Padre
Raniero Cantalamessa, OFMCap
II
Pregação de Advento
11 de dezembro de 2015
O chamado universal dos cristãos à
santidade
Há
poucos dias comemoramos o quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio
Vaticano II e entramos no Ano Jubilar da Misericórdia, pelo qual, Santo Padre,
somos-lhe muito gratos. Devemos dizer que não é nem um pouco arbitrária a
ligação existente entre o tema da misericórdia e o Concílio Vaticano II. No
discurso de abertura, no dia 11 de outubro de 1962, São João XXIII indicou na
misericórdia a novidade e o estilo do Concílio:
“Sempre
- dizia ele - a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes, também, condenou-os com
a máxima severidade. Agora, porém, a Esposa de Cristo prefere usar o remédio da
misericórdia, mais do que o da severidade” [1].
Em
certo sentido, à distância de meio século, o Ano da Misericórdia celebra a
fidelidade da Igreja àquela sua promessa. Às vezes, surge a pergunta de se
insistir muito na misericórdia não é correr o risco de se esquecer do outro
atributo de Deus que é a justiça. Mas, a justiça de Deus, não só não contradiz
a sua misericórdia, mas consiste justamente nessa! Deus se faz justiça, fazendo
misericórdia. Deus é amor; por isso faz justiça a si mesmo - ou seja, se
demonstra verdadeiramente por aquilo que é - quando faz misericórdia. Bem antes
de Lutero, Santo Agostinho tinha escrito: “‘A justiça de Deus’ é aquela, pela
qual, por sua graça, Deus nos torna justos, exatamente como ‘a salvação do
Senhor’ (salus Domini) (Sl 3,9) é
aquela, pela qual, Deus nos salva” [2].
Isso
não esgota todos os sentidos da expressão “justiça de Deus”, mas é certamente o
significado principal dela. Um dia existirá, também, uma justiça de Deus
retributiva, que dará a cada um de acordo com os próprios méritos (cf. Rm 2,5-10); mas, não é dessa que o
Apóstolo fala quando diz: “Agora se manifestou a justiça de Deus” (Rm 3,21).
Aquela é um evento futuro, esta um evento presente. Em outro lugar o próprio
apóstolo explica assim: “Quando se manifestou a bondade de Deus e o seu amor
pelos homens, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça realizadas,
mas pela sua misericórdia” (Tt 3,4-5).
1.
“Sejam santos porque eu, vosso Deus, sou santo”
O
tema desta meditação é o capítulo V da Lumen
Gentium, intitulado “A vocação universal à santidade na Igreja”. Nas
histórias do Concílio este capítulo só é lembrado por uma questão, digamos, de
redação. Os vários Padres Conciliares, membros de ordens religiosas, pediram
com insistência que fosse dedicado um tratado à parte sobre a presença dos religiosos
na Igreja, como tinha sido feito para os leigos. Foi assim que aquilo que tinha
sido lembrado até então como um capítulo unicamente relacionado à santidade de
todos os membros da Igreja, foi dividido em dois capítulos, dos quais o segundo
- o VI da Lumen Gentium -, foi dedicado
especificamente aos religiosos [3].
O
chamado à santidade foi formulado desde o início com estas palavras: “Por isso,
todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados,
são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de
Deus, a vossa santificação» (1Ts 4,3; cf.
Ef 1,4)” (Lumen
Gentium, n. 39).
Este
chamado à santidade é o ponto mais necessário e urgente do Concílio. Sem isso,
todos os outros requisitos são impossíveis ou inúteis. De fato, normalmente,
isso é deixado de lado porque só Deus e a consciência que a exigem e pedem, e
não as pressões ou interesses de grupos humanos particulares da Igreja. Às
vezes, parece que em certos ambientes e em certas famílias religiosas, depois
do Concílio, focaram mais no compromisso de “fazer os santos” do que no de “fazerem-se
santos”, ou seja, mais esforço para levar aos altares os próprios fundadores ou
correligionários do que em imitar os seus exemplos e as suas virtudes.
A
primeira coisa que deve ser feita, quando se fala de santidade, é libertar esta
palavra da submissão e do medo que dá, por causa de certas deturpações que
fizeram dela. A santidade pode acarretar fenômenos e provas extraordinárias,
mas não se identifica com essas coisas. Se todos são chamados à santidade, é
porque, devidamente compreendida, ela está ao alcance de todos, faz parte da
normalidade da vida cristã. Os santos são como as flores: não existem só
aqueles que são colocados no altar. Quantos deles desabrocham e morrem
escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu perfume no ambiente!
Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem continuamente na
Igreja
A
motivação de fundo da santidade é clara desde o início e é que Deus é santo:
“Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). A santidade
é a síntese, na Bíblia, de todos os atributos de Deus. Isaías chama Deus de “o
Santo de Israel”, aquele que Israel conheceu como o Santo. “Santo, santo,
santo”, Qadosh, qadosh, qadosh, é o grito
que acompanha a manifestação de Deus no momento do seu chamado (Is 6,3). Maria
reflete fielmente essa ideia de Deus dos Profetas e dos Salmos, quando exclama
no Magnificat: “Santo é o seu nome”
(Lc 1,49).
Quanto
ao conteúdo da ideia de santidade, o termo bíblico qadosh sugere
a ideia de separação, de diversidade. Deus é santo porque é o totalmente outro
com relação a tudo o que o homem pode pensar, dizer ou fazer. É absoluto, no
sentido etimológico de ab-solutus, solto de tudo e à parte. É o
transcendente, no sentido de que está por acima de todas as nossas categorias.
Tudo isso no sentido moral, antes mesmo que metafísico; diz respeito ao atuar
de Deus e não só ao seu ser. Na Escritura definem-se como “santos”
principalmente os juízos de Deus, as suas obras e os seus caminhos (cf. Dt 32,4; Dn 3,
27; Ap 16,7).
Contudo,
“santo” não é um conceito principalmente negativo, que indica separação,
ausência de mal e de mistura em Deus; é um conceito sumamente positivo. Indica
uma “pura plenitude”. Em nós, a “plenitude” nunca se mistura totalmente com a
“pureza”. Sempre conquistamos a nossa pureza, purificando-nos e tirando o mal
das nossas ações (Is 1,16). Em Deus não; pureza e plenitude coexistem e
constituem juntas a suma simplicidade de Deus. A Bíblia expressa perfeitamente
esta ideia de santidade quando fala que a Deus “nada pode ser acrescentado e
nada tirado” (Eclo 42,21). Em quanto suma pureza, nada lhe deve ser
tirado; em quanto suma plenitude, nada lhe pode ser
acrescentado.
Quando
se procura entender como o homem entra na esfera da santidade de Deus e o que
significa ser santo, logo prevalece, no Antigo Testamento, a ideia
ritualística. Os trâmites da santidade de Deus são objetos, lugares, ritos,
prescrições. Seções inteiras do Êxodo
e do Levítico se intitulam “códigos
de santidade” ou “lei de santidade”. A santidade está contida em um código de
leis. É tal esta santidade que é profanada se alguém se aproxima do altar com
uma deformidade física ou depois de ter tocado num animal imundo:
“santificai-vos e sede santos... não se contaminem com qualquer um destes
animais” (Lv 11,44; 21,23).
É
possível ler diferentes vozes nos Profetas e nos Salmos. À pergunta; “Quem
subirá o monte do Senhor, quem entrará em sua santa habitação?” ou: “Quem
dentre nós pode habitar com um fogo abrasador?”, responde-se com indicações
requintadamente morais: “Quem tem mãos puras e inocente coração” e “Quem
caminha na justiça e fala com lealdade” (cf.
Sl 24,3; Is 33,14s). São vozes sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda
no tempo de Jesus, nos fariseus e em Qumram prevalece a ideia de que a
santidade e a justiça consistem na pureza ritual e na observância de certos
preceitos, especialmente o do sábado, embora se, na teoria, ninguém esquece que
o primeiro e maior mandamento é o do amor a Deus e ao próximo.
2.
A novidade de Cristo
Passando
agora para o Novo Testamento, vemos que a definição de “nação santa” estende-se
bem cedo aos cristãos. Para Paulo, os batizados são “santos por vocação”, ou
“chamados a ser santos” (cf.
Rm 1,7; 1Cor 1,2). Ele designa habitualmente os batizados com o termo “os
santos”. Os fiéis são “escolhidos para ser santos e imaculados diante d’Ele no
amor” (Ef 1,4). Mas sob a aparente identidade de terminologia vemos mudanças
profundas. Santidade não é mais um fato ritual ou legal, mas moral, até mesmo
ontológico. Não reside nas mãos, mas no coração; não se decide fora, mas dentro
do homem e resume-se na caridade. “Não é o que entra pela boca que contamina o
homem; o que sai da boca, isso contamina o homem “(Mt 15,11).
Os
mediadores da santidade de Deus não são mais lugares (o templo de Jerusalém ou
o monte Garizim), ritos, objetos e leis, mas é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser
santo não consiste tanto em um estar separado disto ou
daquilo, mas em um estar unido a Jesus Cristo. Em Jesus Cristo
está a própria santidade de Deus que nos alcança pessoalmente, não em uma luz
distante dele. “Tu és o Santo de Deus!”: duas vezes ressoa esta exclamação
dirigida a Jesus nos Evangelhos (Jo 6,69; Lc 4,34). O Livro do Apocalipse chama Cristo simplesmente “o Santo” (Ap 3,7) e
a Liturgia ecoa exclamando no Glória “Tu
solus Sanctus”, “só Vós sois o Santo”.
Há
duas maneiras de entrar em contato com a santidade de Cristo e esta é
comunicada a nós: por apropriação e por imitação.
Dessas, a mais importante é a primeira que se realiza na fé e por meio dos
sacramentos. A santidade é, antes de tudo, graça e é obra de toda a Trindade.
Porque, de acordo com o Apóstolo, nós pertencemos a Cristo mais do que a nós
mesmos (cf. 1Cor 6,19-20), segue-se
que, inversamente, a santidade de Cristo nos pertence mais do que a nossa
própria santidade. “O que é de Cristo - escreve o teólogo bizantino Nicolau
Cabasilas - é mais nosso do que aquilo que é nosso” [4].
Essa é a ideia genial, ou ato corajoso, que temos que realizar na vida
espiritual. A sua descoberta não se faz, geralmente, no começo, mas no final do
próprio itinerário espiritual; não no noviciado, mas mais tarde, quando já se
experimentou todas as outras estradas e vemos que não levam muito longe.
Paulo
nos ensina como fazer este “ato corajoso”, quando declara solenemente não
querer ser encontrado com a sua própria justiça, ou santidade, resultante do
cumprimento da lei, mas apenas com aquela que deriva da fé em Cristo (cf. Fl 3,5-10). Cristo, diz, se tornou
para nós “justiça, santificação e redenção” (1Cor 1,30). “Para nós”: portanto,
podemos exigir a sua santidade como nossa em todos os efeitos. Um ato corajoso
é também o que faz São Bernardo, quando grita: “Eu, quando me falta, o aproprio
(literalmente, o usurpo) do lado de Cristo” [5].
“Usurpar” a santidade de Cristo, “arrebatar” o reino dos céus! Isso é ato
corajoso que deve ser repetido muitas vezes na vida, especialmente, no momento
da Comunhão eucarística.
Dizer
que nós participamos da santidade de Cristo é como dizer que participamos do
Espírito Santo que vem d’Ele. Ser ou viver “em Cristo Jesus” equivale, para São
Paulo, ser ou viver “no Espírito Santo”. “A partir disso - escreve, por sua
vez, São João - se reconhece que nós permanecemos n’Ele e Ele em nós: Ele nos
fez o dom do seu Espírito” (1Jo 4,13). Cristo permanece em nós e nós
permanecemos em Cristo, graças ao Espírito Santo.
É
o Espírito Santo, portanto, que nos santifica. Não o Espírito Santo no geral,
mas o Espírito Santo que foi em Jesus de Nazaré, que santificou a sua
humanidade, que se recolheu n’Ele como em um vaso de alabastro e que, da sua
cruz e em Pentecostes, Ele derramou sobre a Igreja. Por isso, a santidade que
está em nós não é uma segunda e diferente santidade, mas é a mesma santidade de
Cristo. Nós somos verdadeiramente “santificados em Cristo Jesus” (lCor 1,2).
Como no Batismo, o corpo do homem está imerso e lavado na água, assim a sua
alma é, por assim dizer, batizada na santidade de Cristo: “Fostes lavados,
fostes santificados, fostes justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no
Espírito do nosso Deus”, diz o Apóstolo referindo-se ao Batismo (1Cor 6,11).
Ao
lado deste meio fundamental da fé e dos sacramentos, deve estar também a
imitação, as obras, o esforço pessoal. Não como meio independente e diferente,
mas como o único meio adequado de manifestar a fé, traduzindo-a em ato. A
oposição fé - obras é um falso problema que se manteve por causa da
controvérsia histórica. As boas obras, sem a fé, não são obras “boas” e a fé
sem as obras boas não é verdadeira fé. Basta que por “obras boas” não se
entendam principalmente (como infelizmente era no tempo de Lutero)
indulgências, peregrinações e práticas piedosas, mas a observância dos
mandamentos, especialmente o do amor fraterno. Jesus disse que no juízo final
alguns serão excluídos do Reino por não terem vestido o nu e alimentado o
faminto. Não há salvação, portanto, pelas obras boas, mas não há
salvação sem as obras boas. Podemos resumir assim a doutrina
do Concílio de Trento.
Acontece
igual à vida física. A criança não pode fazer absolutamente nada para ser
concebida no seio da mãe; precisa do amor dos pais (pelos menos foi assim até
hoje!). Uma vez que nasceu, deve fazer trabalhar os seus pulmões para respirar,
sugar o leite; em suma, deve trabalhar, senão a vida que recebeu morre. A frase
de São Tiago: “A fé, sem as obras é morta” (Tg 3,26) deve ser entendida neste
sentido, isto é, no presente: a fé sem as obras morre.
No
Novo Testamento, dois verbos são usados para referir-se à santidade, um no
indicativo e um no imperativo: “Sois Santos” e “Sede santos”. Os cristãos são
santificados e santificantes (cf. 1Cor 1,2; 1Pd 1,2; 2,15). Quando Paulo escreve: “Esta é a
vontade de Deus, a vossa santificação”, é claro que se refere justamente a esta
santidade que é fruto de compromisso pessoal. Acrescenta, de fato, como para
explicar em que consiste a santificação da qual está falando: “Que vos
abstenhais da imodéstia, que cada um saiba manter o próprio corpo com santidade
e respeito” (cf. 1 Ts 4,3-9).
O
nosso texto da Lumen Gentium enfatiza claramente estes dois
aspectos, um objetivo e outro subjetivo, da santidade, baseados respectivamente
na fé e nas obras. Diz: “Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e
justificados em Jesus Cristo, não segundo as suas obras, mas segundo o Seu desígnio
e a Sua graça, no Batismo da fé foram feitos realmente filhos de Deus e coparticipantes
da natureza divina, e, por isso, realmente santos. Esses devem, portanto, com a
ajuda de Deus, manter e aperfeiçoar, vivendo-a, a santidade que receberam” (Lumen
Gentium, n. 40).
Porque,
de acordo com Lutero, a Idade Média tinha se desviado sempre mais para acentuar
o lado de Cristo como modelo, e ele acentuou o outro, afirmando que ele é dom e
que este dom corresponde à fé aceitar [6]. Hoje estamos
todos de acordo que não se deve contrapor as duas coisas, mas mantê-las unidas.
Cristo é, antes de tudo, dom a ser recebido por meio da fé, mas é também modelo
a ser imitado na vida. Ele próprio fala isso no Evangelho: “Eu vos dei o
exemplo, para que façais como eu vos fiz (Jo 13,15); “Aprendei de mim que sou
manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
3.
Santos ou fracassados
Este
é o ideal novo de santidade do Novo Testamento. Um ponto permanece inalterado,
e é possível aprofundá-lo na passagem do Antigo ao Novo Testamento e é a
motivação de fundo do chamado à santidade, o “por que” é necessário ser santos:
porque Deus é santo. “À imagem do santo que vos chamou, sede também vós
santos”. Os discípulos de Cristo devem amar os inimigos, “para ser filhos do
Pai celeste que faz chover sobre justos e sobre injustos” (Mt 5,45). A
santidade não é, portanto, uma imposição, um fardo que nos é colocado sobre os
ombros, mas um privilégio, um dom, uma honra suprema. Uma obrigação, sim, mas
que deriva da nossa dignidade de filhos de Deus. Aplica-se a ela, no sentido
pleno, o ditado francês “noblesse oblige”.
A
santidade é exigida pelo próprio ser da criatura humana; não diz respeito aos
acidentes, mas à sua própria essência. Ele deve ser santo para realizar a sua
identidade profunda que é de ser “à imagem e semelhança de Deus”. Para a
Escritura, o homem não é principalmente, como para a filosofia grega, o que é
determinado a ser pelo seu nascimento (physis),
ou seja, um “animal racional”, mas o que é chamado a se tornar, com o exercício
da sua liberdade, na obediência a Deus. Não é tanto natureza, mas vocação.
Se,
portanto, somos “chamados a ser santos”, se somos “santos por vocação”, então
fica claro que seremos pessoas verdadeiras, realizadas, na medida em que formos
pessoas santas. Caso contrário, seremos pessoas fracassadas. O contrário de
santo não é pecador, mas fracassado! Pode-se fracassar na vida de muitas
formas, mas são fracassos relativos que não comprometem o essencial; aqui se
fracassa radicalmente naquilo que se é, não só naquilo que se faz. Tinha razão
Madre Teresa quando perguntada à queima roupa por uma jornalista o que ela
sentia quando era aclamada santa por todo o mundo, respondeu: “A santidade não
é um luxo, é uma necessidade”.
O
filósofo Pascal formulou o princípio das três ordens ou níveis de grandeza: a
ordem dos corpos ou da matéria, a ordem da inteligência e a ordem da santidade.
Uma distância quase infinita separa a ordem da inteligência da dos corpos, mas
uma distância “infinitamente mais infinita” separa a ordem da santidade da
ordem da inteligência. Os genes não precisam das grandezas materiais; não podem
tirar ou acrescentar nada a eles. Da mesma forma, os santos não precisam das
grandezas intelectuais; a sua grandeza é de outra ordem. “Eles são vistos por
Deus e pelos anjos, não pelos corpos e pelas mentes curiosas; basta-lhes Deus” [7].
Este
princípio permite avaliar da forma certa as coisas e as pessoas que nos
rodeiam. A maioria das pessoas permanece parada no primeiro nível e nem sequer
suspeita da existência de um plano superior. São aqueles que passam a vida
preocupados só em acumular riquezas, cultivar a beleza física ou aumentar o
próprio poder. Outros acreditam que o valor supremo e o vértice da grandeza
seja o da inteligência. Procuram se tornar célebres no campo das letras, da
arte, do pensamento. Só poucos sabem que existe um terceiro nível de grandeza,
a santidade.
Esta
grandeza é superior porque eterna, porque é tal aos olhos de Deus que é a verdadeira
medida da grandeza e também porque realiza o que há de mais nobre no ser
humano, ou seja, a sua liberdade. Não depende de nós nascermos fortes ou
fracos, bonitos ou menos bonitos, ricos ou pobres, inteligentes ou pouco
inteligentes; depende de nós, sim, sermos honestos ou desonestos, bons ou maus,
santos ou pecadores. Tinha razão o musico Gounod, ele próprio um gênio, quando
dizia que “um gota de santidade vale mais do que oceano de gênio”.
A
boa notícia sobre a santidade é que não se é obrigado a escolher um destes três
tipos de grandeza. Pode-se ser santos em cada um deles. Houve e há santos entre
os ricos e entre os pobres, entre os fortes e entre os fracos, entre os gênios
e as pessoas sem cultura. Ninguém está excluído desta magnitude do terceiro
nível.
4.
Voltar ao caminho da santidade
O
nosso tender à santidade é semelhante ao caminho do povo eleito no deserto.
Esse também é um caminho feito de contínuas paradas e partidas. De tanto em
tanto o povo parava e acampava; ou porque estava cansado, ou porque tinha
encontrado água e comida, ou simplesmente porque cansa caminhar sempre. Mas eis
que chega de improviso a ordem do Senhor a Moisés de levantar as tendas e
recomeçar a caminhada: “Levante, saia daqui, tu e o teu povo, rumo à terra que
prometi” (Ex 15,22; 17,1).
Na
vida da Igreja, essas chamadas para voltar a caminhar são ouvidas,
especialmente, no início dos tempos fortes do Ano Litúrgico ou em ocasiões
particulares, como é o Jubileu da Misericórdia aberto recentemente pelo Papa.
Para cada um de nós, tomados individualmente, o tempo de levantar as tendas e
recomeçarmos a caminhada rumo a santidade é quando nos damos conta, no íntimo,
da misteriosa chamada que vem da graça. No começo, há como que um momento de
parada. A pessoa para no turbilhão de suas ocupações, toma, como se costuma
dizer, as distâncias de tudo para olhar a sua vida quase que de fora ou do
alto, sub specie aeternitatis. Surgem, então, as grandes
perguntas: “Quem sou? O que quero? O que estou fazendo da minha vida?”.
Embora
fosse um monge, São Bernardo teve uma vida muito movimentada: Concílios que
presidiu, Bispos e abades que reconciliou, cruzadas que pregou. De vez em
quando, diz o seu biógrafo, ele parava e, quase entrando em diálogo consigo
mesmo, se perguntava: “Bernardo, a que viestes?” - “Bernarde, ad quid venisti?” [8]. Por que
deixastes o mundo e entrastes no mosteiro? Nós podemos imitá-lo; pronunciar o
nosso nome (também isso serve) e perguntar-nos: Por que és cristão? Por que és
sacerdote ou religioso? Estás realizando aquilo pelo qual estás no mundo?
No
Novo Testamento se descreve um tipo de conversão que poderíamos definir como a
conversão-despertar, ou a conversão da mediocridade. No Apocalipse se leem sete cartas escritas aos anjos (segundo alguns
exegetas, aos Bispos) de várias igrejas da Ásia Menor. Na carta ao anjo de
Éfeso, ele começa reconhecendo o que o destinatário fez de bom: “Conheço as
tuas obras, o teu cansaço e a tua constância... És constante e tens sofrido
muito pelo meu nome, sem cansar-te”. Depois passa a listar o que, pelo
contrário, não lhe agrada: “Abandonastes o teu primeiro amor!”. E eis que,
neste ponto, ressoa, como uma trombeta entre adormecidos, o grito do
Ressuscitado: Metanòeson, ou seja, “Converte-te!”, Levanta-te!
Sacode-te! (Ap 2,1ss).
Essa
é a primeira das sete cartas. Muito mais severa é a última dessas, aquela
dirigida ao anjo da igreja de Laodiceia: “Conheço as tuas obras: tu não eres
nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente!”. Converte-te e volte a ser
zeloso e fervoroso: Zeleue oun kai metanòeson! (Ap 3,15ss).
Também esta, como todas as outras, termina com aquele misterioso aviso: “Quem
tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 3,22).
Santo
Agostinho nos dá uma dica: começar a despertar em nós o desejo de santidade:
“Toda a vida do bom cristão - escreve - consiste em um santo desejo [ou seja,
em um desejo de santidade]: Tota vita christiani boni, sanctum
desiderium est” [9]. Jesus disse: “Bem
aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt
5,6). A justiça bíblica, se sabe, é a santidade. Deixamos, por isso, uma
pergunta para meditar: “Eu tenho fome e sede de santidade, ou estou me
contentando com a mediocridade?”.
Notas:
[1] Concilio Vaticano II. Documenti.
Edizioni Dehoniane, Bologna, 1967, p. 47.
[2] S.
Agostinho, Lo Spirito e la lettera, 32, 56 (PL 44, 237).
[3] cf. Storia del concilio Vaticano
II, organizado por G. Alberigo, vol. IV, Bologna, 1999, pp. 68ss.
[4] N.
Cabasilas, Vita in Cristo IV, 6 (PG 150, 613).
[5] S.
Bernardo, Omelie sul Cantico, 61, 4-5 (PL 183,
1072).
[6] cf.
Søeren Kierkegaard, Diario X 1, A 154 (ed. organizada
por C. Fabro, Brescia, 1962, vol. I, p. 821).
[7] B.
Pascal, Pensieri, 593.
[8] Guilherme
de St. Thierry, Vita prima, I, 4 (PL 185, 238).
[9] S.
Agostinho, In Epist. Joh. 4, 6 (PL 35, 2008).
Fonte: Zenit
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