sábado, 12 de dezembro de 2015

Raniero Cantalamessa: O chamado à santidade

Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
II Pregação de Advento
11 de dezembro de 2015
O chamado universal dos cristãos à santidade

Há poucos dias comemoramos o quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e entramos no Ano Jubilar da Misericórdia, pelo qual, Santo Padre, somos-lhe muito gratos. Devemos dizer que não é nem um pouco arbitrária a ligação existente entre o tema da misericórdia e o Concílio Vaticano II. No discurso de abertura, no dia 11 de outubro de 1962, São João XXIII indicou na misericórdia a novidade e o estilo do Concílio:
“Sempre - dizia ele - a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes, também, condenou-os com a máxima severidade. Agora, porém, a Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia, mais do que o da severidade” [1].
Em certo sentido, à distância de meio século, o Ano da Misericórdia celebra a fidelidade da Igreja àquela sua promessa. Às vezes, surge a pergunta de se insistir muito na misericórdia não é correr o risco de se esquecer do outro atributo de Deus que é a justiça. Mas, a justiça de Deus, não só não contradiz a sua misericórdia, mas consiste justamente nessa! Deus se faz justiça, fazendo misericórdia. Deus é amor; por isso faz justiça a si mesmo - ou seja, se demonstra verdadeiramente por aquilo que é - quando faz misericórdia. Bem antes de Lutero, Santo Agostinho tinha escrito: “‘A justiça de Deus’ é aquela, pela qual, por sua graça, Deus nos torna justos, exatamente como ‘a salvação do Senhor’ (salus Domini) (Sl 3,9) é aquela, pela qual, Deus nos salva” [2].
Isso não esgota todos os sentidos da expressão “justiça de Deus”, mas é certamente o significado principal dela. Um dia existirá, também, uma justiça de Deus retributiva, que dará a cada um de acordo com os próprios méritos (cf. Rm 2,5-10); mas, não é dessa que o Apóstolo fala quando diz: “Agora se manifestou a justiça de Deus” (Rm 3,21). Aquela é um evento futuro, esta um evento presente. Em outro lugar o próprio apóstolo explica assim: “Quando se manifestou a bondade de Deus e o seu amor pelos homens, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça realizadas, mas pela sua misericórdia” (Tt 3,4-5).

1. “Sejam santos porque eu, vosso Deus, sou santo”
O tema desta meditação é o capítulo V da Lumen Gentium, intitulado “A vocação universal à santidade na Igreja”. Nas histórias do Concílio este capítulo só é lembrado por uma questão, digamos, de redação. Os vários Padres Conciliares, membros de ordens religiosas, pediram com insistência que fosse dedicado um tratado à parte sobre a presença dos religiosos na Igreja, como tinha sido feito para os leigos. Foi assim que aquilo que tinha sido lembrado até então como um capítulo unicamente relacionado à santidade de todos os membros da Igreja, foi dividido em dois capítulos, dos quais o segundo - o VI da Lumen Gentium -, foi dedicado especificamente aos religiosos [3].
O chamado à santidade foi formulado desde o início com estas palavras: “Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação» (1Ts 4,3; cf. Ef 1,4)(Lumen Gentium, n. 39).
Este chamado à santidade é o ponto mais necessário e urgente do Concílio. Sem isso, todos os outros requisitos são impossíveis ou inúteis. De fato, normalmente, isso é deixado de lado porque só Deus e a consciência que a exigem e pedem, e não as pressões ou interesses de grupos humanos particulares da Igreja. Às vezes, parece que em certos ambientes e em certas famílias religiosas, depois do Concílio, focaram mais no compromisso de “fazer os santos” do que no de “fazerem-se santos”, ou seja, mais esforço para levar aos altares os próprios fundadores ou correligionários do que em imitar os seus exemplos e as suas virtudes.
A primeira coisa que deve ser feita, quando se fala de santidade, é libertar esta palavra da submissão e do medo que dá, por causa de certas deturpações que fizeram dela. A santidade pode acarretar fenômenos e provas extraordinárias, mas não se identifica com essas coisas. Se todos são chamados à santidade, é porque, devidamente compreendida, ela está ao alcance de todos, faz parte da normalidade da vida cristã. Os santos são como as flores: não existem só aqueles que são colocados no altar. Quantos deles desabrocham e morrem escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu perfume no ambiente! Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem continuamente na Igreja
A motivação de fundo da santidade é clara desde o início e é que Deus é santo: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). A santidade é a síntese, na Bíblia, de todos os atributos de Deus. Isaías chama Deus de “o Santo de Israel”, aquele que Israel conheceu como o Santo. “Santo, santo, santo”, Qadosh, qadosh, qadosh, é o grito que acompanha a manifestação de Deus no momento do seu chamado (Is 6,3). Maria reflete fielmente essa ideia de Deus dos Profetas e dos Salmos, quando exclama no Magnificat: “Santo é o seu nome” (Lc 1,49).
Quanto ao conteúdo da ideia de santidade, o termo bíblico qadosh sugere a ideia de separação, de diversidade. Deus é santo porque é o totalmente outro com relação a tudo o que o homem pode pensar, dizer ou fazer. É absoluto, no sentido etimológico de ab-solutus, solto de tudo e à parte. É o transcendente, no sentido de que está por acima de todas as nossas categorias. Tudo isso no sentido moral, antes mesmo que metafísico; diz respeito ao atuar de Deus e não só ao seu ser. Na Escritura definem-se como “santos” principalmente os juízos de Deus, as suas obras e os seus caminhos (cf. Dt 32,4; Dn 3, 27; Ap 16,7).
Contudo, “santo” não é um conceito principalmente negativo, que indica separação, ausência de mal e de mistura em Deus; é um conceito sumamente positivo. Indica uma “pura plenitude”. Em nós, a “plenitude” nunca se mistura totalmente com a “pureza”. Sempre conquistamos a nossa pureza, purificando-nos e tirando o mal das nossas ações (Is 1,16). Em Deus não; pureza e plenitude coexistem e constituem juntas a suma simplicidade de Deus. A Bíblia expressa perfeitamente esta ideia de santidade quando fala que a Deus “nada pode ser acrescentado e nada tirado” (Eclo 42,21). Em quanto suma pureza, nada lhe deve ser tirado; em quanto suma plenitude, nada lhe pode ser acrescentado.
Quando se procura entender como o homem entra na esfera da santidade de Deus e o que significa ser santo, logo prevalece, no Antigo Testamento, a ideia ritualística. Os trâmites da santidade de Deus são objetos, lugares, ritos, prescrições. Seções inteiras do Êxodo e do Levítico se intitulam “códigos de santidade” ou “lei de santidade”. A santidade está contida em um código de leis. É tal esta santidade que é profanada se alguém se aproxima do altar com uma deformidade física ou depois de ter tocado num animal imundo: “santificai-vos e sede santos... não se contaminem com qualquer um destes animais” (Lv 11,44; 21,23).
É possível ler diferentes vozes nos Profetas e nos Salmos. À pergunta; “Quem subirá o monte do Senhor, quem entrará em sua santa habitação?” ou: “Quem dentre nós pode habitar com um fogo abrasador?”, responde-se com indicações requintadamente morais: “Quem tem mãos puras e inocente coração” e “Quem caminha na justiça e fala com lealdade” (cf. Sl 24,3; Is 33,14s). São vozes sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda no tempo de Jesus, nos fariseus e em Qumram prevalece a ideia de que a santidade e a justiça consistem na pureza ritual e na observância de certos preceitos, especialmente o do sábado, embora se, na teoria, ninguém esquece que o primeiro e maior mandamento é o do amor a Deus e ao próximo.

2. A novidade de Cristo
Passando agora para o Novo Testamento, vemos que a definição de “nação santa” estende-se bem cedo aos cristãos. Para Paulo, os batizados são “santos por vocação”, ou “chamados a ser santos” (cf. Rm 1,7; 1Cor 1,2). Ele designa habitualmente os batizados com o termo “os santos”. Os fiéis são “escolhidos para ser santos e imaculados diante d’Ele no amor” (Ef 1,4). Mas sob a aparente identidade de terminologia vemos mudanças profundas. Santidade não é mais um fato ritual ou legal, mas moral, até mesmo ontológico. Não reside nas mãos, mas no coração; não se decide fora, mas dentro do homem e resume-se na caridade. “Não é o que entra pela boca que contamina o homem; o que sai da boca, isso contamina o homem “(Mt 15,11).
Os mediadores da santidade de Deus não são mais lugares (o templo de Jerusalém ou o monte Garizim), ritos, objetos e leis, mas é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser santo não consiste tanto em um estar separado disto ou daquilo, mas em um estar unido a Jesus Cristo. Em Jesus Cristo está a própria santidade de Deus que nos alcança pessoalmente, não em uma luz distante dele. “Tu és o Santo de Deus!”: duas vezes ressoa esta exclamação dirigida a Jesus nos Evangelhos (Jo 6,69; Lc 4,34). O Livro do Apocalipse chama Cristo simplesmente “o Santo” (Ap 3,7) e a Liturgia ecoa exclamando no Glória “Tu solus Sanctus”, “só Vós sois o Santo”.
Há duas maneiras de entrar em contato com a santidade de Cristo e esta é comunicada a nós: por apropriação e por imitação. Dessas, a mais importante é a primeira que se realiza na fé e por meio dos sacramentos. A santidade é, antes de tudo, graça e é obra de toda a Trindade. Porque, de acordo com o Apóstolo, nós pertencemos a Cristo mais do que a nós mesmos (cf. 1Cor 6,19-20), segue-se que, inversamente, a santidade de Cristo nos pertence mais do que a nossa própria santidade. “O que é de Cristo - escreve o teólogo bizantino Nicolau Cabasilas - é mais nosso do que aquilo que é nosso” [4]. Essa é a ideia genial, ou ato corajoso, que temos que realizar na vida espiritual. A sua descoberta não se faz, geralmente, no começo, mas no final do próprio itinerário espiritual; não no noviciado, mas mais tarde, quando já se experimentou todas as outras estradas e vemos que não levam muito longe.
Paulo nos ensina como fazer este “ato corajoso”, quando declara solenemente não querer ser encontrado com a sua própria justiça, ou santidade, resultante do cumprimento da lei, mas apenas com aquela que deriva da fé em Cristo (cf. Fl 3,5-10). Cristo, diz, se tornou para nós “justiça, santificação e redenção” (1Cor 1,30). “Para nós”: portanto, podemos exigir a sua santidade como nossa em todos os efeitos. Um ato corajoso é também o que faz São Bernardo, quando grita: “Eu, quando me falta, o aproprio (literalmente, o usurpo) do lado de Cristo” [5]. “Usurpar” a santidade de Cristo, “arrebatar” o reino dos céus! Isso é ato corajoso que deve ser repetido muitas vezes na vida, especialmente, no momento da Comunhão eucarística.
Dizer que nós participamos da santidade de Cristo é como dizer que participamos do Espírito Santo que vem d’Ele. Ser ou viver “em Cristo Jesus” equivale, para São Paulo, ser ou viver “no Espírito Santo”. “A partir disso - escreve, por sua vez, São João - se reconhece que nós permanecemos n’Ele e Ele em nós: Ele nos fez o dom do seu Espírito” (1Jo 4,13). Cristo permanece em nós e nós permanecemos em Cristo, graças ao Espírito Santo.
É o Espírito Santo, portanto, que nos santifica. Não o Espírito Santo no geral, mas o Espírito Santo que foi em Jesus de Nazaré, que santificou a sua humanidade, que se recolheu n’Ele como em um vaso de alabastro e que, da sua cruz e em Pentecostes, Ele derramou sobre a Igreja. Por isso, a santidade que está em nós não é uma segunda e diferente santidade, mas é a mesma santidade de Cristo. Nós somos verdadeiramente “santificados em Cristo Jesus” (lCor 1,2). Como no Batismo, o corpo do homem está imerso e lavado na água, assim a sua alma é, por assim dizer, batizada na santidade de Cristo: “Fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus”, diz o Apóstolo referindo-se ao Batismo (1Cor 6,11).
Ao lado deste meio fundamental da fé e dos sacramentos, deve estar também a imitação, as obras, o esforço pessoal. Não como meio independente e diferente, mas como o único meio adequado de manifestar a fé, traduzindo-a em ato. A oposição fé - obras é um falso problema que se manteve por causa da controvérsia histórica. As boas obras, sem a fé, não são obras “boas” e a fé sem as obras boas não é verdadeira fé. Basta que por “obras boas” não se entendam principalmente (como infelizmente era no tempo de Lutero) indulgências, peregrinações e práticas piedosas, mas a observância dos mandamentos, especialmente o do amor fraterno. Jesus disse que no juízo final alguns serão excluídos do Reino por não terem vestido o nu e alimentado o faminto. Não há salvação, portanto, pelas obras boas, mas não há salvação sem as obras boas. Podemos resumir assim a doutrina do Concílio de Trento.
Acontece igual à vida física. A criança não pode fazer absolutamente nada para ser concebida no seio da mãe; precisa do amor dos pais (pelos menos foi assim até hoje!). Uma vez que nasceu, deve fazer trabalhar os seus pulmões para respirar, sugar o leite; em suma, deve trabalhar, senão a vida que recebeu morre. A frase de São Tiago: “A fé, sem as obras é morta” (Tg 3,26) deve ser entendida neste sentido, isto é, no presente: a fé sem as obras morre.
No Novo Testamento, dois verbos são usados para referir-se à santidade, um no indicativo e um no imperativo: “Sois Santos” e “Sede santos”. Os cristãos são santificados e santificantes (cf. 1Cor 1,2; 1Pd 1,2; 2,15). Quando Paulo escreve: “Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação”, é claro que se refere justamente a esta santidade que é fruto de compromisso pessoal. Acrescenta, de fato, como para explicar em que consiste a santificação da qual está falando: “Que vos abstenhais da imodéstia, que cada um saiba manter o próprio corpo com santidade e respeito” (cf. 1 Ts 4,3-9).
O nosso texto da Lumen Gentium enfatiza claramente estes dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo, da santidade, baseados respectivamente na fé e nas obras. Diz: “Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados em Jesus Cristo, não segundo as suas obras, mas segundo o Seu desígnio e a Sua graça, no Batismo da fé foram feitos realmente filhos de Deus e coparticipantes da natureza divina, e, por isso, realmente santos. Esses devem, portanto, com a ajuda de Deus, manter e aperfeiçoar, vivendo-a, a santidade que receberam” (Lumen Gentium, n. 40).
Porque, de acordo com Lutero, a Idade Média tinha se desviado sempre mais para acentuar o lado de Cristo como modelo, e ele acentuou o outro, afirmando que ele é dom e que este dom corresponde à fé aceitar [6]. Hoje estamos todos de acordo que não se deve contrapor as duas coisas, mas mantê-las unidas. Cristo é, antes de tudo, dom a ser recebido por meio da fé, mas é também modelo a ser imitado na vida. Ele próprio fala isso no Evangelho: “Eu vos dei o exemplo, para que façais como eu vos fiz (Jo 13,15); “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).

3. Santos ou fracassados
Este é o ideal novo de santidade do Novo Testamento. Um ponto permanece inalterado, e é possível aprofundá-lo na passagem do Antigo ao Novo Testamento e é a motivação de fundo do chamado à santidade, o “por que” é necessário ser santos: porque Deus é santo. “À imagem do santo que vos chamou, sede também vós santos”. Os discípulos de Cristo devem amar os inimigos, “para ser filhos do Pai celeste que faz chover sobre justos e sobre injustos” (Mt 5,45). A santidade não é, portanto, uma imposição, um fardo que nos é colocado sobre os ombros, mas um privilégio, um dom, uma honra suprema. Uma obrigação, sim, mas que deriva da nossa dignidade de filhos de Deus. Aplica-se a ela, no sentido pleno, o ditado francês “noblesse oblige”.
A santidade é exigida pelo próprio ser da criatura humana; não diz respeito aos acidentes, mas à sua própria essência. Ele deve ser santo para realizar a sua identidade profunda que é de ser “à imagem e semelhança de Deus”. Para a Escritura, o homem não é principalmente, como para a filosofia grega, o que é determinado a ser pelo seu nascimento (physis), ou seja, um “animal racional”, mas o que é chamado a se tornar, com o exercício da sua liberdade, na obediência a Deus. Não é tanto natureza, mas vocação.
Se, portanto, somos “chamados a ser santos”, se somos “santos por vocação”, então fica claro que seremos pessoas verdadeiras, realizadas, na medida em que formos pessoas santas. Caso contrário, seremos pessoas fracassadas. O contrário de santo não é pecador, mas fracassado! Pode-se fracassar na vida de muitas formas, mas são fracassos relativos que não comprometem o essencial; aqui se fracassa radicalmente naquilo que se é, não só naquilo que se faz. Tinha razão Madre Teresa quando perguntada à queima roupa por uma jornalista o que ela sentia quando era aclamada santa por todo o mundo, respondeu: “A santidade não é um luxo, é uma necessidade”.
O filósofo Pascal formulou o princípio das três ordens ou níveis de grandeza: a ordem dos corpos ou da matéria, a ordem da inteligência e a ordem da santidade. Uma distância quase infinita separa a ordem da inteligência da dos corpos, mas uma distância “infinitamente mais infinita” separa a ordem da santidade da ordem da inteligência. Os genes não precisam das grandezas materiais; não podem tirar ou acrescentar nada a eles. Da mesma forma, os santos não precisam das grandezas intelectuais; a sua grandeza é de outra ordem. “Eles são vistos por Deus e pelos anjos, não pelos corpos e pelas mentes curiosas; basta-lhes Deus” [7].
Este princípio permite avaliar da forma certa as coisas e as pessoas que nos rodeiam. A maioria das pessoas permanece parada no primeiro nível e nem sequer suspeita da existência de um plano superior. São aqueles que passam a vida preocupados só em acumular riquezas, cultivar a beleza física ou aumentar o próprio poder. Outros acreditam que o valor supremo e o vértice da grandeza seja o da inteligência. Procuram se tornar célebres no campo das letras, da arte, do pensamento. Só poucos sabem que existe um terceiro nível de grandeza, a santidade.
Esta grandeza é superior porque eterna, porque é tal aos olhos de Deus que é a verdadeira medida da grandeza e também porque realiza o que há de mais nobre no ser humano, ou seja, a sua liberdade. Não depende de nós nascermos fortes ou fracos, bonitos ou menos bonitos, ricos ou pobres, inteligentes ou pouco inteligentes; depende de nós, sim, sermos honestos ou desonestos, bons ou maus, santos ou pecadores. Tinha razão o musico Gounod, ele próprio um gênio, quando dizia que “um gota de santidade vale mais do que oceano de gênio.
A boa notícia sobre a santidade é que não se é obrigado a escolher um destes três tipos de grandeza. Pode-se ser santos em cada um deles. Houve e há santos entre os ricos e entre os pobres, entre os fortes e entre os fracos, entre os gênios e as pessoas sem cultura. Ninguém está excluído desta magnitude do terceiro nível.

4. Voltar ao caminho da santidade
O nosso tender à santidade é semelhante ao caminho do povo eleito no deserto. Esse também é um caminho feito de contínuas paradas e partidas. De tanto em tanto o povo parava e acampava; ou porque estava cansado, ou porque tinha encontrado água e comida, ou simplesmente porque cansa caminhar sempre. Mas eis que chega de improviso a ordem do Senhor a Moisés de levantar as tendas e recomeçar a caminhada: “Levante, saia daqui, tu e o teu povo, rumo à terra que prometi” (Ex 15,22; 17,1).
Na vida da Igreja, essas chamadas para voltar a caminhar são ouvidas, especialmente, no início dos tempos fortes do Ano Litúrgico ou em ocasiões particulares, como é o Jubileu da Misericórdia aberto recentemente pelo Papa. Para cada um de nós, tomados individualmente, o tempo de levantar as tendas e recomeçarmos a caminhada rumo a santidade é quando nos damos conta, no íntimo, da misteriosa chamada que vem da graça. No começo, há como que um momento de parada. A pessoa para no turbilhão de suas ocupações, toma, como se costuma dizer, as distâncias de tudo para olhar a sua vida quase que de fora ou do alto, sub specie aeternitatis. Surgem, então, as grandes perguntas: “Quem sou? O que quero? O que estou fazendo da minha vida?”.
Embora fosse um monge, São Bernardo teve uma vida muito movimentada: Concílios que presidiu, Bispos e abades que reconciliou, cruzadas que pregou. De vez em quando, diz o seu biógrafo, ele parava e, quase entrando em diálogo consigo mesmo, se perguntava: “Bernardo, a que viestes?” - “Bernarde, ad quid venisti?” [8]. Por que deixastes o mundo e entrastes no mosteiro? Nós podemos imitá-lo; pronunciar o nosso nome (também isso serve) e perguntar-nos: Por que és cristão? Por que és sacerdote ou religioso? Estás realizando aquilo pelo qual estás no mundo?
No Novo Testamento se descreve um tipo de conversão que poderíamos definir como a conversão-despertar, ou a conversão da mediocridade. No Apocalipse se leem sete cartas escritas aos anjos (segundo alguns exegetas, aos Bispos) de várias igrejas da Ásia Menor. Na carta ao anjo de Éfeso, ele começa reconhecendo o que o destinatário fez de bom: “Conheço as tuas obras, o teu cansaço e a tua constância... És constante e tens sofrido muito pelo meu nome, sem cansar-te”. Depois passa a listar o que, pelo contrário, não lhe agrada: “Abandonastes o teu primeiro amor!”. E eis que, neste ponto, ressoa, como uma trombeta entre adormecidos, o grito do Ressuscitado: Metanòeson, ou seja, “Converte-te!”, Levanta-te! Sacode-te! (Ap 2,1ss).
Essa é a primeira das sete cartas. Muito mais severa é a última dessas, aquela dirigida ao anjo da igreja de Laodiceia: “Conheço as tuas obras: tu não eres nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente!”. Converte-te e volte a ser zeloso e fervoroso: Zeleue oun kai metanòeson! (Ap 3,15ss). Também esta, como todas as outras, termina com aquele misterioso aviso: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 3,22).
Santo Agostinho nos dá uma dica: começar a despertar em nós o desejo de santidade: “Toda a vida do bom cristão - escreve - consiste em um santo desejo [ou seja, em um desejo de santidade]: Tota vita christiani boni, sanctum desiderium est” [9]. Jesus disse: “Bem aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6). A justiça bíblica, se sabe, é a santidade. Deixamos, por isso, uma pergunta para meditar: “Eu tenho fome e sede de santidade, ou estou me contentando com a mediocridade?”.


Notas: 
[1] Concilio Vaticano II.  Documenti. Edizioni Dehoniane, Bologna, 1967, p. 47.
[2] S. Agostinho, Lo Spirito e la lettera, 32, 56 (PL 44, 237).
[3] cfStoria del concilio Vaticano II, organizado por G. Alberigo, vol. IV, Bologna, 1999, pp. 68ss.
[4] N. Cabasilas, Vita in Cristo IV, 6 (PG 150, 613).
[5] S. Bernardo, Omelie sul Cantico, 61, 4-5 (PL 183, 1072).
[6] cf. Søeren Kierkegaard, Diario X 1, A 154 (ed. organizada por C. Fabro, Brescia, 1962, vol. I, p. 821).
[7] B. Pascal, Pensieri, 593.
[8] Guilherme de St. Thierry, Vita prima, I, 4 (PL 185, 238).
[9] S. Agostinho, In Epist. Joh. 4, 6  (PL 35, 2008).

Fonte: Zenit

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