Uma vez que “a paternidade e a filiação divinas estão em estreita correlação”, dentro de suas Catequeses sobre Deus Pai o Papa São João Paulo II dedicou duas reflexões à Pessoa do Filho (nn. 16-17).
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
16.
O Filho
João Paulo II - 30 de outubro
de 1985
1. “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso... Creio em um só
Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os
séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado,
não criado, consubstancial ao Pai...”.
Com estas palavras do Símbolo Niceno-Constantinopolitano,
expressão sintética dos Concílios de Niceia e Constantinopla, que explicitaram
a doutrina trinitária da Igreja, nós professamos a fé no Filho de Deus.
Aproximamo-nos assim ao mistério
de Jesus Cristo, o qual também hoje, como nos séculos passados, interpela e
interroga aos homens com as suas palavras e com as suas obras. Os cristãos, animados
pela fé, mostram-lhe amor e devoção. Mas não faltam mesmo entre os não-cristãos
aqueles que sinceramente o admiram.
Onde, pois, reside o segredo da
atração que Jesus de Nazaré exerce? A busca da plena identidade de Jesus Cristo
ocupou desde as origens o coração e a inteligência da Igreja, que o proclama
Filho de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
2. Deus, que repetidamente falou
“pelos profetas” e ultimamente “por meio do Filho”, como diz a Carta aos Hebreus (Hb 1,1-2), revelou-se como Pai de um Filho eterno e consubstancial.
Jesus, por sua vez, revelando a paternidade de Deus, deu a conhecer também a sua
filiação divina. A paternidade e a filiação divinas estão em estreita
correlação dentro do mistério de Deus uno e trino. “Porque uma é a Pessoa do
Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma só é a divindade do
Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, igual a glória e co-eterna a majestade...
O Filho não foi feito, nem criado, mas gerado pelo Pai” (Símbolo Atanasiano ou “Quicumque”).
3. Jesus de Nazaré, que exclama: “Eu
te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos
sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos”, afirma em seguida com
solenidade: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai,
senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,25.27).
O Filho, que veio ao mundo para “revelar
o Pai” assim como Ele o conhece, revelou ao mesmo tempo a Si mesmo como
Filho, assim como é conhecido só pelo Pai. Tal revelação estava sustentada
pela consciência com a qual, já na adolescência, Jesus fez notar a Maria e a
José que “devia ocupar-se das coisas do seu Pai” (cf. Lc 2,49). A sua palavra reveladora foi além
disso validada pelo testemunho do Pai, especialmente em circunstâncias
decisivas, como durante o Batismo no Jordão, quando os presentes ouviram a voz
misteriosa: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu me agrado” (Mt 3,17),
ou como durante a Transfiguração sobre o monte (cf. Mc 9,7).
4. A missão de Jesus Cristo, de
revelar o Pai manifestando-se como Filho, não estava isenta de dificuldades. Ele
devia, com efeito, superar os obstáculos derivados da mentalidade estritamente monoteísta dos
ouvintes, formada através do ensinamento do Antigo Testamento na fidelidade à
tradição, a qual remontava a Abraão e a Moisés, e na luta contra o politeísmo. Nos
Evangelhos, especialmente no de João, encontramos muitos traços desta dificuldade
que Jesus Cristo soube superar com sabedoria, apresentando com suma pedagogia aqueles
sinais de revelação aos quais se deixaram abrir os discípulos bem dispostos.
Jesus falava aos seus ouvintes de
modo claro e inequívoco: “O Pai, que me enviou, dá testemunho em
meu favor” (Jo 8,18). E à pergunta:
“Onde está o teu Pai?”, respondia: “Vós não conheceis nem a mim, nem a meu Pai.
Se conhecêsseis a mim, conheceríeis também a meu Pai...” (v. 19). “Eu falo
do que vi junto do Pai...” (v. 38). Aos ouvintes, pois, que o objetavam: “Temos
um só Pai, Deus...”, Ele rebatia: “Se Deus fosse vosso Pai, certamente me
amaríeis, pois é da parte de Deus que Eu saí e vim... foi Ele que me enviou...
Em verdade, em verdade vos digo: Antes que Abraão existisse, Eu sou”
(vv. 42.58).
5. Cristo diz: “Eu sou”, assim
como séculos antes, aos pés do monte Horeb, Deus havia dito a Moisés, que lhe
preguntava o seu nome: “Eu sou Aquele que sou” (cf. Ex 3,14). As palavras de Cristo: “Antes que
Abraão existisse, Eu sou”, provocaram a reação violenta dos ouvintes que “procuravam
matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus
era seu Pai, fazendo-se igual a Deus” (Jo 5,18). Jesus, com
efeito, não se limitava a dizer: “Meu Pai trabalha até agora, e Eu também
trabalho” (Jo 5,17), mas inclusive proclamava: “Eu e o Pai somos um”
(Jo 10,30).
Nos dias dramáticos que concluem a
sua vida, Jesus é arrastado ao tribunal do Sinédrio, onde o próprio Sumo
Sacerdote lhe dirige a pergunta-imputação: “Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que
nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Mt 26,63). Jesus responde:
“Tu o disseste” (v. 64).
A tragédia se consuma e contra Jesus
é pronunciada a sentença de morte.
Cristo, revelador do Pai e revelador
de Si mesmo como Filho do Pai, é morto porque até o fim deu testemunho da
verdade sobre sua filiação divina.
Com o coração cheio de amor nós
queremos repetir-lhe também hoje, com o Apóstolo Pedro, o testemunho da nossa
fé: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16).
17.
O Filho, Deus-Verbo
João Paulo II - 06 de novembro
de 1985
1. Na Catequese anterior consideramos
como Jesus Cristo, revelador do Pai, manifestou ao mesmo tempo a Si mesmo como
Filho consubstancial ao Pai.
Baseando-se no testemunho dado por
Cristo, a Igreja professa e anuncia a sua fé em
Deus-Filho com as palavras do Símbolo Niceno-Constantinopolitano: “Deus
de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado,
consubstancial ao Pai...”.
Esta é uma verdade de fé anunciada
pela própria palavra de Cristo, selada com seu sangue derramado na Cruz,
ratificada por sua Ressurreição, atestada pelo ensinamento dos Apóstolos e
transmitida pelos escritos do Novo Testamento.
Cristo afirma: “Antes que Abraão
existisse, Eu sou” (Jo 8,58). Não diz: “Eu era”, mas “Eu sou”, isto
é, desde sempre, em um eterno presente. O Apóstolo João, no Prólogo
do seu Evangelho, escreve: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava
com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo
foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que foi feito” (Jo 1,1-3)
[1]. Portanto, aquele “antes de Abraão”, no contexto da polêmica de Jesus com
os herdeiros da tradição de Israel, que apelavam a Abraão, significa: “muito
antes de Abraão”, e se ilumina nas palavras do Prólogo do quarto Evangelho: “No
princípio estava com Deus”, isto é, na eternidade que é própria só de Deus: na
eternidade comum com o Pai e com o Espírito Santo. Com efeito, o Símbolo
Atanasiano ou “Quicumque” proclama: “E
nesta Trindade não há nem mais antigo nem menos
antigo, nem maior nem menor, mas, as três Pessoas são coeternas e iguais entre
si”.
2. Segundo o Evangelho de João, o Filho-Verbo estava no princípio com Deus, e o
Verbo era Deus (cf. Jo 1,1-2).
Encontramos o mesmo conceito no ensinamento apostólico. Com efeito, lemos na Carta aos Hebreus que Deus constituiu o Filho “herdeiro de todas as
coisas e pelo qual também criou o universo. Ele é o resplendor da glória do
Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta todas as coisas com sua palavra
poderosa” (Hb 1,2-3). E Paulo, na Carta aos Colossenses, escreve: “Ele é a imagem do Deus invisível, o
primogênito de toda a criação” (Cl 1,15).
Portanto, segundo o ensinamento
apostólico, o Filho é da mesma natureza do Pai, dado que é o Deus-Verbo. Neste
Verbo e por meio d’Ele tudo foi feito, foi criado o universo. Antes da criação,
antes do início de “todas as coisas visíveis e invisíveis”, o Verbo tem em
comum com o Pai o Ser eterno e a Vida divina, sendo “resplendor da sua glória”
e “expressão do seu ser” (cf. Hb 1,3).
Neste Princípio sem princípio o Verbo é o Filho, porque é eternamente
gerado pelo Pai. O Novo Testamento nos revela este mistério, para nós incompreensível,
de um Deus que é Uno e Trino: eis que, na unidade ontológica e absoluta da sua
essência, Deus é eternamente e sem princípio,, o Pai que gera
o Verbo e o Filho, gerado como Verbo do Pai.
3. Esta eterna geração do Filho é
uma verdade de fé proclamada e definida pela Igreja muitas vezes
(não só em Niceia e em Constantinopla, mas também em outros Concílios, por exemplo,
no IV Concílio Lateranense de 1215), perscrutada e também explicada
pelos Padres e pelos teólogos, naturalmente enquanto a inescrutável realidade
de Deus pode ser captada com nossos conceitos humanos, sempre inadequados. Esta
explicação é resumida no Catecismo do
Concílio de Trento, que sentencia muito exatamente: “é tão grande a infinita
fecundidade de Deus que, conhecendo a Si mesmo, gera o Filho
idêntico e igual”.
Com efeito, é certo que esta geração
eterna em Deus é de natureza absolutamente espiritual, porque “Deus
é Espírito” (cf. Jo 4,24). Por analogia
com o processo gnosiológico da mente humana, pelo qual o homem, conhecendo-se,
produz uma imagem de si mesmo, uma ideia, um “conceito”, isto é, uma “ideia
concebida”, que do latino “verbum” é chamada muitas vezes “verbo interior”, nós ousamos
pensar na geração do Filho, o
“conceito” eterno e Verbo interior de Deus. Deus, conhecendo a Si mesmo, gera o
Verbo-Filho, que é Deus como o Pai. Neste gerar, Deus é ao mesmo tempo Pai,
como Aquele que gera, e Filho, como Aquele que é gerado, na suprema identidade
da Divindade, que exclui uma pluralidade de “deuses”. O Verbo é o Filho da
mesma natureza do Pai e é com Ele o Deus único da revelação do Antigo e do Novo
Testamento.
4. Tal exposição do
mistério da vida íntima de Deus, inescrutável para nós, está contida em toda a
tradição cristã. Se a geração divina é verdade de fé, contida diretamente na
Revelação e definida pela Igreja, podemos dizer que a explicação que dela dão
os Padres e Doutores da Igreja é uma doutrina teológica bem fundada e
segura.
Mas com ela não podemos pretender
eliminar as obscuridades que envolvem, diante da nossa mente, Aquele que
“habita em uma luz inacessível” (1Tm 6,16). Precisamente porque o intelecto
humano não está em condição de compreender a Essência divina, não pode penetrar
no mistério da vida íntima de Deus. Com particular razão se pode aplicar aqui a
frase: “Se o compreendes, não é Deus”.
E, no entanto, a Revelação nos faz
conhecer os termos essenciais do mistério, nos dá sua enunciação e nos faz saboreá-lo
muito acima de toda compreensão comum, na expectativa e em preparação para a
visão celeste. Cremos, pois, que “o Verbo era Deus” (Jo 1,1), “se fez
carne e habitou entre nós” (v. 14), e “a quantos o receberam, deu-lhes poder de
se tornarem filhos de Deus” (v. 12).
Cremos no Filho “Unigênito, que está no seio do Pai” (v. 18), e que, deixando a
terra, prometeu “preparar-nos um lugar” (Jo 14,2) na glória de Deus,
como filhos adotivos e seus irmãos (cf. Rm
8,15; Gl 4,5; Ef 1,5).
Ícone de Jesus Cristo como o Emmanuel, Filho Unigênito do Pai |
Nota:
[1] A tradução da Bíblia publicada pela CNBB, que estamos
utilizando nestas postagens, usa “Palavra” ao invés de “Verbo”. Porém, uma vez
que São João Paulo II se refere ao “Verbo”, utilizamos este termo [Nota do autor deste blog].
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (30 de outubro e 06 de novembro de 1985).
Nenhum comentário:
Postar um comentário