quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Homilias do Patriarca de Lisboa: Natal 2021

Confira nesta postagem as homilias do Patriarca de Lisboa (Portugal), Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, para a Solenidade do Natal do Senhor deste ano de 2020: No grande presépio do mundo” (Missa da Noite) e “O Natal da humildade divina” (Missa do Dia)

Homilia na Missa da Noite do Natal do Senhor
No grande presépio do mundo

Esta noite traz-nos a notícia do nascimento de Jesus e de como aconteceu. Relembremos: «Enquanto ali se encontravam - José e Maria em Belém - chegou o dia de ela dar à luz, e teve o seu filho primogênito. Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria».
Impressiona o fato de já termos ouvido tantas vezes este trecho e sempre nos trazer algo de novo. É como se ainda não tivéssemos extraído dele tudo quanto oferece, à meditação e à vida de nós todos. E assim é realmente, como acontece aliás com tudo o que a Jesus diz respeito e à nossa vida com Ele.
Por isso estamos aqui e assim estão inumeráveis crentes por esse mundo além, quer se possam reunir em belos templos, quer em recintos mais precários, ou mesmo escondidos de perseguições, que infelizmente não faltam nalgumas latitudes.
É surpreendente a força agregadora do Natal de Cristo. E exatamente na verdade do que aconteceu, que acaba por se impor e até sobrepor a tudo o que o queira distorcer ou apagar, seja em excesso consumista e decorativo, seja em laicismo desmemoriado e espúrio.
O Natal vence porque nos convence com a verdade de Deus como se apresenta no mundo, na simplicidade do presépio e precisamente como foi, sem distração nem disfarce. É uma lição também, a reaprender sem cessar. Foi assim que os Anjos a apresentaram aos pastores e é assim que a devemos aprender e transmitir.


«Isto vos servirá de sinal: encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura». Sinal para eles e sinal para nós. Um menino envolto em panos, que já anunciavam os que o envolveriam na sepultura, porque daria a sua vida por nós. E deitado numa manjedoura, cujas tábuas prefiguravam as da cruz. Na verdade, veio preencher as nossas vidas com a sua, do nascimento à morte, por frágeis e custosas que sejam. É sempre o “Emanuel”, que significa Deus conosco e onde mais precisamos ser acompanhados.
Só assim nos salvaria onde temos de ser salvos - e assim aconteceu plenamente. Conclusões destas são próprias da meditação cristã, como o evangelista já fazia e nós continuamos a fazer, qual «pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro» (Mt 13, 52).
Como hoje aqui, neste Natal do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2021. Teremos feito algum presépio nas nossas casas, sobretudo com as suas figuras centrais: Jesus, Maria e José. Olhemo-las bem e deixemos que elas nos olhem a nós.

Mais além dos presépios que fazemos com imagens simples ou trabalhadas, podemos e devemos fazê-los com figuras em que Jesus se apresenta ao vivo e no que nos pede agora, em tantos lugares deste mundo.
Partilho alguns deles, que se juntam a tantos outros, casa a casa, situação a situação. Apenas alguns, de especial clareza:
É o caso de um grupo que desde há anos “faz presépio” com pessoas sem - abrigo. Começou quando uma religiosa reparou em muitas delas, num jardim da cidade. Com alguns amigos, começou a servir-lhes refeições. Depois, num autocarro cedido e transformado, manteve um posto de primeiros socorros e atendimento para pessoas nessa situação. Seguiram-se as equipas de voluntários que, noite após noite, levaram e continuam a levar-lhes alimentos, em vários pontos da cidade. Aos que aceitam um caminho de recuperação, oferecem a possibilidade de fazê-la nalguns centros que fundaram e conseguem manter com os meios pessoais e materiais que vão obtendo. E assim continuaram, mesmo em tempo de pandemia. Podemos dizer que fazem presépio de verdade e de cada ano um Natal inteiro.
Outro presépio vivo surgiu também há alguns anos, para casos em que as mães não têm possibilidade de cuidar de filhos que nascem com graves dificuldades psicofísicas. Algumas pessoas, com especial sensibilidade e grande determinação, levaram por diante uma resposta solidária e capaz a tais situações. Com os recursos possíveis, que advêm sobretudo do grande coração com que se entregam à causa, já conseguiram acompanhar meio milhar de crianças em tais condições, com os recursos humanos e materiais necessários. Sobretudo com o grande recurso dos seus corações generosos. Fazem verdadeiramente presépio e deixam-nos entrever o mais que acontecerá se iniciativas congêneres aparecerem.
Pude ver outro presépio numa unidade de cuidados paliativos. Foi o caso de um professor de música, de meia-idade, que ali preenchia criativamente o último tempo que sabia restar-lhe. Sendo devidamente acompanhado e assistido, queria terminar uns apontamentos que prometera aos alunos e preparava um último encontro dos seus amigos, a realizar mesmo que não pudesse estar entre eles. Bastava-lhe que eles estivessem por perto. Que bom será quando a generalização destes cuidados nos transformar em sociedade paliativa, para todos os momentos da vida de cada um e sem obviar os derradeiros! Uma sociedade - presépio, a construir agora.
Mais natalício ainda, outro caso na mesma unidade. Uma jovem mãe ali assistida, consciente de que pouco mais estaria neste mundo, quis batizar a sua bebé. Assim foi, com pleno consentimento do seu marido. Celebração simples, de grande serenidade, envolvimento e ternura: Matrimônio cristão dos pais e batizado da filha, na capela do hospital. Estavam também alguns familiares, além de médicas, enfermeiras e auxiliares. Fez-se verdadeiramente presépio e sentiu-se a paz de Belém

Como cristãos, acreditamos que tudo isto é “religioso”, porque nos religa a Deus, presente nos outros e tão frágil como nasceu em Jesus. Neste Natal de todos os dias, ouvimo-Lo nas Escrituras, recebemo-Lo nos Sacramentos, adoramo-Lo diante da Hóstia consagrada e servimo-Lo nos outros, em especial os mais pobres, de todas as pobrezas que sejam. Várias estarão bem perto e algumas até nas nossas casas...
Na verdade, “fazer Natal todos os dias” depende só de nós. Da parte de Deus, o presépio está montado e à nossa espera. É o nosso lugar, no grande presépio do mundo!



Homilia na Missa do Dia do Natal do Senhor
O Natal da humildade divina

De quanto ecoa na Liturgia do Santo Natal, retomo a frase que resume tudo o mais: «O Verbo fez-se carne e habitou entre nós».
Deus comunica-se inteiramente na humanidade que é a nossa, de modo tão manifesto e concreto como aconteceu em Cristo, do presépio à cruz. Não O procuremos doutro modo, senão neste em que nos procurou a nós. Por isso Cristo pôde responder mais tarde a um discípulo que lhe perguntou por Deus Pai: «Há tanto tempo que estou convosco e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes, então, mostra-nos o Pai? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em mim?» (Jo 14,9-10).
Por “carne” entende a Bíblia a nossa condição humana, na fragilidade que a caracteriza, com as possibilidades e limites que tem. Condição em que Deus se expressa para ser visto, ouvido e entendido por cada um de nós. Deus Pai diz-se em Deus Filho, pelo Amor que os une e nos quer incluir também. 
Abeirar-se do mistério da Trindade divina e da Encarnação do Verbo é tocar no âmago religioso e existencial de Deus e de nós próprios. Religioso porque nos liga a Deus, como Jesus também disse: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim». Existencial e nosso pelo que diz logo a seguir: «Se ficastes a conhecer-me, conhecereis também o meu Pai. E já o conheceis, pois estais a vê-lo» (Jo 14,6).
Reconheçamos então a Deus como se diz em Jesus Cristo, Verbo de Deus incarnado. Fixemo-nos agora no Menino do Presépio, neste nascimento tão diferente do que seria de esperar. Por mais que a devoção e a arte embelezem a sua representação, trata-se irrecusavelmente de um Menino deitado numa manjedoura. Não houve berço doirado naquele momento em Belém.

O que na verdade esplende é a verdade de Deus, que se revela em humildade absoluta. O Natal pede-nos conversão ao modo divino de ser e acontecer entre nós. Pede-nos a presteza dos pastores e a demanda dos magos. Ambos prenunciaram aquele “deixaram tudo e seguiram-no” (cf. Lc 5,11) com que se adere a Cristo, hoje como então. “Tudo” pode referir-se a bens materiais que requerem partilha com quem precisa, ou a outros motivos que nos impedem de aceitá-Lo como unicamente se manifesta. Sigamo-Lo como Ele é e não como o imaginaríamos nós.
Não se trata de voluntarismo, trata-se de nos encontrarmos com Deus tal como Ele se encontra conosco na Palavra viva que nos dá em Cristo, ou seja, em humanidade vivida e convivida.
Não especulemos sobre Deus. Seria perda de tempo e só nos encontraríamos a nós. Ouçamo-lo como Ele se disse e vejamo-lo como Ele se revelou em Cristo, na “carne” de Cristo, tão próxima e sensível que foi. A Encarnação do Verbo tanto nos revela os sentimentos de um Deus que se aproxima de nós, como nos demonstra o que havemos de ser, para nos aproximarmos de Deus.
Está conosco onde precisamos de ser acompanhados, na nossa fragilidade, que fez sua. Todas as tradições evangélicas o referem sem sombra de dúvida. Do Natal à Cruz, o Verbo de Deus diz-se na carne que somos. 
Teve sede, quando «cansado da caminhada, se sentou na borda do poço» (Jo 4,6) e pediu de beber à samaritana. Teve fome, como neste passo, tão preciso e tão corrente: «Saiu da cidade e foi para Betânia, onde pernoitou. Logo de manhã cedo, ao voltar para a cidade, teve fome» (Mt 21,18). E, como sentiu sede e fome, também reparou na fome dos outros, quando disse: «Tenho compaixão desta gente, porque há já três dias que está comigo e não tem que comer» (Mt 15,32).
Isto quanto às necessidades corporais. Mas igualmente nosso e bem nosso, quanto aos sentimentos genuínos. Assim, quando se alegrava por ser entendido e bem entendido: «Jesus estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: “Bendigo-Te, ó Pai, porque escondestes estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelastes aos pequeninos”» (Lc 10,21). Ou, quando se amargurava na tribulação: «… começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes então: “A minha alma está numa tristeza mortal”» (Mc 14,34).
O Verbo de Deus diz-se e encarna no íntimo do que somos, aí mesmo onde precisamos de ser tocados e salvos. Relembremos esta passagem, por demais sugestiva, junto ao túmulo de Lázaro: «Ao vê-la a chorar - a Maria de Betânia - e os judeus que a acompanhavam a chorar também, Jesus suspirou profundamente e comoveu-se. Depois perguntou: “Onde o puseste?”. Responderam-lhe: “Senhor, vem e verás”. Então Jesus começou a chorar. Diziam os judeus: “Vede como era seu amigo!”» (Jo 11,33-36).
Certamente o Menino chorara ao nascer, como é próprio de quem nasce neste mundo. Depois compartilhou daquele choro de Betânia, junto do túmulo do seu amigo Lázaro. Fixemos o passo evangélico, para compreendermos algo dos sentimentos de Deus agora, diante de tantos sepulcros materiais e anímicos que não faltam por esse mundo além e aquém.
Começa por ser assim, encarnando, para se fazer realmente nosso. É desta companhia absoluta que arranca depois a ressurreição, refazendo-nos como inteiramente seus. O Verbo divino proferido em Cristo impregna de dentro toda a carne do mundo. Toma para si o que nos faz sofrer para nos preencher da vida que só com Deus triunfa. O Natal é o princípio da Páscoa, que nunca aconteceria doutro modo.

Quando daqui a pouco genufletirmos ao dizer «e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem» coincidamos inteiramente com a verdade do Natal de Cristo. Com a consequência espiritual e a repercussão que há de ter na nossa relação com tudo. Não podemos alhear-nos do que Deus tomou para si, isto é, da fragilidade humana que precisa ser acompanhada e assim mesmo salva. Para que o Natal continue, também através de nós, Corpo de Cristo alargado no mundo.
Peçamos à Virgem Mãe que nos ensine o que Ela mesma aprendeu e nos ofereceu com o seu pleno assentimento. Peçamos a São José que nos ensine a guardar o mistério da humildade de Deus, como ele tão exemplarmente o fez. Aprendamo-lo e pratiquemo-lo para que a Encarnação do Verbo se propague sempre.

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2021.


+ Manuel, Cardeal-Patriarca


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