Pe. Raniero Cantalamessa, OFM
Cap
Celebração da Paixão
do Senhor
16 de abril de 2017
O CRUX, AVE SPES UNICA”
(A cruz, única esperança do mundo)
"Escutamos
a narrativa da Paixão de Cristo. Trata-se, essencialmente, do relato de uma
morte violenta. Notícias de mortes, e mortes violentas, quase nunca faltam nos
noticiários vespertinos. Também nestes últimos dias, temos escutado tais
notícias, como a dos 38 cristãos coptas assassinados no Egito no Domingo de
Ramos. Estas notícias se sucedem com tal rapidez, que nos fazem esquecer, a
cada noite, as do dia anterior. Por que, então, após 2000 anos, o mundo ainda
recorda, como se tivesse acontecido ontem, a morte de Cristo? É que esta morte
mudou para sempre o rosto da morte; ela deu um novo sentido à morte de cada ser
humano. Sobre ela, reflitamos por um momento.
"Chegando,
porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos
soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e
água" (Jo 19, 33-34). No início do seu ministério, àqueles que lhe
perguntavam com qual autoridade ele expulsava os vendedores do templo, Jesus
disse: "Destruí este templo e em três dias eu o levantarei".
"Ele falava do templo do seu corpo" (Jo 2, 19. 21), havia comentado
João naquela ocasião, e eis que agora o próprio evangelista nos diz que do lado
deste templo "destruído" jorram água e sangue. É uma clara alusão à
profecia de Ezequiel que falava do futuro templo de Deus, daquele lado do qual
jorra um fio de água que se torna primeiro um riacho, depois um rio navegável,
em torno do qual floresce toda forma de vida.
Mas, penetremos
no epicentro da fonte deste “rio de água viva” (Jo 7, 38), no coração
trespassado de Cristo. No Apocalipse, o mesmo discípulo que Jesus amava
escreve: "Com efeito, entre o trono com os quatro Viventes e os Anciãos,
vi um Cordeiro de pé, como que imolado” (Ap 5, 6). Imolado, mas de pé, ou seja,
trespassado, mas ressuscitado e vivo.
Existe agora,
dentro da Trindade e dentro do mundo, um coração humano que bate, não só metaforicamente,
mas realmente. Se, de fato, Cristo ressuscitou dentre os mortos, também o seu
coração ressuscitou dentre os mortos; este coração vive, como todo o resto do
seu corpo, em uma dimensão diferente da primeira, real, embora mística. Se o
Cordeiro vive no céu "imolado, mas de pé”, também o seu coração
compartilha o mesmo estado; é um coração trespassado, mas vivente; eternamente
trespassado, precisamente porque eternamente vivente.
Há uma expressão
que foi criada justamente para descrever a profundidade da maldade que pode
aglutinar-se no seio da humanidade: “coração de trevas”. Depois do sacrifício
de Cristo, mais profundo do que o coração de trevas, palpita no mundo um
coração de luz. Cristo, de fato, subindo ao céu, não abandonou a terra, assim como,
encarnando-se, não tinha abandonado a Trindade.
"Agora
cumpre-se o plano do Pai – diz uma antífona da Liturgia das horas – , fazer de
Cristo o coração do mundo”. Isso explica o irredutível otimismo cristão que fez
uma mística medieval exclamar: "O pecado é inevitável, mas tudo ficará bem
e todo tipo de coisa ficará bem " (Juliana de Norwich).
* * *
Os monges
cartuxos adotaram um lema que aparece na entrada de seus mosteiros, nos seus
documentos oficiais e em outras ocasiões. Nele está representado o globo
terrestre encimado por uma cruz, rodeado pela inscrição: "Stat crux dum
volvitur orbis": A Cruz permanece intacta enquanto o Mundo dá sua órbita.
O que é a cruz,
para ser esse ponto fixo, este mastro, no meio dos balanços do mundo"? Ela
é o "Não" definitivo e irreversível de Deus à violência, à injustiça,
ao ódio, à mentira, a tudo aquilo que nós chamamos de “mal”; e é ao mesmo tempo
o “Sim” também irreversível ao amor, à verdade, ao bem. “Não” ao pecado, “Sim”
ao pecador. É o que Jesus praticou em toda a sua vida e que agora consagra
definitivamente com a sua morte.
A razão para
esta distinção é clara: o pecador é criatura de Deus e mantém a sua dignidade,
apesar de todos os seus desvios; o pecado não; este, é uma realidade espúria,
adendo, fruto das próprias paixões e da “inveja do demônio” (Sb 2, 24). É a
mesma razão pela qual o Verbo, encarnando-se, assumiu todo do homem, exceto o
pecado. O bom ladrão, a quem Jesus moribundo promete o paraíso, é a prova viva
de tudo isso. Ninguém deve se desesperar; ninguém deve dizer, como Caim:
"Muito grande é a minha culpa para obter o perdão" (Gn 4, 13).
A cruz não
"está", portanto, contra o mundo, mas pelo mundo: para dar um sentido
a todo o sofrimento que houve, que há e que haverá na história humana.
"Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo – diz Jesus a
Nicodemos –, mas para que o mundo seja salvo por Ele" (Jo 3, 17). A cruz é
a proclamação viva de que a vitória final não é de quem triunfa sobre os
outros, mas de quem triunfa sobre si mesmo; não daqueles que causam sofrimento,
mas daqueles que sofrem.
* * *
"Dum
volvitur Orbis", enquanto o mundo dá a sua órbita. A história humana
conhece muitas passagens de uma época para outra: se fala da idade da pedra, do
bronze, do ferro, da era Imperial, da era atômica, da era eletrônica. Mas hoje
há algo de novo. A ideia de transição já não é suficiente para descrever a
realidade atual. A ideia de mutação deve ser combinada com a de fragmentação.
Vivemos, alguém escreveu, em uma sociedade "líquida"; não existem
mais pontos fixos, valores incontestáveis, nenhuma rocha no mar, à qual
possamos nos agarrar, ou contra a qual colidir. Tudo é flutuante.
Realizou-se o
pior cenário que o filósofo havia previsto como resultado da morte de Deus, que
o advento do super-homem deveria ter impedido, mas que não impediu: "Que
fizemos quando desprendemos esta terra da corrente que a ligava ao sol? Para
onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos
incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado, para todos os
lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? Não estaremos errando como num nada
infinito?” (F. Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 125).
Foi dito que
"matar Deus é o suicídio mais horrendo", e é isso que estamos vendo
em parte. Não é verdade que "onde Deus nasce, o homem morre" (J.-P
Sartre); o oposto é verdadeiro: onde morre Deus, morre o homem.
Um pintor
surrealista da segunda metade do século passado (Salvador Dalì) pintou um
crucifixo que parece uma profecia desta situação. Uma imensa cruz, cósmica, com
um Cristo acima, também monumental, visto do alto, com a cabeça inclinada para
baixo. Abaixo dele, no entanto, não há nenhuma terra firme, mas a água. O
Crucifixo não está suspenso entre o céu e a terra, mas entre o céu e o componente
líquido do mundo.
Este quadro
trágico (há também, no fundo, uma nuvem que poderia aludir à nuvem atômica),
contém, no entanto, uma consoladora certeza: há esperança também para uma
sociedade líquida como a nossa! Há esperança, porque acima dela "está a
cruz de Cristo". É o que a liturgia da Sexta-feira Santa nos faz repetir
todos os anos com as palavras do poeta Venanzio Fortunato: "O crux, ave
spe unica”, Salve, ó Cruz, única esperança do mundo.
Sim, Deus está
morto, morreu em seu Filho Jesus Cristo; mas não ficou no sepulcro,
ressuscitou. "Vós o crucificastes – grita Pedro à multidão no dia de
Pentecostes –, mas Deus o ressuscitou!” (At 2, 23-24). Ele é aquele que
"estava morto, mas agora vive pelos séculos dos séculos" (Ap 1, 18).
A cruz não “está” imóvel no meio das turbulências do mundo" como um
lembrete de um evento passado, ou um puro símbolo; está como uma realidade em
ato, viva e operante.
* * *
Tornaríamos vã,
no entanto, esta liturgia da Paixão, se ficássemos, como os sociólogos, na
análise da sociedade em que vivemos. Cristo não veio para explicar as coisas,
mas para mudar as pessoas. O coração de trevas não é apenas aquele de algum
malvado escondido no fundo da selva, e nem mesmo aquele da nação e da sociedade
que o produziu. Em diferente medida está dentro de cada um de nós.
A Bíblia o chama
de coração de pedra, "Tirarei do vosso peito o coração de pedra – diz Deus
ao profeta Ezequiel – vos darei um coração de carne " (Ez 36, 26). Coração
de Pedra é o coração fechado à vontade de Deus e ao sofrimento dos irmãos, o
coração de quem acumula quantidades ilimitadas de dinheiro e permanece
indiferente ao desespero de quem não tem um copo de água para dar ao próprio
filho; é também o coração de quem se deixa completamente dominar pela paixão
impura, pronto para matar ou a levar uma vida dupla. Para não ficarmos com o
olhar sempre dirigido para o exterior, para os demais, digamos mais
concretamente: é o nosso coração de ministros de Deus e de cristãos praticantes
se vivemos ainda, basicamente, “para nós mesmos” e não “para o Senhor”.
Está escrito que
no momento da morte de Cristo "o véu do templo se rasgou em dois, de alto
a baixo, a terra tremeu, e as rochas se partiram, os túmulos se abriram e
muitos corpos de santos mortos ressuscitaram" (Mt 27, 51s.). Destes sinais
se dá, normalmente, uma explicação apocalíptica, como de uma linguagem
simbólica necessária para descrever o evento escatológico. Mas eles também têm
um significado parenético: indicam o que deve acontecer no coração de quem lê e
medita a Paixão de Cristo. Em uma liturgia como esta, São Leão Magno dizia aos
fieis: “Trema a natureza humana perante a execução do Redentor, quebrem-se as
rochas dos corações infiéis e aqueles que estavam encerrados nos sepulcros de
sua mortalidade saiam para fora, levantando a pedra que estava sobre eles"
(Sermo 66, 3; PL 54, 366).
O coração de
carne, prometido por Deus nos profetas, já está presente no mundo: é o Coração
de Cristo trespassado na cruz, aquele que veneramos como “o Sagrado Coração”.
Ao receber a Eucaristia, acreditamos firmemente que aquele coração vem bater
também dentro de nós. Olhando para a cruz daqui a pouco digamos do profundo do
coração, como o publicano no templo: "Meu Deus, tem piedade de mim,
pecador!”, e também nós, como ele, voltaremos para casa “justificados” (Lc 18,
13-14).
Fonte: Rádio Vaticano
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