Dando continuidade às Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas iniciada por João Paulo II, o Papa Bento XVI refletiu
sobre as I Vésperas do domingo da III semana do Saltério nos dias 18 de maio
(Sl 112), 25 de maio (Sl 115) e 01 de junho de 2005 (Fl 2,6-11).
134. O nome do Senhor é digno de louvor: Sl 112(113),1-9
18 de maio de 2005
1. Ressoou agora na sua
simplicidade e beleza o Salmo 112, verdadeiro pórtico de entrada para uma
pequena coleção de Salmos, que vai do 112 ao 117, convencionalmente chamada “o Hallel egípcio”. É o “aleluia”, isto é,
o cântico de louvor que exalta a libertação da escravidão do faraó e a alegria
de Israel em servir o Senhor em liberdade na terra prometida (cf. Sl 113).
Não foi por acaso que a
tradição hebraica tinha relacionado esta série de salmos com a Liturgia pascal.
A celebração deste acontecimento, segundo as suas dimensões histórico-sociais e
sobretudo espirituais, era sentida como sinal da libertação do mal na
multiplicidade das suas manifestações.
O Salmo 112 é um breve hino,
que no original hebraico consta apenas de cerca de sessenta palavras, todas
permeadas de sentimentos de confiança, louvor e alegria.
"Elevo o cálice da minha salvação, invocando o nome santo do Senhor" (Sl 115,13) (Papa Bento XVI celebra a Missa no Brasil em 2007) |
2. A primeira estrofe (vv. 1-3)
exalta “o nome do Senhor” que, como se sabe, na linguagem bíblica indica a
própria pessoa de Deus, a sua presença viva e ativa na história humana.
Por três vezes, com apaixonada
insistência, ressoa “o nome do Senhor” no centro da oração de adoração. Todo o
ser e todo o tempo -“do nascer do sol até o seu ocaso”, diz o salmista (v. 3) -,
está envolvido em uma única ação de graças. É como se um respiro incessante
subisse da terra para o céu para exaltar o Senhor, Criador do cosmos e Rei da história.
3. Precisamente através
deste movimento para o alto, o Salmo conduz-nos ao mistério divino. A segunda
parte (vv. 4-6) celebra, de fato, a transcendência do Senhor, descrita com
imagens verticais que superam o simples horizonte humano. Proclama-se: o Senhor
“está acima das nações”, “no alto céu tem o seu trono” e ninguém pode
comparar-se a Ele; até para olhar para o céu Ele deve “inclinar-se”, porque “sua
glória vai além dos altos céus” (vv. 4-5).
4. O olhar divino dirige-se
sobre toda a realidade, sobre os seres terrenos e sobre os celestes. Contudo,
os seus olhos não são altivos nem afastados, como os de um imperador insensível.
O Senhor, diz o salmista, “se inclina para olhar” (v. 6).
Passa-se desta forma ao
último movimento do Salmo (vv. 7-9), que desloca a atenção das alturas celestes
ao nosso horizonte terreno. O Senhor abaixa-se com solicitude em relação à
nossa pequenez e indigência, que nos estimulariam a retirar-nos receosos. Ele
dirige diretamente o seu olhar amoroso e o seu compromisso eficaz para os últimos
e os miseráveis do mundo: “Ele levanta da poeira o indigente e do lixo Ele
retira o pobre” (v. 7).
Por conseguinte, Deus
inclina-se sobre os necessitados e sobre os que sofrem para confortá-los. E
esta palavra encontra a sua última densidade, o seu último realismo, no momento
em que Deus se inclina até o ponto de se encarnar, de se tornar um de nós, e
precisamente um dos pobres do mundo. Ao pobre Ele confere a maior honra, a de “fazê-lo
assentar-se com os nobres”; sim, “com os nobres do seu povo” (v. 8). À mulher
sozinha e estéril, humilhada pela antiga sociedade como se fosse um ramo seco e
inútil, Deus dá a honra e a grande alegria de ter muitos filhos (v. 9). Por
isso o salmista louva um Deus muito diferente de nós na sua grandeza, mas ao
mesmo tempo muito próximo das suas criaturas que sofrem.
É fácil intuir nestes
versículos finais do Salmo 112 a prefiguração das palavras de Maria no Magnificat, o cântico das opções de Deus,
que “olha para a pequenez de sua serva”. Mais radical que o nosso Salmo, Maria
proclama que Deus “derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes” (cf. Lc 1,48.52; Sl 112,6-8).
5. Um “hino vespertino”
muito antigo, conservado nas chamadas Constituições
dos Apóstolos (VII, 48), retoma e desenvolve o início jubiloso do nosso Salmo.
Gostaria de recordá-lo aqui, no final da minha reflexão, para realçar a
releitura “cristã” que a comunidade dos primeiros tempos fazia dos Salmos:
“Louvai, crianças, ao
Senhor, louvai o nome do Senhor.
A ti louvamos, a ti
cantamos, a ti bendizemos pela tua glória imensa.
Senhor rei, Pai de Cristo,
Cordeiro imaculado que tira o pecado do mundo.
A ti convém o louvor, a ti o
hino, a ti a glória, a Deus Pai por meio do Filho no Espírito Santo por toda a
eternidade. Amém” (S. Pricoco; M. Simonetti, A oração dos cristãos, Milão,
2000, p. 97).
135. Ação de graças no templo: Sl
115(116B),10-19
25 de maio de 2005
1. O Salmo 115,
com o qual agora rezamos, foi sempre usado pela tradição cristã, a partir de
São Paulo que, citando o seu início na tradução grega dos Setenta, escreve do seguinte modo aos cristãos de Corinto: “Animados
do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso
falamos” (2Cor 4,13).
O Apóstolo
sente-se em sintonia espiritual com o salmista, na confiança serena e no
testemunho sincero, apesar dos sofrimentos e debilidades humanas. Escrevendo
aos Romanos, Paulo retomará o v. 2 do Salmo e realçará um contraste entre o Deus
fiel e o homem incoerente: “Fique claro que Deus é verdadeiro, mesmo que todo o homem seja mentiroso” (Rm 3,4).
A tradição
cristã leu, rezou e interpretou o texto em diversos contextos e surge assim
toda a riqueza e profundidade da Palavra de Deus, que abre novas dimensões e
situações.
A tradição sucessiva
transformará este canto em uma celebração do martírio (cf. Orígenes, Exortação ao martírio, 18: Testi di Spiritualità, Milano, 1985, pp.
127-129) , por causa da afirmação da “morte dos santos” (v. 15). Depois o transformará em um texto
eucarístico, em consideração à referência ao “cálice da salvação” que o
salmista eleva, invocando o nome do Senhor (v. 13). Este cálice é identificado
pela tradição cristã com o “cálice da bênção” (1Cor 10,16), com o “cálice da
nova aliança” (1Cor 11,25; Lc 22,20): são expressões que no Novo Testamento
referem-se precisamente à Eucaristia.
2. O Salmo 115,
no original hebraico, constitui uma única composição com o Salmo precedente, o
114. Ambos são um agradecimento unitário, dirigido ao Senhor que liberta do
pesadelo da morte.
No nosso texto
sobressai a memória de um passado angustiante: o orante manteve alta a chama da
fé, também quando nos seus lábios surgia a amargura do desespero e da infelicidade
(v. 10). De fato, em volta dele eleva-se uma espécie de barreira gélida de ódio
e de engano, porque o próximo se manifestava falso e infiel (v. 11). A súplica,
porém, logo se transforma em gratidão, porque o Senhor permaneceu fiel neste
contexto de infelicidade, elevou o seu fiel do vórtice obscuro da mentira (v.
12). E assim, este Salmo é sempre para nós um texto de esperança, porque o
Senhor não nos abandona, mesmo nas situações difíceis, e por isso devemos
manter alta a chama da fé.
Por isso, o
orante dispõe-se a oferecer um sacrifício de ação de graças, no qual se beberá
o cálice ritual, o cálice da oferenda sagrada, que é sinal de reconhecimento
pela libertação (v. 13) e encontra o seu último cumprimento no cálice do
Senhor. É, por conseguinte, a Liturgia a sede privilegiada na qual elevar o louvor
agradecido a Deus salvador.
3. De fato, é
feita explícita menção, além do rito sacrifical, também à assembleia do “povo
reunido”, diante da qual o orante cumpre a promessa e testemunha a própria fé
(v. 14). Será nesta circunstância que ele tornará público o seu agradecimento,
sabendo que, mesmo quando a morte se aproxima, o Senhor se inclina sobre ele
com amor. Deus não permanece indiferente ao drama da sua criatura, mas rompe as
suas cadeias (v. 16).
O orante, salvo
da morte, sente-se “servo” do Senhor, “filho da sua serva” (ibid.), uma bonita expressão oriental
para indicar que nasceu na mesma casa do Senhor. O salmista professa
humildemente e com alegria a sua pertença à casa de Deus, à família das
criaturas unidas a Ele no amor e na fidelidade.
4. O Salmo,
sempre através das palavras do orante, termina evocando de novo o rito de
agradecimento que será celebrado na esfera do templo (vv. 17-19). A sua oração se
coloca desta forma em um âmbito comunitário. A sua vicissitude pessoal é
narrada para que seja um estímulo para todos a crer e a amar o Senhor. Por
isso, no fundo podemos entrever todo o povo de Deus enquanto agradece ao Senhor
da vida, o qual não abandona o justo no seio obscuro do sofrimento e da morte,
mas o guia à esperança e à vida.
5. Concluamos a
nossa reflexão confiando-nos às palavras de São Basílio Magno que, na Homilia sobre o Salmo 115, comenta do
seguinte modo a pergunta e a resposta presentes no Salmo:
“‘Que poderei
retribuir ao Senhor Deus por tudo aquilo que ele fez em meu favor? Elevo o
cálice da minha salvação, invocando o nome santo do Senhor’. O salmista
compreendeu os numerosos dons recebidos de Deus: do não ser foi levado ao ser,
foi depois plasmado da terra e dotado de razão... distinguiu a economia da
salvação a favor do gênero humano, reconhecendo que o Senhor se entregou a si
mesmo em redenção no lugar de todos nós; e permanece incerto, procurando entre
todas as coisas que lhe pertencem, qual o dom que possa ser digno do Senhor.
Que darei ao Senhor? Sacrifícios, não, nem holocaustos... mas toda a minha
vida. Por isso diz: ‘Elevo o cálice da salvação’, chamando cálice ao sofrimento
no combate espiritual, resistir ao pecado até a morte. De resto, o que o nosso
Salvador ensinou no Evangelho: ‘Pai, se é possível, afasta de mim este cálice’;
e de novo aos discípulos: ‘Podeis beber o cálice que Eu vou beber?’,
referindo-se claramente à morte que aceitava pela salvação do mundo” (PG XXX, 109), transformando assim o
mundo do pecado em um mundo redimido, um mundo de agradecimento pela vida que o
Senhor nos concedeu.
136. Cristo, o Servo de Deus: Fl 2,6-11
01 de junho de 2005
1. Em cada
celebração dominical das Vésperas, a Liturgia nos repropõe o breve mas denso
hino cristológico da Carta aos Filipenses.
Trata-se do hino que agora ressoou, o qual consideramos na sua primeira parte
(vv. 6-8), onde se delineia o paradoxal “despojamento” do Verbo divino, que
depõe a sua glória e assume a condição humana.
Cristo encarnado
e humilhado na morte mais infame, a da crucificação, é colocado como modelo
vital para o cristão. De fato, ele - como se afirma no contexto - deve ter “os
mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus” (v. 5), sentimentos de humildade
e de doação, de desapego e de generosidade.
2. Ele,
certamente, possui a natureza divina com todas as suas prerrogativas. Mas esta
realidade transcendente não é interpretada nem vivida com o objetivo do poder,
da grandeza, do domínio.
Cristo não usa o
seu ser igual a Deus, a sua dignidade gloriosa e o seu poder como instrumento
de triunfo, sinal de distância, expressão de esmagadora supremacia (v. 6).
Aliás, Ele “despojou-se”, “esvaziou-se” a si mesmo, imergindo sem reservas na
miserável e frágil condição humana. A “forma” (morphé) divina esconde-se em Cristo sob a “forma” (morphé) humana, isto é, sob a nossa realidade
marcada pelo sofrimento, pela pobreza, pelo limite e pela morte (v. 7).
Não se trata,
portanto, de um simples revestimento, de uma aparência mutável, como se pensava
que acontecia às divindades da cultura greco-romana: a de Cristo é a realidade divina
em uma experiência autenticamente humana. Deus não se apresenta apenas como
homem, mas faz-se verdadeiramente homem, se torna concretamente “Deus-conosco”,
que não se contenta em olhar para nós do trono da sua glória com um olhar
benigno, mas imerge pessoalmente na história humana, tornando-se “carne”, ou
seja, realidade frágil, condicionada pelo tempo e pelo espaço (cf. Jo 1,14).
3. Esta partilha
radical da condição humana, excluindo o pecado (cf. Hb 4,15), conduz Jesus até aquela fronteira que é o sinal da
nossa finitude e caducidade: a morte. Mas ela não é fruto de um mecanismo
obscuro ou de uma fatalidade cega: ela nasce da sua livre opção de obediência
ao desígnio de salvação do Pai (v. 8).
O Apóstolo
acrescenta que a morte que Jesus enfrenta é a morte de cruz, a mais degradante,
querendo desta forma ser verdadeiramente irmão de cada homem e de cada mulher,
também dos que são obrigados a um fim atroz e ignominioso.
Mas,
precisamente na sua Paixão e Morte, Cristo testemunha a sua adesão livre e
consciente aos desígnios do Pai, como se lê na Carta aos Hebreus: “Apesar de ser Filho de Deus, aprendeu a obediência
por aquilo que sofreu” (Hb 5,8).
Detenhamo-nos
aqui na nossa reflexão sobre a primeira parte do hino cristológico, concentrado
sobre a Encarnação e sobre a Paixão redentora. Teremos ocasião a seguir de
aprofundar o itinerário sucessivo, o pascal, que conduz da cruz à glória.
Parece-me que o elemento fundamental desta primeira parte do hino é o convite a
entrar nos sentimentos de Jesus. Entrar nos sentimentos de Jesus significa não
considerar o poder, a riqueza, o prestígio como os valores supremos da nossa
vida, porque não correspondem à sede mais profunda do nosso espírito, mas abrir
o nosso coração ao outro, carregar com o outro o peso da nossa vida e abrir-nos
ao Pai dos céus com sentido de obediência e confiança, sabendo que só na
obediência ao Pai seremos livres. Ter os mesmos sentimentos de Jesus: este
seria o exercício quotidiano para viver como cristãos.
4. Concluamos a
nossa reflexão com uma grande testemunha da tradição oriental, Teodoreto, que
foi Bispo de Ciro, na Síria, no século V: “A Encarnação do nosso Salvador
representa o mais alto cumprimento da solicitude divina pelos homens. De fato,
nem o céu nem a terra, nem o mar nem o ar, nem o sol nem a lua, nem os astros
nem todo o universo visível e invisível, criado unicamente pela palavra, ou
melhor, trazido à luz pela sua palavra de acordo com a sua vontade, indicam a
sua bondade infinita como o fato de que o Filho Unigênito de Deus, Aquele que
subsistia na natureza de Deus (Fl 2,6),
reflexo da sua glória, marca da sua substância (Hb 1,3), que era no princípio, era junto de Deus e era Deus,
através do qual todas as coisas foram criadas (Jo 1,1-3), depois de ter assumido a condição de servo, apareceu em
forma de homem, e devido à sua figura humana, foi considerado como homem, foi
visto na terra, relacionou-se com os homens, carregou as nossas enfermidades e
assumiu sobre si as nossas doenças” (Discursos
sobre a Providência Divina, 10: Coleção
de textos patrísticos, LXXV, Roma, 1988, pp. 250-251).
Teodoreto de
Ciro continua a sua reflexão realçando precisamente o vínculo estreito
evidenciado pelo hino da Carta aos
Filipenses entre a Encarnação de Jesus e a redenção dos homens. “O Criador
trabalhou com sabedoria e justiça pela nossa salvação. Pois não quis servir-se
apenas do seu poder para nos conceder o dom da liberdade, nem armar apenas a
misericórdia contra quem subjugou o gênero humano, para que ele não acusasse a
misericórdia de injustiça, mas encontrou um caminho cheio de amor pelos homens
e ao mesmo tempo adornado de justiça. De fato, Ele, depois de ter unido em si a
natureza do homem já vencida, orienta-a para a luta e a predispõe para reparar
a derrota, para dispersar aquele que outrora tinha iniquamente conquistado a
vitória, para se libertar da tirania de quem a tinha cruelmente feita escrava e
para recuperar a liberdade primitiva” (ibid.,
pp. 251-252).
"Obediente até à morte, e morte de cruz" (Fl 2,8) (Crucificação - Matthias Grünewald) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário