quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 12

Prosseguimos com as Catequeses do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai com suas meditações nn. 20-21, dedicadas ao mistério da Santíssima Trindade.

Para acessar a postagem que serve de introdução e índice das Catequeses, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

20. Unidade e distinção da eterna comunhão
João Paulo II - 27 de novembro de 1985

1. “Unus Deus Trinitas...” [1].
Nesta concisa fórmula, o XI Sínodo de Toledo (675) expressou, de acordo com os grandes Concílios reunidos no século IV em Niceia e em Constantinopla, a fé da Igreja em Deus Uno e Trino.
Em nossos dias, Paulo VI, no “Credo do Povo de Deus”, expressou a mesma fé com palavras que já citamos durante as Catequeses anteriores: “As relações mútuas, que constituem eternamente as Três Pessoas, sendo, cada uma delas, o único e mesmo Ser divino, perfazem a bem-aventurada vida íntima do Deus três vezes Santo, infinitamente acima de tudo o que podemos conceber à maneira humana”.
Deus é inefável e incompreensível, Deus é na sua essência um mistério inescrutável, cuja verdade procuramos iluminar nas Catequeses anteriores. Diante da Santíssima Trindade, na qual se exprime a vida íntima do Deus da nossa fé, é preciso repeti-lo e constatá-lo com uma força de convicção ainda maior. A unidade da divindade na Trindade das Pessoas é verdadeiramente um mistério inefável e inescrutável! “Se o compreendes, não é Deus”.

2. Por isto Paulo VI prossegue no texto antes citado, dizendo: “Rendemos graças à Bondade divina pelo fato de poderem numerosíssimos crentes dar testemunho conosco, diante dos homens, sobre a unidade de Deus, embora não conheçam o mistério da Santíssima Trindade” (Credo do Povo de Deus).
A Santa Igreja na sua fé trinitária se sente unida a todos os que confessam o único Deus. A fé na Trindade não destrói a verdade do único Deus: ao contrário, põe em evidência sua riqueza, seu conteúdo misterioso, sua vida íntima.

Santíssima Trindade
(Catedral do Cristo Salvador, Moscou)

3. Esta fé tem a sua fonte - a única fonte - na Revelação do Novo Testamento. Apenas mediante esta Revelação é possível conhecer a verdade sobre o Deus Uno e Trino. Este, com efeito, é um dos “mistérios escondidos em Deus, que - como diz o Concílio Vaticano I - não podemos conhecer sem a divina Revelação” (Constituição Dei Filius, cap. IV).
No Cristianismo, o dogma da Santíssima Trindade foi considerado sempre um mistério: o mais fundamental e o mais inescrutável. Jesus Cristo mesmo disse: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27).

Como ensina o Concílio Vaticano I: “Os mistérios divinos por sua própria natureza excedem de tal modo a inteligência criada que, mesmo depois de transmitidos por Revelação e acolhidos pela fé, permanecem ainda encobertos com o véu da mesma fé e como que envoltos em certa escuridão, enquanto durante esta vida mortal ‘somos peregrinos longe do Senhor, pois caminhamos guiados pela fé e não pela visão’ (2Cor 5,6)” (Constituição Dei Filius, cap. IV).
Esta afirmação vale de modo particular para o mistério da Santíssima Trindade: mesmo depois da Revelação ele permanece o mais profundo mistério da fé, que o intelecto por si só é incapaz de compreender ou penetrar. O mesmo intelecto, ao contrário, iluminado pela fé, pode de certo modo apreender e explicar o significado do dogma. E pode assim aproximar do homem o mistério da vida íntima do Deus Uno e Trino.

4. Na realização desta excelsa obra - seja mediante o trabalho de muitos teólogos e antes de tudo dos Padres da Igreja, seja mediante as definições dos Concílios - demonstrou-se particularmente importante e fundamental o conceito de pessoa como distinto daquele de “natureza” (ou essência). Pessoa é aquele ou aquela que existe como ser humano concreto, como indivíduo que possui a humanidade, isto é, a natureza humana. A natureza (a essência) é tudo aquilo pelo qual o que existe concretamente é o que é. Assim, por exemplo, quando falamos de “natureza humana”, indicamos aquilo pelo qual cada homem é homem, com seus componentes essenciais e com suas propriedades.
Aplicando esta distinção a Deus, constatamos a unidade da natureza, isto é, a unidade da Divindade, a qual pertence de modo absoluto e exclusivo Àquele que existe como Deus. Ao mesmo tempo - seja apenas à luz do intelecto, seja, e ainda mais, à luz da Revelação -, alimentamos a convicção de que Ele é um Deus pessoal. Também àqueles aos quais não chegou a Revelação da existência em Deus de três Pessoas, o Deus criador deve aparecer como um Ser pessoal. Sendo, com efeito, a pessoa aquilo que há de mais perfeito no mundo (“id quod est perfectissimum in tota natura”: Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 29, a. 3), não se pode não atribuir esta qualificação ao Criador, ainda que respeitando sua infinita transcendência (cf. ibid.). Precisamente por isto as religiões monoteístas não cristãs compreendem Deus como pessoa infinitamente perfeita e absolutamente transcendente em relação ao mundo.
Unindo nossa voz àquelas de todos os outros crentes, elevamos também neste momento o nosso coração ao Deus vivente e pessoal, ao único Deus que criou os mundos e que está na origem de tudo aquilo que é bom, belo e santo. A Ele o louvor e a glória pelos séculos.

21. Três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro
João Paulo II - 04 de dezembro de 1985

1. “Unus Deus Trinitas...”.
Ao final do longo trabalho de reflexão levado adiante pelos Padres da Igreja e consignado nas definições dos Concílios, a Igreja fala do Pai e do Filho e do Espírito Santo como de três Pessoas”, que subsistem na unidade da idêntica natureza divina.
Dizer “pessoa” significa fazer referência a um ente único de natureza racional, como oportunamente esclarece já Boécio em sua famosa definição: “Persona proprie dicitur rationalis naturae individua substantia” (in: De duabus naturis et una persona Christi: PL 64, 1343D). A Igreja antiga, porém, rapidamente precisa que a natureza intelectual de Deus não é multiplicada com as Pessoas; ela permanece sendo única, de tal maneira que o crente pode proclamar com o Símbolo Atanasiano ou “Quicumque: “Não três deuses, mas um único Deus”.
O mistério aqui se faz profundíssimo: três Pessoas distintas e um só Deus. Como é possível? A razão compreende que não há contradição, porque a trindade é das Pessoas e a unidade da Natureza divina. Permanece porém a dificuldade: se cada uma das Pessoas é o mesmo Deus, como podem então distinguir-se realmente?

2. A resposta que nossa razão balbucia se apoia sobre o conceito de “relação”. As três Pessoas divinas se distinguem entre si unicamente pelas relações que têm Uma com a Outra: e precisamente pela relação de Pai a Filho, de Filho a Pai; de Pai e Filho a Espírito, de Espírito a Pai e Filho. Em Deus, pois, o Pai é pura Paternidade, o Filho é pura Filiação, o Espírito Santo é puro “Nexo de Amor” dos Dois, de modo que as distinções pessoais não dividem a mesma e única Natureza divina dos Três.
O XI Sínodo de Toledo (675) precisa com fineza: “O que é o Pai, não o é em relação a si mesmo, mas ao Filho; e o que é o Filho, não o é em relação a si mesmo, mas ao Pai; de modo semelhante, também o Espírito Santo não é referido em relação a si, mas ao Pai e ao Filho, sendo chamado Espírito do Pai e do Filho” (Denzinger, n. 528).
O Concílio de Florença (1442) pôde, portanto, afirmar: “Estas três Pessoas são um só Deus, não três deuses, porque uma só é a substância das Três, uma a essência, uma a natureza, uma a divindade, uma a imensidade, uma a eternidade; e tudo isso uma unidade, sempre que a oposição de relação não impede” (Denzinger, n. 1330).

3. As relações que distinguem assim o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e que os dirigem realmente Um ao Outro em seu mesmo ser, possuem em si mesmas todas as riquezas de luz e de vida da natureza divina, com a qual se identificam totalmente. São relações “subsistentes”, que em virtude do seu impulso vital “saem ao encontro” uma da outra em uma comunhão na qual a totalidade da Pessoa é abertura à outra, paradigma supremo da sinceridade e da liberdade espiritual a que devem tender as relações interpessoais humanas, sempre muito distantes deste modelo transcendente.
A este respeito o Concílio Vaticano II observa: “Quando pede ao Pai que ‘todos sejam um, (...) como nós somos um’ (Jo 17,21-22), abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana, o Senhor Jesus sugere alguma semelhança entre a união das pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança manifesta que o homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plenamente a não ser por um sincero dom de si mesmo” (Gaudium et Spes, n. 24).

4. Se a perfeitíssima unidade das três Pessoas divinas é o vértice transcendente que ilumina toda forma de autêntica comunhão entre nós, seres humanos, é justo que a nossa reflexão retorne com frequência à contemplação deste mistério, ao qual tantas vezes se alude no Evangelho. Basta recordar as palavras de Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30); e também: “Crede nas minhas obras, para que saibais e reconheçais que o Pai está em mim, e Eu no Pai” (v. 38). E, em outro contexto: “As palavras que Eu vos falo, não as falo por mim mesmo, mas é o Pai que, permanecendo em mim, realiza as suas obras. Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,10-11).
Os antigos escritores eclesiásticos se detêm com frequência a tratar desta recíproca compenetração das Pessoas divinas. Os gregos a definem como “perichóresis”, o Ocidente (especialmente desde o século XI) como “circumincessio” (recíproco compenetrar-se) ou “circuminsessio” (recíproca inabitação). O Concílio de Florença expressou esta verdade trinitária com as seguintes palavras: “Por esta unidade, o Pai está todo no Filho, todo no Espírito Santo; o Filho está todo no Pai, todo no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo no Pai, todo no Filho” (Denzinger, n. 1331). As três Pessoas divinas, os três “Distintos”, sendo puras relações recíprocas, são o mesmo Ser, a mesma Vida, o mesmo Deus.
Diante deste fulgurante mistério de comunhão, no qual nossa pequena mente se perde, vem espontaneamente aos lábios a aclamação da Liturgia:

Gloria Tibi, Trinitas aequalis, una Deitas et ante omnia saecula, et nunc et in perpetuum”.

“Glória a vós, Trindade Santa, um só Deus em três Pessoas desde sempre, neste instante, e nos séculos sem fim” (Solenidade da Santíssima Trindade, I Vésperas, 1ª antífona) [2].

Vitral da Trindade (Église Saint-Hubert, Aubel)

Para acessar nossa postagem sobre a história da Solenidade da Santíssima Trindade, clique aqui.

Notas:

[1] “O único Deus é a Trindade”; cf. Denzinger-Hünermann. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007, p. 192 [n. 528].

[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 520.

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (27 de novembro e 04 de dezembro de 1985).

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