sábado, 13 de junho de 2020

Corpus Christi em Lisboa: Homilia

Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Um dia para comungar, um programa a cumprir

Celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, geralmente chamada entre nós “Corpo de Deus”. Já estas designações são imensas, no significado e na consequência.
“Corpo e Sangue”, no tempo de Jesus, significavam o que a palavra “pessoa” quis dizer depois e quer dizer agora. O ser na respectiva integralidade, vivo e convivente, tanto na intimidade como na expressão. É Cristo que continua conosco, no corpo ressuscitado que o torna presente em toda a parte, no sacramento em que realmente se oferece e na comunidade que forma com os que o recebem. Bento XVI lembrou-nos que «a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras - Corpus Christi - o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo» (Sacramentum Caritatis, 15).
Assim mesmo o sentiram muitos cristãos durante a pandemia que nos chegou. Impedidos como estavam de participar na assembleia eucarística e de receber a hóstia consagrada, não deixaram de comungar espiritualmente, com inteira verdade e bom fruto. Foi a caridade que levou Cristo ao sacrifício de que a Eucaristia é sacramento. É a caridade de Cristo que leva os seus discípulos ao que for necessário para o maior bem dos outros. Neste caso, a abstenção é comunhão.
Também o cuidado que tivermos para não sermos contagiados, nem contagiar os outros, é comunhão verdadeira, consequente e necessária. Cuidado a manter, para «não cantarmos vitória antes de tempo», como nos lembrou o Papa Francisco no passado Domingo, e acrescentando: «Continua a ser necessário seguir com cuidado as normas vigentes, porque são normas que nos ajudam a evitar que o vírus ganhe força».
Foi e continua a ser difícil tanto resguardo, que nos tolhe a natural necessidade de comunicar diretamente com os outros. As possibilidades mediáticas de que dispomos – para quem realmente as tenha e saiba usar – ajudam a prosseguir doutro modo o trabalho, a escolaridade, os contatos em geral. Mas não conseguem dispensar a relação próxima e espontânea que a nossa corporalidade requer. Precisamos ver e ser vistos, ouvir e ser ouvidos, tocar e ser tocados. O próprio Deus nos quis chegar assim, na corporalidade humana que em Jesus Cristo teve. Se hoje nos resguardamos a bem dos outros, é para melhor nos recuperamos amanhã, em convivência mais segura.
E com melhores práticas também, mais respeitadoras de todos e de tudo. Como insiste o Papa, evocando São Francisco de Assis: «O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano. […] A sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo econômico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe» (Laudato si’, 10-11).

Hoje não poderemos sair em procissão. Mas o Corpo de Cristo continuará a oferecer-se, por nós que o comungamos e à cidade que edificamos, no cuidado comum. Conosco, forma um só corpo e conosco chegará aonde formos. Ouvimos há pouco a São Paulo: «Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão». É pão de todos para todos, mesmo que recebido por alguns. Graças são encargos.
Biblicamente, o pão ganhou um sentido total, de alimento corporal e espiritual. Assim escutamos no trecho do Deuteronômio, lembrando o maná que sustentara o povo no deserto, mas também a palavra divina, para saciar ainda mais: «[O Senhor teu Deus] atribulou-te e fez-te passar fome, mas deu-te a comer o maná que não conhecias nem teus pais haviam conhecido, para te fazer compreender que o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai boca do Senhor».
A revelação bíblica prossegue sempre neste sentido, duma espiritualização verdadeira, que nunca se desliga do mais concreto, necessário e urgente. Por isso é tão corpórea, exigindo correspondência ao outro que pede e reclama. Todo o corporal é relacional. Por isso a palavra transmuda o pão em sacramento e o sacramento gera vida.               
Em Cristo, a palavra divina encarna e faz-se pão da vida, palavra que alimenta. Ouvimo-lo no Evangelho: «Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, também aquele que me come viverá por mim. Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os vossos pais comeram; quem comer deste pão viverá eternamente».
Viver eternamente é viver comunitariamente, porque Deus é amor e amor é ser com os outros e para os outros. É amor expansivo e envio missionário, como a própria palavra “missa” (= enviada) significa, pois nos envia com Cristo para o Pai e nos envia com Cristo para o mundo. Ouvimo-lo agora: «Assim como o Pai, que vive, me enviou…». Sentir-se amado é saber-se enviado.
Escreveu-o também o Papa Francisco, num trecho que temos retomado no nosso caminho sinodal de Lisboa e quase devíamos saber de cor e afixar nos nossos espaços: «A comunidade é chamada a criar aquele “espaço teologal onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado” (S. João Paulo II). Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária» (Gaudete et Exsultate, 142).

Quem diria, dois mil anos atrás, que naquele pequeno grupo, aliás perseguido, discretamente reunido para partilhar Cristo, palavra escutada e pão oferecido, fermentava a comunhão mais ampla que incluiria depois tantos povos e culturas, apesar de tudo e, por vezes, apesar de nós?
O segredo foi e continua a ser o mesmo. Disse-o São João Paulo II, numa síntese perfeita: «A Igreja tira a força espiritual de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a Eucaristia apresenta-se como fonte e simultaneamente vértice de toda a evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n’Ele, com o Pai e com o Espírito Santo» (Ecclesia de Eucharistia, 22).
Não sairemos hoje em procissão, ostentando o Santíssimo Sacramento pelas ruas da cidade. Mas sairemos nós depois, no caminho habitual de cada dia, como corpo eclesial de Cristo, transbordando o sacramento recebido, em palavras e gestos de comunhão também. Como o Pai nos oferece Cristo, também Cristo se oferece em nós, pelo mesmo Espírito. Há muitos lugares onde mostrar a divina eficácia do sacramento recebido, com gestos precisos de caridade autêntica.
É igualmente dia de adoração. Adorar significa acolher profundamente «toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4,4), como Cristo repetiu. Recordo a propósito e para concluir estas palavras do Papa Francisco, tão estimulantes como são: «Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova!» (Evangelli Gaudium, 264).
Um dia especial para comungar e um programa para continuar a cumprir!

Sé de Lisboa, Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, 11 de junho de 2020.

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


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