem verdadeiramente presépio e deixam-nos entrever o mais que
acontecerá se iniciativas congêneres aparecerem.
Pude ver outro presépio numa
unidade de cuidados paliativos. Foi o caso de um professor de música, de
meia-idade, que ali preenchia criativamente o último tempo que sabia
restar-lhe. Sendo devidamente acompanhado e assistido, queria terminar uns
apontamentos que prometera aos alunos e preparava um último encontro dos seus
amigos, a realizar mesmo que não pudesse estar entre eles. Bastava-lhe que eles
estivessem por perto. Que bom será quando a generalização destes cuidados nos
transformar em sociedade paliativa, para todos os momentos da vida de cada um e
sem obviar os derradeiros! Uma sociedade - presépio, a construir agora.
Mais natalício ainda, outro
caso na mesma unidade. Uma jovem mãe ali assistida, consciente de que pouco
mais estaria neste mundo, quis batizar a sua bebé. Assim foi, com pleno consentimento
do seu marido. Celebração simples, de grande serenidade, envolvimento e
ternura: Matrimônio cristão dos pais e batizado da filha, na capela do
hospital. Estavam também alguns familiares, além de médicas, enfermeiras e
auxiliares. Fez-se verdadeiramente presépio e sentiu-se a paz de Belém
Como cristãos, acreditamos que tudo isto é “religioso”, porque nos religa a
Deus, presente nos outros e tão frágil como nasceu em Jesus. Neste Natal
de todos os dias, ouvimo-Lo nas Escrituras, recebemo-Lo nos Sacramentos,
adoramo-Lo diante da Hóstia consagrada e servimo-Lo nos outros, em especial os
mais pobres, de todas as pobrezas que sejam. Várias estarão bem perto e algumas
até nas nossas casas...
Na verdade, “fazer Natal todos
os dias” depende só de nós. Da parte de Deus, o presépio está montado e à nossa
espera. É o nosso lugar, no grande presépio do mundo!
Homilia na Missa do Dia do Natal do Senhor
O Natal da humildade divina
De quanto ecoa na Liturgia do
Santo Natal, retomo a frase que resume tudo o mais: «O Verbo fez-se carne e
habitou entre nós».
Deus comunica-se inteiramente
na humanidade que é a nossa, de modo tão manifesto e concreto como aconteceu em
Cristo, do presépio à cruz. Não O procuremos doutro modo, senão neste em que
nos procurou a nós. Por isso Cristo pôde responder mais tarde a um discípulo
que lhe perguntou por Deus Pai: «Há tanto tempo que estou convosco e não me
ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes, então,
mostra-nos o Pai? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em mim?» (Jo 14,9-10).
Por “carne” entende a Bíblia a
nossa condição humana, na fragilidade que a caracteriza, com as possibilidades
e limites que tem. Condição em que Deus se expressa para ser visto, ouvido e
entendido por cada um de nós. Deus Pai diz-se em Deus Filho, pelo Amor que os une
e nos quer incluir também.
Abeirar-se do mistério da Trindade
divina e da Encarnação do Verbo é tocar no âmago religioso e existencial de
Deus e de nós próprios. Religioso porque nos liga a Deus, como Jesus também
disse: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão
por mim». Existencial e nosso pelo que diz logo a seguir: «Se ficastes a
conhecer-me, conhecereis também o meu Pai. E já o conheceis, pois estais a
vê-lo» (Jo 14,6).
Reconheçamos então a Deus como
se diz em Jesus Cristo, Verbo de Deus incarnado. Fixemo-nos agora no Menino do
Presépio, neste nascimento tão diferente do que seria de esperar. Por mais que
a devoção e a arte embelezem a sua representação, trata-se irrecusavelmente de
um Menino deitado numa manjedoura. Não houve berço doirado naquele momento em
Belém.
O que na verdade esplende é a
verdade de Deus, que se revela em humildade absoluta. O Natal pede-nos
conversão ao modo divino de ser e acontecer entre nós. Pede-nos a presteza dos
pastores e a demanda dos magos. Ambos prenunciaram aquele “deixaram tudo e seguiram-no”
(cf. Lc 5,11) com
que se adere a Cristo, hoje como então. “Tudo” pode referir-se a bens materiais
que requerem partilha com quem precisa, ou a outros motivos que nos impedem de
aceitá-Lo como unicamente se manifesta. Sigamo-Lo como Ele é e não como o imaginaríamos
nós.
Não se trata de voluntarismo,
trata-se de nos encontrarmos com Deus tal como Ele se encontra conosco na
Palavra viva que nos dá em Cristo, ou seja, em humanidade vivida e convivida.
Não especulemos sobre Deus.
Seria perda de tempo e só nos encontraríamos a nós. Ouçamo-lo como Ele se disse
e vejamo-lo como Ele se revelou em Cristo, na “carne” de Cristo, tão próxima e
sensível que foi. A Encarnação do Verbo tanto nos revela os sentimentos de um
Deus que se aproxima de nós, como nos demonstra o que havemos de ser, para nos
aproximarmos de Deus.
Está conosco onde precisamos
de ser acompanhados, na nossa fragilidade, que fez sua. Todas as tradições
evangélicas o referem sem sombra de dúvida. Do Natal à Cruz, o Verbo de Deus
diz-se na carne que somos.
Teve sede, quando «cansado da
caminhada, se sentou na borda do poço» (Jo
4,6) e pediu de beber à samaritana. Teve fome, como neste passo, tão preciso e
tão corrente: «Saiu da cidade e foi para Betânia, onde pernoitou. Logo de manhã
cedo, ao voltar para a cidade, teve fome» (Mt 21,18). E, como
sentiu sede e fome, também reparou na fome dos outros, quando disse: «Tenho
compaixão desta gente, porque há já três dias que está comigo e não tem que
comer» (Mt 15,32).
Isto quanto às necessidades
corporais. Mas igualmente nosso e bem nosso, quanto aos sentimentos genuínos.
Assim, quando se alegrava por ser entendido e bem entendido: «Jesus estremeceu
de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: “Bendigo-Te, ó Pai, porque
escondestes estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelastes aos
pequeninos”» (Lc 10,21). Ou, quando se amargurava na tribulação: «…
começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes então: “A minha alma está
numa tristeza mortal”» (Mc 14,34).
O Verbo de Deus diz-se e
encarna no íntimo do que somos, aí mesmo onde precisamos de ser tocados e
salvos. Relembremos esta passagem, por demais sugestiva, junto ao túmulo de
Lázaro: «Ao vê-la a chorar - a Maria de Betânia - e os judeus que a
acompanhavam a chorar também, Jesus suspirou profundamente e comoveu-se. Depois
perguntou: “Onde o puseste?”. Responderam-lhe: “Senhor, vem e verás”. Então
Jesus começou a chorar. Diziam os judeus: “Vede como era seu amigo!”» (Jo 11,33-36).
Certamente o Menino chorara ao
nascer, como é próprio de quem nasce neste mundo. Depois compartilhou daquele
choro de Betânia, junto do túmulo do seu amigo Lázaro. Fixemos o passo
evangélico, para compreendermos algo dos sentimentos de Deus agora, diante de
tantos sepulcros materiais e anímicos que não faltam por esse mundo além e
aquém.
Começa por ser assim, encarnando, para se fazer realmente nosso. É desta
companhia absoluta que arranca depois a ressurreição, refazendo-nos como
inteiramente seus. O Verbo divino proferido em Cristo impregna de dentro toda a
carne do mundo. Toma para si o que nos faz sofrer para nos preencher da vida
que só com Deus triunfa. O Natal é o princípio da Páscoa, que nunca aconteceria
doutro modo.
Quando daqui a pouco
genufletirmos ao dizer «e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem
Maria, e se fez homem» coincidamos inteiramente com a verdade do Natal de
Cristo. Com a consequência espiritual e a repercussão que há de ter na nossa
relação com tudo. Não podemos alhear-nos do que Deus tomou para si, isto é, da
fragilidade humana que precisa ser acompanhada e assim mesmo salva. Para que o
Natal continue, também através de nós, Corpo de Cristo alargado no mundo.
Peçamos à Virgem Mãe que nos
ensine o que Ela mesma aprendeu e nos ofereceu com o seu pleno assentimento.
Peçamos a São José que nos ensine a guardar o mistério da humildade de Deus,
como ele tão exemplarmente o fez. Aprendamo-lo e pratiquemo-lo para que a
Encarnação do Verbo se propague sempre.
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2021.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa.
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