quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 9

Após sua Catequese sobre o mistério da Trindade (n. 13), o Papa São João Paulo II dedicou duas reflexões a cada uma das três Pessoas. Confira a seguir suas meditações sobre Deus Pai (nn. 14-15).

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

14. O Pai
João Paulo II - 16 de outubro de 1985

1. “Tu és o meu filho: Eu hoje te gerei” (Sl 2,7).
Com o objetivo de fazer compreender a plena verdade da paternidade de Deus que foi revelada em Jesus Cristo, o autor da Carta aos Hebreus remete ao testemunho do Antigo Testamento (cf. Hb 1,4-14), citando, entre outras, a expressão que acabamos de ler, tomada do Salmo 2, assim como uma frase parecida do Segundo Livro de Samuel: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2Sm 7,14).
São palavras proféticas: Deus fala a Davi do seu descendente. Porém, enquanto no contexto do Antigo Testamento estas palavras pareciam referir-se apenas à filiação adotiva, em analogia à paternidade e à filiação humanas, no Novo Testamento se desvela seu significado autêntico e definitivo: elas falam do Filho que é da mesma natureza do Pai, do Filho verdadeiramente gerado pelo Pai. E, portanto, falam também da paternidade real de Deus, de uma paternidade à qual é própria a geração do Filho, consubstancial ao Pai. Essas palavras falam de Deus, que é Pai no sentido mais profundo e mais autêntico da palavra. Falam de Deus, que gera eternamente o Verbo eterno, o Filho consubstancial ao Pai. Em relação a Ele Deus é Pai no inefável mistério da sua divindade.
“Tu és o meu filho: Eu hoje te gerei”.
O advérbio “hoje” fala da eternidade. É o “hoje” da vida íntima de Deus, o “hoje” da eternidade, o “hoje” da Santíssima e Inefável Trindade: Pai e Filho e Espírito Santo, que é amor eterno e eternamente consubstancial ao Pai e ao Filho.

A paternidade de Deus (Viktor Vasnetsov)

2. No Antigo Testamento, o mistério da paternidade divina intratrinitária não havia sido ainda explicitamente revelado. Não obstante, todo o contexto da antiga aliança é rico de alusões à verdade da paternidade de Deus, tomada em sentido moral e analógico. Assim, Deus se revela como Pai do seu povo, Israel, quando ordena a Moisés que peça a sua libertação do Egito: “Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito. Por isso, Eu te ordeno que deixes ir o meu filho...” (Ex 4,22-23).
Esta, baseando-se na aliança, é uma paternidade de eleição, que se fundamenta no mistério da criação. Diz Isaías: “Tu és o nosso pai! Nós somos o barro, Te és o nosso oleiro! Todos nós somos obra das tuas mãos” (Is 64,7).
Esta paternidade não se refere apenas ao povo eleito, mas atinge todo homem e supera o vínculo existente com os pais terrenos. Eis alguns textos: “Embora meu pai e minha mãe me tenham abandonado, o Senhor, porém, me acolheu” (Sl 26/27,10). “Como um pai se compadece dos filhos, assim se compadece o Senhor dos que o temem” (Sl 102/103,13). “O Senhor corrige os que Ele ama, como um pai quer bem ao filho” (Pr 3,12). Nos textos que citamos fica claro o caráter analógico da paternidade de Deus-Senhor, ao qual se eleva a oração: “Não me abandones ao arbítrio deles [dos inimigos], Senhor, Pai e Soberano de minha vida, nem permitas que eu caia por sua causa. (...) Senhor, Pai e Deus da minha vida, não me abandones às suas sugestões” (Eclo 23,1.4). No mesmo sentido diz-se também: “Se, de fato, [o justo] é filho de Deus, Deus o defenderá e o livrará das mãos de seus inimigos” (Sb 2,18).

3. A paternidade de Deus, seja em relação a Israel seja em relação a cada homem, se manifesta no amor misericordioso. Lemos, por exemplo, em Jeremias: “Chegam chorando, suplicantes Eu os reconduzo... pois eu sou pai para Israel, e Efraim é meu primogênito” (Jr 31,9) [1].
São numerosas as passagens do Antigo Testamento que apresentam o amor misericordioso do Deus da aliança. Eis algumas:
“De todos tens compaixão, porque tudo podes, e fechas os olhos aos pecados dos mortais, para que se arrependam. (...) A todos, porém, tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor, amigo da vida” (Sb 11,23.26).
“Com amor eterno Eu te amei, por isso te atraí com misericórdia!” (Jr 31,3).
Em Isaías encontramos comoventes testemunhos de cuidado e de afeto: “Sião vinha dizendo: ‘O Senhor me abandonou, o Senhor esqueceu-se de mim’. Pode uma mulher esquecer-se de seu filhinho...? Mesmo que ela se esquecesse, Eu, contudo, não me esquecerei de ti!” (Is 49,14-15; cf. 54,10).
É significativo que nas passagens do profeta Isaías a paternidade de Deus se enriquece com conotações que se inspiram na maternidade (cf. Encíclica Dives in misericordia, nota 52).

4. Na plenitude dos tempos messiânicos, Jesus anuncia muitas vezes a paternidade de Deus em relação aos homens remetendo-se às numerosas expressões contidas no Antigo Testamento. Assim se expressa a propósito da Providência Divina para com as criaturas, especialmente para com o homem: “vosso Pai celeste os alimenta...” (Mt 6,26; cf. Lc 12,24), “vosso Pai celeste sabe que precisais de tudo isso” (Mt 6,32; cf. Lc 12,30). Jesus trata de fazer compreender a misericórdia divina apresentando como próprio de Deus o comportamento acolhedor do pai do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32); e exorta àqueles que escutam a sua palavra: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
Para terminar, podemos dizer que, para Jesus, Deus não é apenas “o Pai de Israel”, “o Pai dos homens”, mas “o meu Pai”.
Disto falaremos na próxima Catequese.

15. O mistério da paternidade divina
João Paulo II - 23 de outubro de 1985

1. Na Catequese anterior percorremos, ainda que rapidamente, alguns testemunhos do Antigo Testamento que preparavam a acolher a plena revelação, anunciada por Jesus Cristo, da verdade do mistério da paternidade de Deus.
Cristo, com efeito, falou muitas vezes do seu Pai, apresentando de diversos modos sua providência e seu amor misericordioso.
Mas o seu ensinamento vai além. Ouçamos novamente as palavras particularmente solenes referidas pelo evangelista Mateus (e paralelamente por Lucas): “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” e, em seguida: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,25.27; cf. Lc 10,21).
Para Jesus, pois, Deus não é apenas “o Pai de Israel”, “o Pai dos homens”, mas “o meu Pai!”. “Meu”: precisamente por isto os judeus queriam matar Jesus, porque “dizia que Deus era seu Pai” (Jo 5,18). “Seu” em sentido totalmente literal: Aquele a quem somente o Filho conhece como Pai, e por quem apenas e reciprocamente é conhecido. Encontramo-nos já sobre o mesmo terreno do qual, mais tarde, surgirá o Prólogo do Evangelho de João.

2. O “meu Pai” é o Pai de Jesus Cristo, Aquele que é a origem do seu ser, da sua missão messiânica, do seu ensinamento. O evangelista João transmitiu com abundância o ensinamento messiânico que nos permite sondar em profundidade o mistério de Deus Pai e de Jesus Cristo, seu Filho Unigênito.
Jesus diz: “Quem crê em mim, não é em mim que crê, mas n’Aquele que me enviou” (Jo 12,44). “Porque Eu não falei por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, ordenou-me o que dizer e falar” (Jo 12,49). “Em verdade, em verdade vos digo: o Filho não pode fazer nada por si mesmo, Ele faz apenas o que vê o Pai fazer. O que o Pai faz, o Filho o faz de modo semelhante” (Jo 5,19). “Assim como o Pai possui a vida em si mesmo, do mesmo modo deu ao Filho possuir a vida em si mesmo” (Jo 5,26). E, por fim: “Como o Pai, que vive, me enviou, e Eu vivo pelo Pai...” (Jo 6,57).
O Filho vive pelo Pai antes de tudo porque foi gerado por Ele. Há uma estreitíssima correlação entre a paternidade e a filiação precisamente em virtude da geração: “Tu és o meu Filho, Eu hoje te gerei” (Hb 1,5). Quando, nas proximidades de Cesareia de Filipe, Simão Pedro confessa: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, Jesus lhe responde: “Bem-aventurado és tu... porque não foi carne e sangre que te revelaram isso, mas meu Pai...” (Mt 16,16-17), porque só “o Pai conhece o Filho”, assim como só “o Filho conhece o Pai” (cf. Mt 11,27). Só o Filho dá a conhecer o Pai: o Filho visível faz ver o Pai invisível. “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9).

3. A leitura atenta dos Evangelhos mostra que Jesus vive e atua em constante e fundamental referência ao Pai. A Ele se dirige muitas vezes com a palavra cheia de amor filial: “Abbá”; também durante a oração no Getsêmani esta mesma palavra volta aos seus lábios (cf. Mc 14,36 e paralelos). Quando os discípulos lhe pedem que os ensine a rezar, Ele ensina o “Pai nosso” (cf. Mt 6,9-13). Depois da Ressurreição, no momento de deixar a terra, parece referir-se mais uma vez a esta oração, quando diz: “Subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17).
Assim, pois, por meio do Filho (cf. Hb 1,2), Deus é revelado na plenitude do mistério da sua paternidade. Só o Filho poderia revelar esta plenitude do mistério, porque só “o Filho conhece o Pai” (Mt 11,27). “A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito, que está no seio do Pai, foi quem o revelou” (Jo 1,18).

4. Quem é o Pai? À luz do testemunho definitivo que nós recebemos por meio do Filho, Jesus Cristo, temos a plena consciência da fé de que a paternidade de Deus pertence antes de tudo ao mistério fundamental da vida íntima de Deus, ao mistério trinitário. O Pai é Aquele que eternamente gera o Verbo, o Filho a Ele consubstancial. Em união com o Filho, o Pai eternamente “expira” o Espírito Santo, que é o amor com o qual o Pai e o Filho permanecem reciprocamente unidos (cf. Jo 14,10).
O Pai, pois, é no mistério trinitário o “princípio-sem-princípio”. “O Pai não foi feito por ninguém, nem criado, nem gerado” (Símbolo Atanasiano ou “Quicumque”). É por si só o princípio da vida, que Deus tem em Si mesmo. Esta vida - isto é, a mesma divindade - o Pai a possui em absoluta comunhão com o Filho e com o Espírito Santo, que são consubstanciais a Ele.
Paulo, Apóstolo do mistério de Cristo, cai em adoração e oração “diante do Pai, de quem recebe o nome toda paternidade no céu e na terra” (Ef 3,14-15), princípio e modelo.
De fato, há “um só Deus e Pai de todos, acima de todos, no meio de todos e em todos” (Ef 4,6).

Ícone da paternidade de Deus (séc. XVII)

Nota:
[1] Outra tradução: “Entre consolações Eu os reconduzo...”.

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (16 de outubro e 23 de outubro de 1985).

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