Padre Raniero Cantalamessa
V pregação de Quaresma
07 de abril de 2017
“Manifestou-se a justiça de Deus”
1. As origens da Reforma protestante
O Espírito Santo que - vimos
nas meditações anteriores - nos insere na plena verdade da pessoa de Cristo e
no seu mistério pascal, nos ilumina também sobre um aspecto crucial da nossa fé
em Cristo, ou seja, sobre a maneira pela qual a salvação alcançada por ele
chega a nós hoje na Igreja. Em outras palavras, sobre o grande problema da
justificação do homem pecador por meio da fé. Acredito que tentar lançar luz
sobre a história e sobre o estado atual deste debate seja a melhor forma para
fazer do acontecimento do V centenário da Reforma protestante uma ocasião de
graça e de reconciliação para toda a Igreja.
Não podemos deixar de ler
todo o trecho da Carta aos Romanos, sobre o qual este debate está concentrado.
Diz:
“21. Agora, porém,
independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela
Lei e pelos Profetas, 22. justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em
favor de todos os que creem – pois não há diferença, 23. visto que todos
pecaram e todos estão privados da glória de Deus – 24. e são justificados
gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus:
25. Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue,
mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter
deixado sem punição os pecados de outrora, 26. no tempo da paciência de Deus;
ele queria manifestar sua justiça no tempo presente para mostrar-se justo e
para justificar aquele que apela para a fé em Jesus. 27. Onde está, então, o
motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo
algum, mas em força da lei da fé. 28. Porquanto nós sustentamos que o homem é
justificado pela fé, sem a prática da Lei”.
Como foi possível que esta
mensagem tão consoladora e luminosa tenha se tornado o pomo da discórdia no
seio do cristianismo ocidental, dividindo a Igreja e a Europa em dois
continentes religiosos diferentes? Ainda hoje, na pessoa religiosa mediana, em
certos países do Norte da Europa, tal doutrina é o divisor de águas entre
catolicismo e protestantismo. Eu mesmo ouvi de vários fieis leigos luteranos a
pergunta: "Você crê na justificação pela fé?", como a condição para
poder ouvir aquilo que eu dizia. Esta doutrina é definida pelos próprios
iniciadores da Reforma “o artigo com o qual a Igreja está em pé ou cai"
(articulus stantis et cadentis Ecclesiae).
Devemos remontar à famosa
“experiência da torre” de Martinho Lutero que teve lugar nos anos de 1511 ou
1512. (Tem essa denominação porque se pensa que ocorreu em uma cela do convento
agostiniano de Wittenberg chamado de "a Torre"). Lutero estava
angustiado, quase em nível de desespero e ressentimento para com Deus, por
causa do fato de que com todas as suas práticas religiosas e penitências ele
não conseguisse sentir-se acolhido e em paz com Deus. Foi aqui que, de repente,
apareceu de súbito em sua mente a palavra de Paulo em Romanos 1, 17: “O justo
vive pela fé”. Foi uma libertação. Ele próprio, narrando sua experiência,
próximo à sua morte, escreveu: “Quando descobri isso, me senti renascer e
pareceu-me que se escancaravam para mim as portas do paraíso[1]”.
Precisamente, alguns
historiadores luteranos datam este momento, ou seja, alguns anos antes do 1517,
como o verdadeiro começo da Reforma. A ocasião que transformou esta experiência
interior em uma verdadeira e real avalanche religiosa foi o incidente das
indulgências que fez Lutero se decidir a afixar as famosas 95 teses na Igreja
do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. É importante notar esta
sucessão histórica dos fatos. Ela nos diz que a tese da justificação pela fé e
não pelas obras, não foi o resultado da polêmica com a Igreja da época, mas a
sua causa. Foi uma verdadeira iluminação do alto, uma “experiência Erlebnis,
tal como foi definida por ele próprio.
Surge espontaneamente uma
pergunta: como podemos explicar o terremoto causado pela tomada de posição de
Lutero? O que havia nessa decisão de tão revolucionário? Santo Agostinho tinha
dado, da expressão "justiça de Deus", a mesma explicação de Lutero
muitos séculos antes. "A justiça de Deus (justitia Dei) – tinha escrito –
é aquela através da qual, pela sua graça, nos tornamos justos, exatamente como
a salvação de Deus (salus Dei) (Sal 3,9) é aquela pela qual Deus nos salva[2]”.
São Gregório Magno tinha
dito: “Não se vai das virtudes à fé, mas da fé às virtudes[3]”. E São Bernardo:
“Eu, aquilo que não posso alcançar por mim mesmo, me aproprio (usurpo!) com
confiança do lado trespassado do Senhor, porque é cheio de misericórdia. [...]
E o que sobra da minha justiça? Oh, Senhor, lembrar-me-ei somente da tua
justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu es para mim justiça da parte
de Deus (cf. 1 Cor 1, 30)[4]". S. Tomas de Aquino foi ainda mais longe.
Comentando a sentença paulina “a letra mata, mas o Espírito vivifica" (2
Cor 3,6), ele escreveu que por letra entendem-se também os preceitos morais do
evangelho, pelos quais “também a letra do Evangelho mataria, se não se
acrescentasse, dentro, a graça da fé que cura[5]”.
O Concílio de Trento,
convocado em resposta à Reforma, não encontra dificuldade em reafirmar esta
convicção do primado da fé e da graça, embora considerando (como, aliás, fará
todo o ramo da Reforma encabeçada por Calvino) as obras e a observância da lei,
necessárias no contexto de todo o processo da salvação, segundo a fórmula
paulina da “fé que opera pela caridade” (“fides quae per caritatem operatur”)
(Gal 5,6)[6]. Fica assim explicado como, no novo clima de diálogo ecumênico,
tenha sido possível chegar à declaração conjunta da Igreja Católica e da
Federação mundial das Igrejas Luteranas, sobre a justificação pela graça
mediante a fé, assinada no dia 31 de Outubro de 1999, na qual se reconhece um
acordo fundamental, embora não total, sobre tal doutrina.
Então, a Reforma Protestante
foi um caso de "muito barulho por nada"? Fruto de um equívoco?
Devemos responder com firmeza: não! É verdade que o magistério da Igreja não
tinha anulado nunca as decisões tomadas nos concílios anteriores (especialmente
contra os Pelagianos); nunca negou o que havia escrito Agostinho, Gregório,
Bernardo, Tomás de Aquino. As revoluções, no entanto, não surgem pelas ideias
ou pelas teorias abstratas, mas por situações históricas concretas, e a
situação da Igreja, há tempo, não refletia realmente aquelas convicções. A
vida, a catequese, a piedade cristã, a direção espiritual, por não falar depois
da pregação popular: tudo parecia afirmar o contrário, ou seja, que o que conta
são as obras, o esforço humano. Além disso, por “boas obras” não se entendiam
no geral aquelas enumeradas por Jesus em Mateus 25, sem as quais, diz ele
próprio, não se entra no reino dos céus; entendiam-se, ao invés, peregrinações,
velas votivas, novenas, ofertas à Igreja e, como contrapartida a estas coisas,
as indulgências.
O fenômeno tinha raízes
profundas comuns a todo o cristianismo e não só ao latino. Depois que o
cristianismo se tornou religião do Estado, a fé era absorvida naturalmente
através da família, da escola, da sociedade. Não era tão importante insistir no
momento em que se chega à fé e na decisão pessoal com a qual se torna crentes,
mas insistir nas exigências práticas da fé, em outras palavras, na moral, nos
costumes.
Um sinal indicador desta
mudança de interesse é indicado por Henri de Lubac em sua História da exegese
medieval. Na fase mais adiantada, a ordem dos quatro sentidos da Escritura era:
sentido histórico literal, sentido cristológico ou de fé, sentido moral e sentido
escatológico[7]. Cada vez mais, esta ordem é substituída por uma diferente na
qual o senso moral é anterior ao cristológico ou de fé. Antes do "em que
acreditar", se coloca o "o que fazer." O dever vem antes do dom.
Na vida espiritual, se pensava, em primeiro lugar há o caminho da purificação,
em seguida, o da iluminação e da união[8]. Sem perceber, se dizia exatamente o
oposto do que havia escrito São Gregório Magno, ou seja, que “não chega das
virtudes à fé, mas da fé às virtudes”.
2. A doutrina da justificação pela fé, depois de Lutero
Depois de Lutero e bem
próximo aos outros grandes dois reformadores, Calvino e Zwiglio, a doutrina da
justificação pela fé, naqueles que transformaram-na em um modo de vida, teve
por efeito uma nítida melhoria da qualidade da vida cristã, graças à circulação
da palavra de Deus em língua vernácula, aos muitos hinos e cânticos
espirituais, aos subsídios escritos, tornados acessíveis ao povo pela recente
invenção e difusão da imprensa.
Na Frente externa, a tese da
justificação só pela fé tornou-se o divisor de águas entre catolicismo e
protestantismo. Em pouco tempo (em parte pelo próprio Lutero), essa oposição se
ampliou e se tornou também oposição entre cristianismo e judaísmo, com os
católicos que representavam, segundo alguns, a continuação dos legalismos e
ritualismos judaicos e o protestantismo que representava a novidade cristã.
A polêmica anticatólica
casa-se com a polêmica antijudaica que, por outras razões, não estava menos
presente no mundo católico. O cristianismo teria se formado por oposição, não
por derivação, do judaísmo. A partir de Ferdinand Christian Baur (1792-1860),
vai se estabelecendo a tese das duas almas do cristianismo: aquela petrina do
assim chamado "protocatolicismo" (Frühkatholizismus) e aquela paulina
que encontra a sua expressão mais realizada no protestantismo.
Esta convicção aumenta a
distância entre a religião cristã e o judaísmo. Buscar-se-á explicar as
doutrinas e os mistérios cristãos (incluindo o título de Kyrios, Senhor, e o
culto divino de Jesus), como resultado do contato com o helenismo. O critério
utilizado para julgar a autenticidade ou não de uma sentença e de um fato do
Evangelho é a sua alteridade em relação ao que é atestado no ambiente judaico
do tempo. Se não foi esta a razão principal do epílogo trágico do
antisemitismo, o certo é que, juntamente com a acusação de deicídio,
favoreceu-o, dando-lhe uma tácita cobertura religiosa.
Desde os anos 70 do século
passado, houve uma reversão radical nesta área dos estudos bíblicos. É necessário
dizer algo sobre isso para esclarecer qual é o estado atual da doutrina paulina
e luterana da justificação gratuita pela fé em Cristo. A natureza e o objetivo
deste meu discurso me dispensam de citar os nomes dos autores modernos
comprometidos neste debate. Quem é especialista na matéria não terá dificuldade
em dar nomes aos autores das teses aqui mencionadas, aos demais, eu acho, não
interessam os nomes, mas as ideias.
Trata-se da assim chamada
“terceira via de pesquisa sobre Jesus histórico" (terceira depois daquela
liberal do século XIX e aquela de Bultmann e seguidores do século XX). Esta
nova perspectiva consiste em reconhecer no judaísmo a verdadeira matriz dentro
da qual se formou o cristianismo, dissipando o mito da irredutível alteridade do
cristianismo com relação ao judaísmo. O critério com o qual se julga a maior ou
menor probabilidade de que uma sentença e um fato da vida de Jesus sejam
autênticos é a sua compatibilidade com o judaísmo do seu tempo, não a sua
incompatibilidade como se pensava no passado.
Algumas vantagens desta nova
abordagem são evidentes. Reencontra-se a continuidade da revelação. Jesus se
coloca dentro do mundo judaico, na linha dos profetas bíblicos. Se faz, também,
mais justiça com o judaísmo do tempo de Jesus, mostrando a sua riqueza e
variedade. O problema é que se tem ido tão além desta conquista a ponto de
transformá-la em uma perda. Em muitos representantes desta terceira pesquisa,
Jesus acaba por dissolver-se completamente no mundo judaico, sem mais se diferenciar,
a não ser por alguma interpretação particular da Torá. Ele acaba reduzido a um
dos profetas hebraicos, um “carismático itinerante”, “um cidadão judeu do
Mediterrâneo”, como escreveu alguém. A nova pesquisa histórica produziu estudos
de outro nível (por exemplo, os de James D. G. Dunn sobre “a nova perspectiva
sobre Jesus”); mas aquela que eu mencionei é a versão que circulou mais
amplamente a nível de divulgação e a que mais influenciou a opinião pública.
Quem revelou a natureza
ilusória dessa abordagem para um diálogo sério entre judaísmo e cristianismo
foi precisamente um judeu, o rabino americano Jacob Neusner[9]. Aquele que leu
o livro de Bento XVI sobre Jesus de Nazaré, conhece o pensamento deste rabino
com quem ele conversa em um dos capítulos mais emocionantes do seu livro. Jesus
não pode ser considerado um judeu como qualquer outro, diz Neusner, dado que
coloca-se acima de Moisés e se proclama: "Senhor também do Sábado".
Mas é sobretudo no que diz
respeito a São Paulo que a nova pesquisa mostra toda a sua insuficiência. De
acordo com um de seus mais conhecidos representantes, a religião das obras,
contra a qual o apóstolo se contrapõe com muita veemência em suas cartas, não
existe na realidade. O judaísmo, também no tempo de Jesus, é um "nomismo da
aliança" (Covenantal Nomism), ou seja, uma religião baseada sobre a
iniciativa gratuita de Deus e sobre o seu amor; o cumprimento da lei é a sua
consequência, não a causa; essa serve para permanecer na aliança, não para
entrar nela. A religião judaica continua a ser aquela dos patriarcas e dos
profetas, em cujo centro está a hesed, a graça e a benevolência divina.
Procura-se, então, alguns
possíveis alvos diferentes para a polêmica de Paulo: não “os judeus”, mas os
“judaico-cristãos”, ou aquele tipo de judaísmo “zeloso” que se sente ameaçado
pelo mundo pagão circundante e reage na forma dos Macabeus. Em suma, aquele que
havia sido o seu judaísmo, antes da conversão, e que o tinha levado a perseguir
os fieis helenísticos como Estêvão.
Mas essas explicações são
insustentáveis e acabam tornando incompreensível e contraditório o pensamento
do Apóstolo. Nos capítulos anteriores o Apóstolo fez uma acusação tão universal
quanto a própria humanidade: "Não há diferença, porque todos pecaram e
todos estão privados da glória de Deus” (Rm 3, 22-23); por três vezes repete-se
a expressão "judeus e gregos", ou seja, judeus e gentios, ao mesmo
tempo. Como alguém poderia pensar que uma acusação tão universal, tenha uma
aplicação limitada a um pequeno grupo de fieis?
3. A justificação pela fé: doutrina de Paulo ou Jesus?
A dificuldade nasce, na
minha opinião, do fato de que a exegese de Paulo se comporta, às vezes, como se
o problema começasse com ele e como se Jesus não tivesse dito nada a respeito.
A doutrina da justificação gratuita pela fé não é uma invenção de Paulo, mas a
mensagem central do Evangelho de Cristo, independente da forma que tenha sido
conhecida pelo Apóstolo: se por revelação direta do ressuscitado, ou pela
"tradição", que ele diz ter recebido e que não era certamente
limitada às poucas palavras do kerygma (cf. 1 Cor 15, 3). Se não fosse assim,
teriam razão aqueles que dizem que Paulo, não Jesus, é o verdadeiro fundador do
cristianismo.
O núcleo da doutrina está
contido já na palavra “Evangelho”, boa notícia, que Paulo com certeza não
inventou do nada. No início de seu ministério, Jesus proclamava: “Cumpriu-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc
1, 15). Como poderia, este proclama, chamar-se “boa notícia” se fosse somente
um ameaçador apelo para mudar de vida? Aquilo que Cristo inclui na expressão
"reino de Deus" - isto é, a iniciativa salvífica de Deus, a sua
oferta de salvação para a humanidade – , são Paulo chama de “justiça de Deus”,
mas se trata da mesma fundamental realidade. “Reino de Deus” e “justiça de
Deus” são reunidos pelo próprio Jesus quando diz: “Buscai primeiro o reino de
Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33).
Quando Jesus dizia:
"Arrependei-vos e crede no Evangelho", ensinava, portanto, a
justificação por meio da fé. Antes dele, converter-se significava sempre
“voltar atrás”, como indica o próprio termo hebraico shub; significava voltar à
aliança quebrada, através de uma observância renovada da lei. Converter-se,
consequentemente, tem um significado principalmente ascético, moral e
penitencial e se consegue através da mudança de vida. A conversão é vista como
condição para a salvação; o significado é: arrependei-vos e sejam salvos;
convertei-vos e a salvação virá a vós. Este é o sentido de converter-se até João
Batista inclusive.
Na boca de Jesus este
significado moral passa para segundo plano (pelo menos no início da sua
pregação), com relação a um significado novo, até agora desconhecido.
Converter-se não significa mais voltar atrás, à antiga aliança e à observância
da lei; significa, pelo contrário, dar um salto adiante, entra na nova aliança,
agarrar este Reino que apareceu, entrar nele. E entrar nele por meio da fé.
“Convertei-vos e crede” não significa duas coisas diferentes e sucessivas, mas
a mesma ação: convertei-vos, ou seja, crede; convertei-vos crendo! Converter-se
não significa tanto "arrepender-se", mas "aperceber-se",
isto é, dar-se conta da novidade, pensar de forma nova.
Diferentes dados
evangélicos, dentre os que mais remontam a Jesus, confirmam esta interpretação.
Um é a insistência com que Jesus afirma a necessidade de se tornar como uma
criança para entrar no reino dos céus. A característica da criança é que não
tem nada para dar, só pode receber; não pede uma coisa aos pais por tê-la conquistado,
mas somente porque sabe que é amada. Aceita a gratuidade.
Também a polêmica paulina
contra a pretensão de salvar-se pelas próprias obras não nasce com ele. É
necessário negar incontáveis fatos, para excluir do evangelho todas as
referências polêmicas a um certo número de “escribas, fariseus e doutores da
lei”. Não é possível deixar de reconhecer na parábola do fariseu e do publicano
ao mesmo tempo os dois tipos de religiosidade, contrapostas mais tarde por são
Paulo: a daquele que confia em seu próprio desempenho religioso e a daquele que
confia na misericórdia de Deus e volta à casa “justificado” (Lc 18,14).
Não se trata da tendência
presente em uma religião, mas em todas as religiões, incluindo, naturalmente, a
dos cristãos. (Os evangelistas não transmitiram as palavras de Jesus contra os
fariseus para corrigir os fariseus, mas para advertir os cristãos!). Se Paulo
persegue o judaísmo, é porque esse é o contexto religioso no qual vivem, ele e
os seus interlocutores, no entanto, se trata mais de uma categoria religiosa do
que étnica. Judeus, no contexto, são aqueles que, à diferença dos pagãos,
possuem uma revelação, conhecem a vontade de Deus e, armados com esse fato, se
sentem seguros no lado de Deus e julgam o resto da humanidade. Já no século III,
Orígenes dizia que agora, quem veste a carapuça das palavras do Apóstolo, são
“os chefes das igrejas: bispos, presbíteros e diáconos”, ou seja, os guias, os
mestres do povo[10].
A dificuldade de conciliar a
imagem que Paulo nos dá da religião judaica com aquela que conhecemos dela de
outras fontes deriva de um fundamental erro de método. Jesus e Paulo tem a ver
com a vida vivida, com o coração; os estudiosos, pelo contrário, com os livros
e os testemunhos escritos. As declarações orais ou escritas dizem o que as
pessoas sabem que precisam ser ou que gostariam de ser, não, necessariamente,
aquilo que são. Não é surpreendente encontrar nas Escrituras e em fontes
rabínicas da época afirmações comoventes e sinceras sobre a graça, a
misericórdia, a iniciativa preveniente de Deus; mas, uma coisa é o que a
Escritura diz ou que os mestres ensinam, outra coisa o que os homens têm no
coração e que governa as suas ações.
O que aconteceu no momento
da Reforma protestante ajuda a entender a situação na época de Jesus e de
Paulo. Se se olha para a doutrina ensinada nas escolas de teologia da época,
para as definições antigas jamais contestadas, para os escritos de Agostinho
reverenciados com grande honra, ou também só para a Imitação de Cristo, leitura
diária das almas piedosas, se achará uma magnífica doutrina da graça e não se
compreenderá contra quem Lutero brigava; mas se se olha para a vivência cristã
da época, o resultado, já vimos, é bem diferente.
4. Como pregar a justificação pela fé hoje
O que concluir desse rápido
olhar aos cinco séculos desde o começo da Reforma protestante? É vital, de
fato, que o centenário da Reforma não seja desperdiçado permanecendo
prisioneiros do passado, procurando ver quem errou ou quem tem razão, talvez em
um tom mais conciliador do que no passado. Devemos, pelo contrário, dar um
passo à frente, como quando um rio chega a um estreitamente de leito e retoma o
seu curso em um nível mais alto.
A situação mudou desde
então. Os problemas que causaram a separação entre a Igreja de Roma e a Reforma
foram particularmente as indulgências e o modo como ocorre a justificação do
ímpio. Mas podemos dizer que estes são os problemas que levantam ou derrubam a
fé do homem de hoje? Em uma ocasião recordo que o cardeal Kasper fez esta
observação: para Lutero o problema existencial número um era como superar o
sentido de culpa e obter um Deus benevolente; hoje o problema é exatamente o
oposto: como dar novamente ao homem o sentido do pecado que desapareceu
totalmente.
Isto não significa ignorar o
enriquecimento realizado pela Reforma ou desejar voltar atrás, à época
anterior. Significa, pelo contrário, permitir que toda a cristandade se
beneficie das suas muitas e importantes conquistas, uma vez libertos de certas
distorções e excessos devido ao clima superaquecido do momento e da necessidade
de endireitar abusos grosseiros.
Dentre os excessos
resultantes da secular concentração sobre o problema da justificação do ímpio,
me parece que um seja o de ter feito do cristianismo ocidental um anúncio
sombrio, todo focado no pecado, que a cultura laica acabou por combater e
rejeitar. A coisa mais importante não é o que Jesus, com a sua morte, tirou do
homem – o pecado – , mas aquilo que doou, ou seja, o Espírito Santo. Muitos
exegetas consideram hoje o capítulo terceiro da Carta aos Romanos sobre a
justificação pela fé, como inseparável do capítulo oitavo sobre o dom do
Espírito e uma unidade com ele.
A justificação gratuita por
meio da fé em Cristo deveria ser pregada hoje por toda a Igreja e com mais
vigor do que nunca. Não, no entanto, em oposição às “obras” mencionadas no Novo
Testamento, mas em contraste com a pretensão do homem pós-moderno de salvar-se
sozinho com a sua ciência e tecnologia ou com espiritualidades improvisadas e
tranquilizantes. Estas são as "obras" em que o homem moderno confia.
Estou convencido de que, se Lutero voltasse à vida, esta seria a maneira pela
qual ele também pregaria hoje a justificação pela fé.
Uma outra coisa importante
devemos aprender todos, luteranos e católicos, do iniciador da Reforma. Para
ele, vimos, a justificação gratuita pela fé era acima de tudo uma experiência
vivida e só mais tarde teorizada. Infelizmente, depois dele, ela tornou-se cada
vez mais um argumento teológico a ser defendido ou combatido, e sempre menos
uma experiência pessoal e libertadora, a ser vivida na própria relação íntima
com Deus. A Declaração Conjunta de 1999 lembra apropriadamente que o consenso
alcançado por católicos e luteranos sobre verdades fundamentais da doutrina da
justificação deve ter efeitos e encontrar um impacto, não somente no
ensinamento da Igreja, mas também na vida das pessoas (n. 43).
Nunca devemos perder de
vista o ponto principal da mensagem paulina. Aquilo que o Apóstolo quer por
acima de tudo afirmar em Romanos 3 não é que somos justificados pela fé, mas
que somos justificados pela fé em Cristo; não é tanto que somos justificados
pela graça, mas que somos justificados pela graça de Cristo. É Cristo o coração
da mensagem, antes mesmo que a graça e a fé. É ele, hoje, o artigo com o qual a
Igreja está em pé ou cai: uma pessoa, não uma doutrina.
Devemos regozijar-nos porque
é isso que está acontecendo na Igreja e em maior medida do que geralmente
pensamos. Nos últimos meses pude participar de dois encontros: um na Suíça,
organizado por evangélicos com a participação dos católicos, o outro na
Alemanha organizado por católicos com a participação dos evangélicos. Este
último ocorreu em Augsburg, em janeiro passado, pareceu-me realmente um sinal
dos tempos. Havia 6000 católicos e 2000 luteranos, na maioria jovens,
provenientes de toda a Alemanha. O título em inglês era "Holy
Fascination", Santa Fascinação. Quem fascinava aquela multidão era Jesus
de Nazaré, feito presente e quase tangível pelo Espírito Santo. Por trás disso,
uma comunidade de leigos e uma casa de oração (Gebetshaus), ativa há anos e em
plena comunhão com a Igreja Católica local.
Não era um ecumenismo de
"somos amigos!". Missa catolicíssima, com muito incenso, presidida
uma vez por mim e uma vez pelo bispo auxiliar de Augsburg; outro dia, Santa
Ceia presidida por um pastor luterano, no pleno respeito mútuo pela própria
liturgia. Adoração, ensinamentos, música: um clima que só os jovens são capazes
de organizar hoje e que poderia servir como modelo para um evento particular
durante as Jornadas Mundiais da Juventude.
Certa vez perguntei aos
responsáveis se devia falar da unidade dos cristãos; me responderam: “Não,
preferimos viver a unidade, mais que falar dela”. Tinham razão. São sinais do
rumo que o Espírito – e com ele o Papa Francisco – nos convidam a andar.
Feliz e Santa Páscoa!
[1] M. Lutero, Prefácio às
obras em latim, ed. Weimar vol. 54, p. 186.
[2] S. Agostinho, De Spiritu
et littera, 32,56 (PL 44, 237).
[3] S. Gregorio Magno,
Homilias sobre Ezequiel, II, 7 (PL 76, 1018).
[4] S. Bernardo de Claraval,
Sermões sobre o Cântico, 61, 4-5( PL 183, 1072).
[5] S. Tomás de Aquino,
Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.
[6] Concílio di Trento,
“Decretum de iustificatione”, 7, in Denzinger – Schoenmetzer, Enchiridion
Symbolorum, ed. 34, nr. 1531.
[7] Clássico é o dístico com
o qual se expressa esta ordem: Littera gesta docet, quid credas allegoria. /
Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. A letra ensina o acontecido; o que
deve crer, a alegoria. / A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia.
[8] Cf. Henri de Lubac,
Histoire de l’exégèse médiévale. Le quatre sens de l’Ecriture, Paris, Aubier,
1959, Vol. I,1, pp. 139-157.
[9] Jacob Neusner, A Rabbi
Talks with Jesus, McGill-Queen’s University Press, Montreal 2000.
[10] Orígenes, Comentário à
Carta aos Romanos, II, 2 (PG 14, 873).
Fonte: Rádio Vaticano
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