Padre Raniero Cantalamessa
IV pregação de Quaresma
31 de março de 2017
"O Espírito Santo nos introduz no mistério da ressurreição
de Cristo"
"Refletimos nas duas
primeiras meditações quaresmais sobre o Espírito Santo, que nos insere, nos
introduz, na plena verdade sobre a pessoa de Cristo, fazendo-nos proclamá-lo
Senhor e verdadeiro Deus. Na última meditação passamos do ser para o agir de
Cristo, da sua pessoa para as suas obras, e, especialmente, para o mistério da
sua morte redentora. Hoje nos propomos meditar sobre o mistério da sua e da
nossa ressurreição.
São Paulo atribui
abertamente a ressurreição de Jesus da morte, à obra do Espírito Santo. Ele diz
que Cristo "foi constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de
santidade, em virtude da ressurreição dos mortos” (Rm 1,4). Em Cristo,
tornou-se realidade a grande profecia de Ezequiel sobre o Espírito que entra
nos ossos secos, ressuscita-os dos seus túmulos e faz de um grande número de
mortos "um grande exército" de ressuscitados à vida e à esperança
(cf. Ez 37, 1-14).
Mas, não gostaria de
continuar a minha meditação seguindo essa linha de raciocínio. Fazer do
Espírito Santo o princípio inspirador de toda a teologia (intenção da assim
chamada Teologia do terceiro artigo!) não significa colocar o Espírito Santo, à
força, em toda afirmação, nomeando-o a cada passo. Não estaria na natureza do
Paráclito que, como aquela da luz, ilumina todas as coisas permanecendo, ele
próprio, por assim dizer, na sombra, como nos bastidores. Mais que falar “do” Espírito
Santo, a Teologia do terceiro artigo consiste em falar “no” Espírito Santo, com
tudo o que esta simples mudança de preposição comporta.
1. A ressurreição de Cristo: abordagem histórica
Antes de mais nada, digamos
algo sobre a ressurreição de Cristo como fato “histórico”. Podemos definir a
ressurreição como um evento histórico, no sentido usual deste termo, que é de
realmente acontecido, no sentido, isto é, onde histórico se opõe a mítico e a
lendário? Para expressar-nos em termos do debate recente: Jesus ressuscitou
apenas no kerygma, ou seja, no anúncio da Igreja (como alguém afirmou na linha
de Rudolf Bultmann), ou, pelo contrário, ressuscitou também na realidade e na
história? E mais: ele ressuscitou, a pessoa de
Jesus, ou ressuscitou somente a sua causa, no sentido metafórico no qual
ressuscitar significa sobreviver, ou a vitória de uma ideia, após a morte da
pessoa que a propôs?
Vemos, portanto, em que
sentido se dá uma abordagem também histórica à ressurreição de Cristo. Não
porque qualquer um de nós aqui tenha a necessidade de ser persuadido a respeito
disso, mas, como disse Lucas no começo do seu evangelho, “para que verifiques a
solidez dos ensinamentos que recebeste” (cf. Lc 1, 4) e que transmitimos aos
demais.
A fé dos discípulos, salvo
algumas excepções (João, as piedosas mulheres), não resiste ao teste do seu
trágico fim. Com a paixão e a morte, a escuridão cobre tudo. Seu estado de
espírito emerge das palavras dos dois discípulos de Emaús: "Esperávamos
que fosse ele… mas já faz três dias" (Lc 24, 21). Estamos em um beco sem
saída da fé. O caso Jesus é considerado encerrado.
Agora – continuando nosso
trabalho de historiadores – vamos para alguns anos, ou melhor, algumas semanas,
depois. O que encontramos? Um grupo de homens, o mesmo que esteve ao lado de
Jesus, que vai repetindo, em voz alta, que Jesus de Nazaré é o Messias, o
Senhor, o Filho de Deus; que está vivo e que virá para julgar o mundo. O caso
de Jesus não só foi reaberto, mas, em pouco tempo foi levado a uma dimensão
absoluta e universal. Aquele homem afeta não só o povo de Israel, mas todos os
homens de todos os tempos. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a
pedra angular” (1Pd 2, 4), ou seja, começo de uma nova humanidade. A partir de
agora, sabendo ou não, não há nenhum outro nome debaixo do céu dado aos homens,
no qual é possível salvar-se, a não ser aquele de Jesus de Nazaré (cf. At 4,
12).
O que provocou tal mudança
que fez com que os mesmos homens que antes haviam negado Jesus ou tinham
fugido, agora dizem em público estas coisas, fundam Igrejas e se deixam,
inclusive, prender, flagelar, matar por ele? Em coro, eles nos dão esta
resposta: “Ressuscitou! Nós vimos!”. O ultimo ato que pode fazer o historiador,
antes de ceder a palavra à fé, é verificar aquela resposta.
A ressurreição é um
acontecimento histórico, em um sentido muito particular. Ela está no limite da
história, como aquele fio que separa o mar da terra firme. Está dentro e fora
ao mesmo tempo. Com ela, a história se abre ao que está além da história, à escatologia.
É, portanto, em certo sentido, a ruptura da história e a sua superação, assim
como a criação é o seu começo. Isto significa que a ressurreição é um evento em
si mesmo não testemunhável e atingível com as nossas categorias mentais que são
todas ligadas à experiência do tempo e do espaço. E, de fato, ninguém vê o
momento em que Jesus ressuscita. Ninguém pode dizer que viu Jesus ressuscitar, mas só de tê-lo visto ressuscitado.
A ressurreição, portanto, é
conhecida a posteriori, em seguida. Como é a presença física do Verbo em Maria
que demonstra o fato que se encarnou; assim a presença espiritual de Cristo na
comunidade, evidenciada pelas aparições, demonstra que ressuscitou. Isso
explica o fato de que nenhum historiador profano diga uma palavra sobre a
ressurreição. Tácito, que também lembra da morte de um “um certo Cristo” nos
dias de Pôncio Pilatos[1], cala sobre a ressurreição. Aquele evento não tinha
relevância e sentido a não ser para quem experimentava as suas consequências,
no seio da comunidade.
Em que sentido, então,
falamos de uma abordagem histórica para a ressurreição? Aquilo que se apresenta
para a consideração do historiador e o permite falar da ressurreição, são dois
fatos: primeiro, a súbita e inexplicável fé dos discípulos, uma fé tão tenaz a
ponto de resistir até mesmo à prova do martírio; segundo, a explicação de tal
fé que os interessados nos deixaram. Escreveu um exegeta eminente: "No
momento decisivo, quando Jesus foi capturado e executado, os discípulos não
cultivavam nenhum pensamento sobre a ressurreição. Eles fugiram e deram por
encerrado o caso de Jesus. Algo teve de intervir que, em um curto espaço de
tempo, não só provocou a mudança radical de seu estado de espírito, mas os
levou também a uma atividade totalmente diferente e à fundação da Igreja. Esse
"algo" é o núcleo histórico da fé pascal[2]".
Foi justamente notado que,
se se nega o caráter histórico e objetivo da ressurreição, o nascimento da fé e
da Igreja se tornaria um mistério ainda mais inexplicável do que a própria
ressurreição: "A ideia de que o imponente edifício da história do
cristianismo seja como uma enorme pirâmide pendurada sobre um fato
insignificante é, certamente, menos credível do que a afirmação de que todo o
evento – ou seja, o dado de fato mais o significado inerente a ele – tenha
realmente ocupado um lugar na história comparável ao que lhe atribui o Novo
Testamento[3]”.
Qual é, então, o ponto de
chegada da pesquisa histórica com relação à ressurreição? Podemos apreendê-lo
nas palavras dos discípulos de Emaús. Alguns discípulos, na manhã da Páscoa,
foram ao túmulo de Jesus e descobriram que as coisas estavam como haviam
relatado as mulheres, que foram antes deles, “mas a ele, não o viram” (cf. Lc
24, 24). Até a história vai a sepulcro de Jesus e deve constatar que as coisas
estão da forma como disseram os testemunhos. Mas ele, o Ressuscitado, não o vê.
Não basta constatar historicamente os fatos, é necessário “ver” o Ressuscitado,
e isso a história não pode dar, mas só a fé[4]. Quem chega correndo da terra
firme rumo a costa do mar deve parar de repente; pode ir além com o olhar, mas
não com os pés.
2. Significado apologético da ressurreição
Passando da história para a
fé, muda também o modo de falar da ressurreição. O do Novo Testamento e da
liturgia da Igreja é uma linguagem assertiva, apodíctica, que não se baseia em
demonstrações dialéticas. "Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos"
(1 Cor 15, 20), diz Paulo. Aqui se está no nível da fé, não mais no da
demonstração. É o que chamamos de kerygma. "Scimus Christum surrexisse a
mortuis vere", canta a liturgia do Domingo de Páscoa:
"Nós sabemos que Cristo verdadeiramente ressuscitou". Não só
acreditamos, mas tendo acreditado, sabemos que é assim, disso temos certeza. A
prova mais segura da ressurreição se tem depois, não antes, que se acreditou,
porque então se experimenta que Jesus está vivo.
Mas o que é a ressurreição
considerada do ponto de vista da fé? É o testemunho de Deus sobre Jesus Cristo.
Deus Pai, que, em vida, já havia corroborado Jesus de Nazaré com prodígios e
sinais, agora colocou um selo definitivo no seu reconhecimento, ressuscitando-o
da morte. Em seu discurso de Atenas, São Paulo formula assim a coisa: “Deus o
ressuscitou dos mortos dando, assim, a todos os homens uma prova certa sobre ele”
(At 17, 31). A ressurreição é o poderoso “Sim” de Deus, o seu “Amém”
pronunciado sobre a vida do seu Filho Jesus.
A morte de Cristo não era,
em si, suficiente para dar testemunho da verdade de sua causa. Muitos homens -
temos uma prova trágica disso em nossos dias - morrem por razões erradas, até
mesmo por razões iníquas; A sua morte não torna verdadeira a sua causa; somente
testemunha que eles acreditavam na verdade dela. A morte de Cristo não é a
garantia da sua verdade, mas do seu amor, pois "ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a vida pela pessoa amada” (Jo 15, 13).
Somente a ressurreição é o
selo de autenticidade divina de Cristo. É por isso que, a quem lhe pedia um
sinal, Jesus respondeu: "Destruí este santuário, e em três dias eu o
levantarei" (Jo 2, 18s) e em outro lugar diz: "Não vai ser dada a
esta geração nenhum sinal, a não ser o sinal de Jonas” que depois de três dias
no ventre do peixe viu novamente a luz (Mt 16,4). Paulo tem razão de edificar
sobre a ressurreição, como seu fundamento, todo o edifício da fé: “Se Cristo
não tivesse ressuscitado, vã seria nossa fé. Nós seríamos falsas testemunhas de
Deus... seríamos os mais dignos de compaixão de todos os homens"(1 Cor 15,
14-15,19). É possível compreender por que Santo Agostinho pode dizer que
"a fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo". Que Cristo tenha
morrido todo mundo acredita, também os pagãos, mas que tenha ressuscitado, só
os cristãos acreditam, e não é cristão quem não acredita[5].
3. Significado mistérico da ressurreição
Até aqui o significado apologético da ressurreição de Cristo, que é
destinado a estabelecer a autenticidade da missão de Cristo e a legitimidade da
sua pretensão divina. A esse se deve acrescentar outro significado que
poderemos chamar mistérico ou
salvífico, em quanto que diz respeito também a nós que cremos. A ressurreição
de Cristo nos diz respeito e é um mistério “para nós”, porque fundamenta a
esperança da nossa própria ressurreição da morte:
“E se o Espírito daquele que
ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos
mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11).
A fé em uma vida após a
morte aparece, de forma clara e explícita, apenas no final do Antigo
Testamento. O segundo livro dos Macabeus é o testemunho mais avançado:
"Depois de morrermos – exclama um dos sete irmãos mortos por Antíoco –
(Deus) nos ressuscitará à vida nova e eternal” (cf. 2 Mac 7,1-14). Mas essa fé
não nasce de repente, do nada; está enraizada vitalmente em toda a precedente
revelação bíblica, da qual representa a conclusão esperada e, por assim dizer,
o fruto mais maduro.
Especialmente duas certezas
levaram a esta conclusão: a certeza da onipotência de Deus e a certeza da
insuficiência e da injustiça da retribuição terrena. Aparecia sempre mais evidente
– especialmente depois da experiência do exílio – que a sorte dos bons neste
mundo é tal que, sem a esperança de uma retribuição diferente dos justos após a
morte, seria impossível não cair no desespero. Nesta vida, de fato, tudo
acontece da mesma forma ao justo e ao ímpio, tanto na felicidade quanto na
desgraça. O livro do Coélet representa a expressão mais lúcida desta amarga
conclusão (cf. Ecl 7, 15).
O pensamento de Jesus sobre
o assunto é expresso na discussão com os Saduceus sobre o caso da mulher que
teve sete maridos (Lc 20, 27-38). De acordo com a revelação bíblica mais
antiga, a mosaica, eles não aceitaram a doutrina da ressurreição dos mortos que
consideravam uma novidade. Referindo-se à lei do levirato (Dt 25: a mulher que
ficou viúva, sem filhos homens, deve casar-se com o cunhado), eles especulam o
caso limite de uma mulher que, dessa forma, passou por sete maridos. No final,
com a certeza de ter demonstrado o absurdo da ressurreição, perguntam:
"Esta mulher, na ressurreição, de quem será esposa"?
Sem se afastar do terreno
escolhido pelos seus adversários, com poucas palavras, Jesus primeiro revela
onde está o erro dos saduceus e o corrige, depois, dá à fé na ressurreição a
sua fundamentação mais profunda e mais convincente. Jesus se pronuncia sobre
duas coisas: sobre o modo e
sobre o fato da
ressurreição. Quanto ao fato de que haverá uma ressurreição dos
mortos, Jesus recorda o episódio da sarça ardente, onde Deus se proclama
"Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó". Se Deus se proclama
"Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, quando Abraão, Isaac e Jacó morreram
há gerações, e se, por outro lado, “Deus é Deus dos vivos e não dos mortos”,
então quer dizer que Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em algum lugar!
Mais do que sobre a resposta
de Jesus aos Saduceus, a fé na ressurreição se fundamenta no fato da sua
ressurreição da morte. “Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, exclama
Paulo, como podem dizer alguns de vocês que não existe ressurreição dos mortos?
Se não existe ressurreição dos mortos, nem sequer Cristo ressuscitou!” (1 Cor
15,12-13). É absurdo pensar em um corpo, cuja cabeça reina gloriosa no céu e
cujo corpo se decompõe eternamente na terra ou acabe no nada.
A fé cristã na ressurreição
dos mortos responde, além disso, ao desejo mais instintivo do coração humano.
Nós – diz Paulo – não queremos ser despojados do nosso corpo, mas revestidos,
ou seja, não queremos sobreviver com uma parte somente do nosso ser – a alma –,
mas com todo o nosso eu, alma e corpo; por isso, não desejamos que o nosso
corpo mortal seja destruído, mas que “seja absorvido pela vida” e se vista, ele
próprio, de imortalidade (cf. 2 Cor 5, 1-5; 1 Cor 15, 51-53).
Da vida eterna, nós não só
temos nesta vida uma promessa: nós também temos "as primícias" e o
"sinal" (ou arras, ndt). Jamais se deveria traduzir o termo grego arrabôn usado por São Paulo a respeito do
Espírito (2 Cor 1, 22; 5,5; Ef 1, 14) com “penhor” (pignus),
mas só com sinal. Santo Agostinho explicou muito bem a diferença. O penhor,
diz, não é o começo do pagamento, mas algo que se dá enquanto se espera o
pagamento; assim que o pagamento é feito, o penhor é devolvido. Não acontece
isso com o sinal. Ele não é devolvido no momento do pagamento, mas completado.
Já faz parte do pagamento. “Se Deus, por meio do seu Espírito, nos deu como
sinal o amor, quando nos for dada toda a realidade, nos será tirado o sinal?
Certamente que não, mas o que já foi dado será completado[6]".
Como “as primícias” anunciam
a safra cheia e são parte dela, assim o sinal é parte da posse plena do
Espírito. É o “Espírito que habita em nós” (Rm 8,11), mais que a imortalidade
da alma, que garante, como se vê, a continuidade entre a nossa vida presente e
aquela futura.
Sobre o modo da
ressurreição, naquela mesma ocasião Jesus afirma a condição espiritual dos
ressuscitados: "Aqueles que são considerados dignos do outro mundo e da
ressurreição dos mortos, não tomam mulher nem marido; e nem podem mais morrer,
porque são iguais aos anjos e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus”.
Foi feita uma tentativa de
ilustrar a transição da condição terrestre para aquela de ressuscitados com
exemplos tirados da natureza: a semente da qual brota a árvore, a natureza
morta no inverno que ressurge na primavera, a lagarta que se transforma em uma
borboleta. Paulo simplesmente diz: "semeado corruptível, o corpo
ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória;
semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico
ressuscita corpo espiritual"(1 Cor 15, 42- 44).
A verdade é que tudo o que
diz respeito à nossa condição no pós-vida permanece um mistério impenetrável;
não porque Deus quis mantê-lo escondido, mas porque, como somos forçados a
pensar em tudo nas categorias de tempo e espaço, não temos as ferramentas para
representá-lo. A eternidade não é uma entidade que existe a parte e que pode
ser definida em si mesma, como se fosse um tempo esticado infinitamente. É o
modo de ser de Deus. A eternidade é Deus! Entrar na vida eterna significa
simplesmente ser admitidos, por graça, a compartilhar o modo de ser de Deus.
Tudo isso não teria sido
possível se a eternidade não tivesse antes entrado no tempo. É em Cristo
ressuscitado e graças a ele que nós podemos revestir o modo de ser de Deus. São
Paulo se representa aquilo que o espera depois da morte como um “ir para estar
com Cristo” (Fl 1,23). A mesma coisa pode ser deduzida a partir da palavra de
Jesus ao bom ladrão: "Hoje estarás comigo no paraíso" (Lc 23, 43). O
paraíso é um ser “com Cristo”, como seus "herdeiros". A vida eterna é
um reunir-se dos membros com a cabeça, um “apinhar-se” com ele na glória,
depois de ter estado unido com ele no sofrimento (Rm 8,17).
Uma boa história contada por
um escritor alemão moderno nos ajuda a nos dar um sentido de vida eterna mais
do que todas as tentativas racionais de explicação. Em um mosteiro medieval
moravam dois monges ligados entre si por profunda amizade espiritual. Um se
chamava Rufus e o outro Rufinus. Em todo o seu tempo livre a única coisa que
faziam era tentar imaginar e descrever como seria a vida eterna na Jerusalém
celeste. Rufus que era um mestre-de-obras imaginava-a como uma cidade com
portas de ouro, cravejada de pedras preciosas; Rufinus que era organista, como
toda ressoante de celestes melodias.
No final, fizeram um pacto:
qualquer um deles que tivesse morrido primeiro deveria voltar na noite
seguinte, para garantir ao amigo que as coisas eram assim como eles haviam
imaginado. Teria sido suficiente uma palavra. Se fosse como eles tinham
pensado, se deveria dizer simplesmente: taliter!, ou seja,
isso mesmo;! se – mas era completamente impossível – fosse de outra forma,
deveria dizer: aliter, diferente!
Uma noite, enquanto estava
no órgão, o coração de Rufino parou. O amigo velou ansiosamente toda a noite,
mas nada; esperou em vigílias e jejuns por semanas e meses, e nada. Finalmente,
no aniversário da sua morte, eis que, à noite, em um halo de luz, entra na sua
cela o amigo. Vendo que silencia, é ele que lhe pergunta, confiante na resposta
afirmativa: taliter? É tão verdade? Mas o amigo balança a cabeça
em sinal negativo. Em desespero, grita: aliter? É diferente? Mais uma vez um sinal negativo da
cabeça. E, finalmente, dos lábios fechados do amigo, em um instante, duas
palavras: totaliter aliter: Totalmente diferente! Rufus entende em um
flash que o céu é infinitamente mais do que eles tinham imaginado, que não pode
ser descrito, e logo depois morre também ele, pelo desejo de alcançá-lo[7].
O fato, é claro, é uma
lenda, mas o seu conteúdo é bastante bíblico. "O que os olhos não viram,
os ouvidos não ouviram e o corçaão do homem não percebeu, tudo o que Deus
preparou para os que o amam” (1 Cor 2, 9). São Simeão, o Novo Teólogo, um dos
santos mais amados na Igreja Ortodoxa, teve uma visão um dia; estava certo de
ter contemplado Deus em pessoa e, com a certeza de que não poderia haver nada
maior e mais radioso do que tinha visto, disse: “Se o céu é isso, me basta!” O
Senhor lhe respondeu: "Es realmente bem mesquinho, se te contentas com
estes bens, porque, com relação aos bens futuros, esses são como um céu pintado
no papel, em comparação ao céu real[8]”.
Quando se quer atravessar um
braço de mar, dizia Santo Agostinho, a coisa mais importante não é sentar-se na
costa e aguçar a visão para ver o que está do outro lado, mas é subir no barco
que leva àquela margem. E também para nós a coisa mais importante não é
especular sobre como será a nossa vida eterna, mas fazer as coisas que sabemos
que nos levam a ela[9]. Que o nosso dia de hoje seja um pequeno passo em direção
a ela.
[1] Tacito, Anais 25.
[2] Martin Dibelius,
Iesus, Berlim 1966, p. 117.
[3] Charles H. Dodd, History
and the Gospel, London 1964, p.76 (ed. Italiana Storia ed Evangelo, Brescia
1976, p. 87).
[4] Cf. Søren Kierkegaard,
Diario, X, 4, A, 523.
[5] Cf. S. Agostinho, Enarr.
in Psalmos, 120, 6 (CCL, 40, p 1791).
[6] S. Agostinho, Discursos,
23, 9 (CC 41, p. 314).
[7] H. Franck, Der
Regenbogen. Siebenmalsieben Geschichten, Leipzig 1927.
[8] S. Simeão Novo Teólogo,
Segunda oração de agradecimento (SCh 113, p. 350).
[9] Agostinho, A Trindade
IV,15,30; Confissões, VII, 21.
Fonte: Rádio Vaticano
Nenhum comentário:
Postar um comentário