Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Um dia para comungar, um programa a cumprir
Celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de
Cristo, geralmente chamada entre nós “Corpo de Deus”. Já estas designações são
imensas, no significado e na consequência.
“Corpo e Sangue”, no tempo de Jesus, significavam o que a
palavra “pessoa” quis dizer depois e quer dizer agora. O ser na respectiva
integralidade, vivo e convivente, tanto na intimidade como na expressão. É
Cristo que continua conosco, no corpo ressuscitado que o torna presente em toda
a parte, no sacramento em que realmente se oferece e na comunidade que forma
com os que o recebem. Bento XVI lembrou-nos que «a antiguidade cristã designava
com as mesmas palavras - Corpus Christi
- o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de
Cristo» (Sacramentum Caritatis, 15).
Assim mesmo o sentiram muitos cristãos durante a pandemia
que nos chegou. Impedidos como estavam de participar na assembleia eucarística
e de receber a hóstia consagrada, não deixaram de comungar espiritualmente, com
inteira verdade e bom fruto. Foi a caridade que levou Cristo ao sacrifício de
que a Eucaristia é sacramento. É a caridade de Cristo que leva os seus
discípulos ao que for necessário para o maior bem dos outros. Neste caso, a
abstenção é comunhão.
Também o cuidado que tivermos para não sermos contagiados,
nem contagiar os outros, é comunhão verdadeira, consequente e necessária.
Cuidado a manter, para «não cantarmos vitória antes de tempo», como nos lembrou
o Papa Francisco no passado Domingo, e acrescentando: «Continua a ser necessário
seguir com cuidado as normas vigentes, porque são normas que nos ajudam a evitar
que o vírus ganhe força».
Foi e continua a ser difícil tanto resguardo, que nos tolhe
a natural necessidade de comunicar diretamente com os outros. As possibilidades
mediáticas de que dispomos – para quem realmente as tenha e saiba usar – ajudam
a prosseguir doutro modo o trabalho, a escolaridade, os contatos em geral. Mas
não conseguem dispensar a relação próxima e espontânea que a nossa
corporalidade requer. Precisamos ver e ser vistos, ouvir e ser ouvidos, tocar e
ser tocados. O próprio Deus nos quis chegar assim, na corporalidade humana que
em Jesus Cristo teve. Se hoje nos resguardamos a bem dos outros, é para melhor
nos recuperamos amanhã, em convivência mais segura.
E com melhores práticas também, mais respeitadoras de todos
e de tudo. Como insiste o Papa, evocando São Francisco de Assis: «O seu
testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para
categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos
põem em contacto com a essência do ser humano. […] A sua reação ultrapassava de
longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo econômico, porque, para ele,
qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso,
sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe» (Laudato si’, 10-11).
Hoje não poderemos sair em procissão. Mas o Corpo de Cristo
continuará a oferecer-se, por nós que o comungamos e à cidade que edificamos,
no cuidado comum. Conosco, forma um só corpo e conosco chegará aonde formos.
Ouvimos há pouco a São Paulo: «Visto que há um só pão, nós, embora sejamos
muitos, formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão». É pão de todos
para todos, mesmo que recebido por alguns. Graças são encargos.
Biblicamente, o pão ganhou um sentido total, de alimento
corporal e espiritual. Assim escutamos no trecho do Deuteronômio, lembrando o
maná que sustentara o povo no deserto, mas também a palavra divina, para saciar
ainda mais: «[O Senhor teu Deus] atribulou-te e fez-te passar fome, mas deu-te
a comer o maná que não conhecias nem teus pais haviam conhecido, para te fazer
compreender que o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai boca
do Senhor».
A revelação bíblica prossegue sempre neste sentido, duma
espiritualização verdadeira, que nunca se desliga do mais concreto, necessário
e urgente. Por isso é tão corpórea, exigindo correspondência ao outro que pede
e reclama. Todo o corporal é relacional. Por isso a palavra transmuda o pão em
sacramento e o sacramento gera vida.
Em Cristo, a palavra divina encarna e faz-se pão da vida,
palavra que alimenta. Ouvimo-lo no Evangelho: «Assim como o Pai, que vive, me
enviou, e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come viverá por mim. Este é o
pão que desceu do Céu; não é como aquele que os vossos pais comeram; quem comer
deste pão viverá eternamente».
Viver eternamente é viver comunitariamente, porque Deus é
amor e amor é ser com os outros e para os outros. É amor expansivo e envio
missionário, como a própria palavra “missa” (= enviada) significa, pois nos
envia com Cristo para o Pai e nos envia com Cristo para o mundo. Ouvimo-lo
agora: «Assim como o Pai, que vive, me enviou…». Sentir-se amado é saber-se
enviado.
Escreveu-o também o Papa Francisco, num trecho que temos
retomado no nosso caminho sinodal de Lisboa e quase devíamos saber de cor e
afixar nos nossos espaços: «A comunidade é chamada a criar aquele “espaço
teologal onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado”
(S. João Paulo II). Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia
torna-nos mais irmãos e vai nos transformando pouco a pouco em comunidade santa
e missionária» (Gaudete et Exsultate,
142).
Quem diria, dois mil anos atrás, que naquele pequeno grupo,
aliás perseguido, discretamente reunido para partilhar Cristo, palavra escutada
e pão oferecido, fermentava a comunhão mais ampla que incluiria depois tantos
povos e culturas, apesar de tudo e, por vezes, apesar de nós?
O segredo foi e continua a ser o mesmo. Disse-o São João
Paulo II, numa síntese perfeita: «A Igreja tira a força espiritual de que
necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz
na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a
Eucaristia apresenta-se como fonte e simultaneamente vértice de toda a
evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n’Ele,
com o Pai e com o Espírito Santo» (Ecclesia
de Eucharistia, 22).
Não sairemos hoje em procissão, ostentando o Santíssimo
Sacramento pelas ruas da cidade. Mas sairemos nós depois, no caminho habitual
de cada dia, como corpo eclesial de Cristo, transbordando o sacramento
recebido, em palavras e gestos de comunhão também. Como o Pai nos oferece
Cristo, também Cristo se oferece em nós, pelo mesmo Espírito. Há muitos lugares
onde mostrar a divina eficácia do sacramento recebido, com gestos precisos de
caridade autêntica.
É igualmente dia de adoração. Adorar significa acolher
profundamente «toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4,4), como Cristo
repetiu. Recordo a propósito e para concluir estas palavras do Papa Francisco,
tão estimulantes como são: «Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de
joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à
frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa
vida e nos envie para comunicar a sua vida nova!» (Evangelli Gaudium, 264).
Um dia especial para comungar e um programa para continuar a
cumprir!
Sé de Lisboa,
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, 11 de junho de 2020.
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
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