terça-feira, 6 de setembro de 2022

Homilia do Papa: Beatificação de João Paulo I

Santa Missa e Beatificação do Papa João Paulo I
Homilia do Papa Francisco
Praça de São Pedro
XXIII Domingo do Tempo Comum, 04 de setembro de 2022

Jesus vai a caminho de Jerusalém e, como diz o Evangelho de hoje, «seguiam com Ele grandes multidões» (Lc 14,25). Caminhar com Ele significa segui-Lo, isto é, tornar-se discípulo. E, contudo, a estas pessoas o Senhor faz um discurso pouco atraente e muito exigente: não pode ser seu discípulo quem não O ama mais do que aos seus entes queridos, quem não carrega a sua cruz, quem não renuncia aos bens terrenos (vv. 26-27.33). Por que Jesus dirige tais palavras à multidão? Qual é o significado das suas advertências? Tentemos responder a estas questões.


Em primeiro lugar, vemos muitas pessoas, uma multidão numerosa que segue Jesus. Podemos imaginar que muitos ficaram fascinados pelas suas palavras e maravilhados com os gestos que realizava; e, por isso, terão visto n’Ele uma esperança para o próprio futuro. Que teria feito qualquer outro mestre de então, ou - podemos ainda interrogar-nos - que faria um líder astuto ao ver que as suas palavras e o seu carisma atraíam as multidões e faziam crescer o consenso no seio delas? Como sucede hoje, especialmente nos momentos de crise pessoal e social em que estamos mais expostos a sentimentos de ira ou temos medo de qualquer coisa que ameaça o nosso futuro, ficamos mais vulneráveis e assim, na onda da emoção, confiamo-nos a quem com sagacidade e astúcia sabe manejar esta situação, aproveitando-se dos temores da sociedade e prometendo ser o «salvador» que resolverá os problemas, quando, na realidade, o que deseja é aumentar a sua popularidade e o próprio poder, a sua própria imagem, a própria capacidade de controlar as coisas.

O Evangelho diz-nos que Jesus não procede assim. O estilo de Deus é diferente. É importante compreender o estilo de Deus, compreender como age Deus. Deus age segundo um estilo, e o estilo de Deus é diferente do estilo de tais pessoas, porque Ele não instrumentaliza as nossas necessidades, nunca Se aproveita das nossas fraquezas para engrandecer a Si mesmo. A Ele, que não nos quer seduzir com o engano nem quer distribuir alegrias fáceis, não interessam as multidões oceânicas. Não tem a paixão dos números, não busca consensos, nem é um idólatra do sucesso pessoal. Pelo contrário, parece preocupar-Se quando as pessoas O seguem com euforia e fáceis entusiasmos. Assim, em vez de Se deixar atrair pelo fascínio da popularidade - porque a popularidade fascina -, pede a cada um para discernir cuidadosamente os motivos por que O segue e as consequências que isso acarreta. De fato, naquela multidão havia muitos que talvez seguissem Jesus, porque esperavam que Ele fosse um chefe que os libertaria dos inimigos, alguém que conquistaria o poder e o partilharia com eles; ou então alguém que, realizando milagres, resolveria os problemas da fome e das doenças. Com efeito, pode-se seguir o Senhor por várias razões, e algumas destas - temos que admitir - são mundanas: por trás de uma fachada religiosa perfeita pode-se esconder a mera satisfação das próprias necessidades, a busca do prestígio pessoal, o desejo de aceder a um cargo, de ter as coisas sob controle, o desejo de ocupar espaço e obter privilégios, a aspiração de receber reconhecimentos, e muito mais. Ainda hoje sucede isto entre os cristãos. Mas este não é o estilo de Jesus; nem pode ser o estilo do discípulo e da Igreja. Se alguém segue Cristo movido por tais interesses pessoais, enganou-se no caminho.

O Senhor pede um comportamento diferente: segui-Lo não significa entrar na corte, nem participar em um cortejo triunfal, nem mesmo garantir-se um seguro de vida. Pelo contrário, significa «tomar a própria cruz» (Lc 14,27): como Ele, carregar os pesos próprios e os pesos alheios, fazer da vida um dom, não uma posse, gastá-la imitando o amor magnânimo e misericordioso que Ele tem por nós. Trata-se de opções que comprometem a totalidade da existência; por isso, Jesus deseja que o discípulo nada anteponha a este amor, nem sequer os afetos mais queridos ou os bens maiores.

Para consegui-lo, porém, é preciso olhar mais para Ele do que para nós mesmos, aprender o amor que brota do Crucificado. N’Ele vemos um amor que se dá até ao fim, sem medida nem fronteiras. A medida do amor é amar sem medida. Nós mesmos - dizia o Papa Luciani - «somos objeto, da parte de Deus, de um amor que não se apaga» (Ângelus, 10 de setembro de 1978). Não se apaga: nunca se eclipsa da nossa vida, resplandece sobre nós e ilumina até as noites mais escuras. Ora, olhando para o Crucificado, somos chamados às alturas daquele amor: somos chamados a purificar-nos das nossas ideias erradas sobre Deus e dos nossos fechamentos, a amá-Lo a Ele e aos outros, na Igreja e na sociedade, incluindo aqueles que não pensam como nós e até os próprios inimigos.

Amar, ainda que custe a cruz do sacrifício, do silêncio, da incompreensão, da solidão, da contrariedade e da perseguição. Amar assim, inclusive a este preço, porque - dizia o Beato João Paulo I - se queres beijar Jesus crucificado, «não o podes fazer sem te debruçares sobre a cruz e deixar que te fira algum espinho da coroa, que está na cabeça do Senhor» (Audiência Geral, 27 de setembro de 1978). O amor até ao extremo, com todos os seus espinhos: e não as coisas pela metade, as acomodações ou a vida tranquila. Se não apontarmos para o alto, se não arriscarmos, se nos contentarmos com uma fé superficial, somos - diz Jesus - como quem deseja construir uma torre, mas não calculou bem os meios para fazê-la: «assenta os alicerces» e, depois, «não é capaz de acabar» (Lc 14,29). Se, por medo de nos perdermos, renunciamos a dar-nos, deixamos inacabadas as coisas - os relacionamentos, o trabalho, as responsabilidades que nos estão confiadas, os sonhos, e até a fé -, então acabamos por viver pela metade. E quantas pessoas vivem pela metade! Também nós muitas vezes temos a tentação de viver pela metade, sem nunca dar o passo decisivo (isto é viver pela metade), sem levantar voo, sem arriscar pelo bem, sem nos empenharmos verdadeiramente pelos outros. Jesus pede-nos isto: vive o Evangelho e viverás a vida, não pela metade, mas até ao fundo. Vive o Evangelho, vive a vida, sem concessões.

Irmãos, irmãs, o novo Beato viveu assim: na alegria do Evangelho, sem concessões, amando até ao extremo. Encarnou a pobreza do discípulo, que não é apenas desapegar-se dos bens materiais, mas sobretudo vencer a tentação de colocar a mim mesmo no centro e procurar a própria glória. Ao contrário, seguindo o exemplo de Jesus, foi pastor manso e humilde. Considerava-se a si mesmo como o pó sobre o qual Deus Se dignara escrever (cf. Albino Luciani - João Paulo I, Opera Omnia, Pádua, 1988, vol. II, 11). Nesta linha, exclamava: «O Senhor tanto recomendou: sede humildes! Mesmo que tenhais feito grandes coisas, dizei: “somos servos inúteis”» (Audiência Geral, 06 de setembro de 1978).

Com o sorriso, o Papa Luciani conseguiu transmitir a bondade do Senhor. É bela uma Igreja com o rosto alegre, o rosto sereno, o rosto sorridente, uma Igreja que nunca fecha as portas, que não exacerba os corações, que não se lamenta nem guarda ressentimentos, que não é irritada nem impaciente, não se apresenta com modos rudes, nem padece de saudades do passado, caindo no saudosismo. Rezemos a este nosso pai e irmão e peçamos-lhe que nos obtenha «o sorriso da alma», um sorriso transparente, que não engana: o sorriso da alma. Servindo-nos das suas palavras, peçamos o que ele mesmo costumava pedir: «Senhor, aceitai-me como sou, com os meus defeitos, com as minhas faltas, mas fazei que me torne como Vós desejais» (Audiência Geral, 13 de setembro de 1978). Amém.


Fonte: Santa Sé.

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