Após sua Catequese sobre o mistério da Trindade (n. 13), o Papa São João Paulo II dedicou duas reflexões a cada uma das três Pessoas. Confira a seguir suas meditações sobre Deus Pai (nn. 14-15).
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
14.
O Pai
João Paulo II - 16 de outubro
de 1985
1. “Tu és o meu filho: Eu
hoje te gerei” (Sl 2,7).
Com o objetivo de fazer compreender
a plena verdade da paternidade de Deus que foi revelada em Jesus Cristo, o
autor da Carta aos Hebreus remete ao
testemunho do Antigo Testamento (cf. Hb
1,4-14), citando, entre outras, a expressão que acabamos de ler, tomada do Salmo 2, assim como uma frase parecida
do Segundo Livro de Samuel: “Eu
serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2Sm 7,14).
São palavras proféticas: Deus fala
a Davi do seu descendente. Porém, enquanto no contexto do Antigo Testamento
estas palavras pareciam referir-se apenas à filiação adotiva, em analogia à
paternidade e à filiação humanas, no Novo Testamento se desvela seu significado
autêntico e definitivo: elas falam do Filho que é da mesma natureza do Pai,
do Filho verdadeiramente gerado pelo Pai. E, portanto, falam
também da paternidade real de Deus, de uma paternidade à qual é própria a
geração do Filho, consubstancial ao Pai. Essas palavras falam de Deus, que é Pai
no sentido mais profundo e mais autêntico da palavra. Falam de Deus, que gera
eternamente o Verbo eterno, o Filho consubstancial ao Pai. Em relação a Ele
Deus é Pai no inefável mistério da sua divindade.
“Tu és o meu filho: Eu hoje te
gerei”.
O advérbio “hoje” fala da
eternidade. É o “hoje” da vida íntima de Deus, o “hoje” da eternidade, o “hoje”
da Santíssima e Inefável Trindade: Pai e Filho e Espírito Santo,
que é amor eterno e eternamente consubstancial ao Pai e ao Filho.
A paternidade de Deus (Viktor Vasnetsov) |
2. No Antigo Testamento, o mistério
da paternidade divina intratrinitária não havia sido ainda explicitamente
revelado. Não obstante, todo o contexto da antiga aliança é rico de alusões à
verdade da paternidade de Deus, tomada em sentido moral e analógico. Assim, Deus se
revela como Pai do seu povo, Israel, quando ordena a
Moisés que peça a sua libertação do Egito: “Assim diz o Senhor: Israel é meu filho,
meu primogênito. Por isso, Eu te ordeno que deixes ir o meu filho...” (Ex 4,22-23).
Esta, baseando-se na aliança, é uma
paternidade de eleição, que se fundamenta no mistério da criação. Diz Isaías: “Tu
és o nosso pai! Nós somos o barro, Te és o nosso oleiro! Todos nós somos obra das
tuas mãos” (Is 64,7).
Esta paternidade não se refere apenas
ao povo eleito, mas atinge todo homem e supera o vínculo existente com os pais
terrenos. Eis alguns textos: “Embora meu pai e minha mãe me tenham
abandonado, o Senhor, porém, me acolheu” (Sl 26/27,10). “Como um pai
se compadece dos filhos, assim se compadece o Senhor dos que o temem” (Sl 102/103,13).
“O Senhor corrige os que Ele ama, como um pai quer bem ao filho” (Pr 3,12).
Nos textos que citamos fica claro o caráter analógico da paternidade de
Deus-Senhor, ao qual se eleva a oração: “Não me abandones ao arbítrio deles
[dos inimigos], Senhor, Pai e Soberano de minha vida, nem permitas que eu caia
por sua causa. (...) Senhor, Pai e Deus da minha vida, não me abandones às suas
sugestões” (Eclo 23,1.4). No mesmo sentido diz-se também: “Se, de
fato, [o justo] é filho de Deus, Deus o defenderá e o livrará das mãos de seus
inimigos” (Sb 2,18).
3. A paternidade de Deus, seja em
relação a Israel seja em relação a cada homem, se manifesta no amor
misericordioso. Lemos, por exemplo, em Jeremias: “Chegam chorando, suplicantes
Eu os reconduzo... pois eu sou pai para Israel, e Efraim é meu primogênito” (Jr 31,9)
[1].
São numerosas as passagens do
Antigo Testamento que apresentam o amor misericordioso do Deus da aliança. Eis algumas:
“De todos tens compaixão, porque
tudo podes, e fechas os olhos aos pecados dos mortais, para que se arrependam.
(...) A todos, porém, tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor, amigo da
vida” (Sb 11,23.26).
“Com amor eterno Eu te amei, por
isso te atraí com misericórdia!” (Jr 31,3).
Em Isaías encontramos comoventes
testemunhos de cuidado e de afeto: “Sião vinha dizendo: ‘O Senhor me abandonou,
o Senhor esqueceu-se de mim’. Pode uma mulher esquecer-se de seu filhinho...? Mesmo
que ela se esquecesse, Eu, contudo, não me esquecerei de ti!” (Is 49,14-15;
cf. 54,10).
É significativo que nas passagens
do profeta Isaías a paternidade de Deus se enriquece com conotações que se
inspiram na maternidade (cf. Encíclica
Dives in misericordia, nota 52).
4. Na plenitude dos tempos messiânicos,
Jesus anuncia muitas vezes a paternidade de Deus em relação aos homens remetendo-se
às numerosas expressões contidas no Antigo Testamento. Assim se expressa a
propósito da Providência Divina para com as criaturas, especialmente
para com o homem: “vosso Pai celeste os alimenta...” (Mt 6,26; cf. Lc 12,24), “vosso
Pai celeste sabe que precisais de tudo isso” (Mt 6,32; cf. Lc 12,30). Jesus
trata de fazer compreender a misericórdia divina apresentando
como próprio de Deus o comportamento acolhedor do pai do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32); e
exorta àqueles que escutam a sua palavra: “Sede misericordiosos como vosso Pai
é misericordioso” (Lc 6,36).
Para terminar, podemos dizer que,
para Jesus, Deus não é apenas “o Pai de Israel”, “o Pai dos homens”, mas “o meu
Pai”.
Disto falaremos na próxima
Catequese.
15.
O mistério da paternidade divina
João Paulo II - 23 de outubro
de 1985
1. Na Catequese anterior percorremos,
ainda que rapidamente, alguns testemunhos do Antigo Testamento que preparavam a
acolher a plena revelação, anunciada por Jesus Cristo, da verdade do mistério
da paternidade de Deus.
Cristo, com efeito, falou muitas
vezes do seu Pai, apresentando de diversos modos sua providência e seu amor
misericordioso.
Mas o seu ensinamento vai além. Ouçamos
novamente as palavras particularmente solenes referidas pelo evangelista Mateus
(e paralelamente por Lucas): “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos”
e, em seguida: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão
o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar” (Mt 11,25.27; cf. Lc 10,21).
Para Jesus, pois, Deus não é apenas
“o Pai de Israel”, “o Pai dos homens”, mas “o
meu Pai!”. “Meu”:
precisamente por isto os judeus queriam matar Jesus, porque “dizia que Deus era
seu Pai” (Jo 5,18). “Seu” em sentido totalmente literal: Aquele a
quem somente o Filho conhece como Pai, e por quem apenas e reciprocamente é
conhecido. Encontramo-nos já sobre o mesmo terreno do qual, mais tarde, surgirá
o Prólogo do Evangelho de João.
2. O “meu Pai” é o Pai de Jesus
Cristo, Aquele que é a origem
do seu ser, da sua missão messiânica, do seu ensinamento. O evangelista
João transmitiu com abundância o ensinamento messiânico que nos permite sondar
em profundidade o mistério de Deus Pai e de Jesus Cristo, seu Filho Unigênito.
Jesus diz: “Quem crê em mim, não é
em mim que crê, mas n’Aquele que me enviou” (Jo 12,44). “Porque Eu
não falei por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, ordenou-me o que dizer e falar” (Jo 12,49).
“Em verdade, em verdade vos digo: o Filho não pode fazer nada por si mesmo, Ele
faz apenas o que vê o Pai
fazer. O que o Pai faz, o Filho o faz de modo semelhante” (Jo 5,19).
“Assim como o Pai possui a vida em si mesmo, do mesmo modo deu ao Filho
possuir a vida em si mesmo” (Jo 5,26). E, por fim: “Como o Pai, que
vive, me enviou, e Eu vivo pelo Pai...” (Jo 6,57).
O Filho vive pelo Pai antes de tudo porque foi gerado por
Ele. Há uma estreitíssima correlação entre a paternidade e a filiação
precisamente em virtude da geração: “Tu és o meu Filho, Eu hoje te gerei” (Hb 1,5).
Quando, nas proximidades de Cesareia de Filipe, Simão Pedro confessa: “Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo”, Jesus lhe responde: “Bem-aventurado és tu... porque não
foi carne e sangre que te revelaram isso, mas meu Pai...” (Mt 16,16-17),
porque só “o Pai conhece o Filho”, assim como só “o Filho conhece o Pai” (cf. Mt 11,27). Só o Filho dá
a conhecer o Pai: o Filho visível faz ver o Pai invisível. “Quem me viu,
viu o Pai” (Jo 14,9).
3. A leitura atenta dos Evangelhos
mostra que Jesus vive e atua em constante e fundamental referência ao
Pai. A Ele se dirige muitas vezes com a palavra cheia de amor filial: “Abbá”; também durante a oração no
Getsêmani esta mesma palavra volta aos seus lábios (cf. Mc 14,36 e paralelos). Quando os discípulos lhe
pedem que os ensine a rezar, Ele ensina o “Pai nosso” (cf. Mt 6,9-13). Depois da Ressurreição, no momento de
deixar a terra, parece referir-se mais uma vez a esta oração, quando diz: “Subo
para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17).
Assim, pois, por meio do Filho (cf. Hb 1,2), Deus é revelado na
plenitude do mistério da sua paternidade. Só o Filho poderia revelar esta
plenitude do mistério, porque só “o Filho conhece o Pai” (Mt 11,27).
“A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito, que está no seio do Pai, foi
quem o revelou” (Jo 1,18).
4. Quem é o Pai? À luz do
testemunho definitivo que nós recebemos por meio do Filho, Jesus Cristo,
temos a plena consciência da fé de que a paternidade de Deus pertence antes de
tudo ao mistério fundamental da vida íntima de Deus, ao
mistério trinitário. O Pai é Aquele que eternamente gera o Verbo, o
Filho a Ele consubstancial. Em união com o Filho, o Pai eternamente “expira” o
Espírito Santo, que é o amor com o qual o Pai e o Filho permanecem reciprocamente
unidos (cf. Jo 14,10).
O Pai, pois, é no mistério
trinitário o “princípio-sem-princípio”. “O Pai não foi feito por ninguém,
nem criado, nem gerado” (Símbolo Atanasiano ou “Quicumque”). É por si só o
princípio da vida, que Deus tem em Si mesmo. Esta vida - isto é, a
mesma divindade - o Pai a possui em absoluta comunhão com o Filho e com o
Espírito Santo, que são consubstanciais a Ele.
Paulo, Apóstolo do mistério de
Cristo, cai em adoração e oração “diante do Pai, de quem recebe o nome toda paternidade
no céu e na terra” (Ef 3,14-15), princípio e modelo.
De fato, há “um só Deus e Pai de
todos, acima de todos, no meio de todos e em todos” (Ef 4,6).
Ícone da paternidade de Deus (séc. XVII) |
Nota:
[1] Outra tradução: “Entre
consolações Eu os reconduzo...”.
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (16 de outubro e 23 de outubro de 1985).
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