Em suas Catequeses nn. 16-17 sobre Jesus Cristo o Papa São João Paulo II prossegue a reflexão sobre a relação entre o Pai e o Filho.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
16. Jesus Cristo, o Filho enviado
pelo Pai
João Paulo II - 24 de junho de
1987
1. O Prólogo do Evangelho de João,
ao qual foi dedicada a Catequese anterior, falando de Jesus como Logos,
Verbo, Filho de Deus, exprime sem sombra de dúvida o núcleo essencial da verdade
sobre Jesus Cristo; verdade que forma o conteúdo central da autorrevelação de Deus
na nova aliança e como tal é professada solenemente pela Igreja. É a fé
no Filho de Deus, que é “da mesma natureza do Pai” como
Verbo eterno, eternamente “gerado”, “Deus de Deus e Luz de Luz”, de modo algum
“criado” (ou adotado). O Prólogo manifesta ademais a verdade sobre adivinha
preexistência de Jesus Cristo como “Filho Unigênito” que está “no seio
do Pai”. Sobre esta base adquire destaque a verdade sobre a vinda do Deus-Filho
ao mundo - “O Verbo se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14)
- para cumprir uma particular missão da parte do Pai. Esta
missão (missio Verbi) possui uma importância essencial no plano
divino da salvação. Ela contém a suprema e definitiva realização do desígnio
salvífico de Deus em relação ao mundo e ao homem.
2. Em todo o Novo Testamento encontramos
expressa a verdade sobre o envio do Filho por parte do Pai, que se concretiza na
missão messiânica de Jesus Cristo. São particularmente significativas a
respeito as numerosas passagens do Evangelho de João, aos quais é
preciso recorrer antes de tudo.
Jesus Cristo, enviado do Pai (Giovanni Battista Gaulli, il Baciccio) |
Jesus diz, falando com os
discípulos e com seus próprios adversários: “É da parte de Deus que Eu
saí e vim. Eu não vim por mim mesmo; foi Ele quem me enviou” (Jo 8,42).
“Eu não estou só, mas o Pai que me enviou está comigo” (v. 16). “Eu dou testemunho
de mim mesmo, e também o Pai, que me enviou, dá testemunho de mim”
(v. 18). “Aquele que me enviou é verdadeiro, e vós não o conheceis. Eu o conheço
porque venho da parte d’Ele; foi Ele quem me enviou” (Jo 7,28-29).
“Essas mesma obras que Eu faço dão testemunho em meu favor, de que o Pai me enviou”
(Jo 5,36). “O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que
me enviou e levar a termo sua obra” (Jo 4,34).
3. Muitas vezes, como se vê no Evangelho
joanino, Jesus fala de Si mesmo - em primeira pessoa - como enviado
pelo Pai. A mesma verdade emergirá, de modo particular, na oração sacerdotal,
onde Jesus, recomendando seus discípulos ao Pai, enfatiza: “Eles... reconheceram
verdadeiramente que Eu saí de junto de ti, e creram que Tu me enviaste”
(Jo 17,8). E continuando esta oração, na véspera da sua Paixão, Jesus
diz: “Assim como Tu me enviaste ao mundo, Eu também os enviei ao mundo”
(v. 18). Quase em direta referência à oração sacerdotal, as primeiras palavras
dirigidas aos discípulos na tarde do dia da Ressurreição soam assim: “Como o Pai
me enviou, Eu também vos envio” (Jo 20,21).
4. Embora a verdade sobre Jesus Cristo
como Filho enviado pelo Pai seja enfatizada sobretudo nos textos joaninos, esta
também está contida nos Evangelhos Sinóticos. Deles resulta, por exemplo, que Jesus
disse: “Eu devo anunciar o evangelho do Reino de Deus também a outras cidades,
porque é para isso que fui enviado” (Lc 4,43).
Particularmente iluminadora é a parábola dos vinhateiros homicidas. Estes
maltratam os servos enviados pelo dono da vinha “para receber dos agricultores sua
parte dos frutos da vinha” e inclusive matam diversos deles. Por fim o dono
da vinha decide enviar-lhes seu próprio filho: “Agora restava ainda alguém:
o filho amado. Por último, então, enviou o filho aos agricultores, pensando: ‘A
meu filho respeitarão’. No entanto, aqueles agricultores disseram uns aos
outros: ‘Este é o herdeiro! Vamos matá-lo e a herança será
nossa’. E agarraram-no, mataram-no e o lançaram fora da vinha” (Mc 12,6-8).
Comentando a parábola, Jesus se refere à expressão do Salmo 117 sobre
a pedra rejeitada pelos construtores: precisamente esta pedra se converteu em pedra
angular (cf. Sl 117,22).
5. A parábola do filho enviado aos
vinhateiros é relatada em todos os Sinóticos (cf. Mc 12,1-12; Mt 21,33-46; Lc 20,9-19);
Nela se manifesta claramente a verdade sobre Cristo como Filho enviado pelo Pai.
É destacado claramente, ademais, o caráter sacrifical e redentor deste envio. O
Filho é verdadeiramente “Aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo 10,36).
Assim, pois, Deus não só “nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio
do Filho” (cf. Hb 1,1-2), mas entregou este
Filho por nós, em um ato de inconcebível amor, enviando-o ao mundo.
6. Com esta linguagem continua falando
de modo particularmente intenso o Evangelho de João: “De tal modo Deus amou
o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que n’Ele
crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).
E acrescenta: “O Pai enviou o seu Filho como salvador do mundo” (cf.
v. 17). Em outro lugar, João escreve: “Deus é amor. Foi assim que o
amor de Deus se manifestou entre nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo
para que vivamos por Ele. (...) não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele
que nos amou e enviou o seu Filho como oferenda de expiação pelos
nossos pecados” (1Jo 4,8-10) Por isso acrescenta que, acolhendo Jesus,
o seu Evangelho, a sua Morte e Ressurreição, “reconhecemos e cremos no amor que
Deus tem para conosco. Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus e
Deus permanece nele” (v. 16).
7. Paulo expressa a mesma verdade na
Carta aos Romanos: “Deus que não poupou seu próprio Filho, mas o
entregou por todos nós, como é que, com Ele, não nos daria todas as coisas?”
(Rm 8,32). Cristo foi “entregue” por nós, como lemos em Jo 3,16;
foi “entregue” em sacrifício “por todos nós”. O Pai “enviou o seu Filho
como oferenda de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,10). O
Símbolo da fé professa esta mesma verdade: “Por nós, homens, e para nossa
salvação, (o Verbo de Deus) desceu dos céus”.
8. A verdade sobre Jesus Cristo
como Filho enviado pelo Pai para a redenção do mundo, para a salvação e a libertação
do homem prisioneiro do pecado (e, por conseguinte, das forças das trevas),
constitui o conteúdo central da Boa-Nova. Cristo Jesus é o “Filho Unigênito”
(Jo 1,18) que, para cumprir sua missão messiânica, “não considerou
um privilégio ser igual a Deus, mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo
e tornando-se semelhante ao ser humano... fazendo-se obediente até a morte” (Fl 2,6-8).
E nesta condição livremente aceita por Ele como homem, como Servo do Senhor, proclamava:
“O Pai é maior do que Eu” (Jo 14,28); e ainda: “Eu sempre
faço o que é do seu agrado” (Jo 8,29).
Precisamente esta obediência ao
Pai, livremente aceita, esta submissão ao Pai, em antítese à “desobediência” do
primeiro Adão, permanece a expressão da mais profunda união entre o Pai
e o Filho, reflexo da unidade trinitária: “É preciso que o mundo saiba que Eu
amo o Pai e faço como o Pai me mandou” (Jo 14,31). Com efeito, esta
união de vontades em função da salvação do homem revela definitivamente a
verdade sobre Deus, na sua Essência íntima: o Amor; e, ao mesmo tempo,
revela a fonte originária da salvação do mundo e do homem: a “Vida que é a luz
dos homens” (cf. Jo 1,4).
17. “Abbá”
João Paulo II - 01 de julho de
1987
1. Provavelmente não há palavra
que exprima melhor a autorrevelação de Deus no Filho do que a palavra “Abbá-Pai”. “Abbá”
é uma expressão aramaica que foi mantida no texto grego do Evangelho de
Marcos. Ela aparece precisamente quando Jesus se dirige ao Pai (cf. Mc
14,36). E embora esta palavra possa ser traduzida em qualquer língua, nos lábios
de Jesus de Nazaré permite-nos perceber melhor seu conteúdo único, irrepetível.
2. “Abbá”, com efeito, exprime
não só o tradicional louvor de Deus - “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra...”
(Mt 11,25) -, mas, nos lábios de Jesus, revela também a consciência
da relação única e exclusiva que existe entre o Pai e Ele, entre Ele e
o Pai. Exprime a mesma realidade à qual Jesus se refere de forma tão simples e
ao mesmo tempo tão extraordinária com as palavras conservadas no texto do Evangelho
de Mateus e também no de Lucas: “Ninguém conhece o Filho, senão o
Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar” (Mt 11,27; Lc 10,22). Ou seja, a palavra “Abbá” manifesta
não só o mistério do vínculo recíproco entre o Pai e o Filho, mas resume de alguma
forma toda a verdade da vida íntima de Deus em sua profundidade
trinitária: aquele conhecimento recíproco do Pai e do Filho, do qual procede
o eterno Amor (o Espírito Santo).
3. A palavra “Abbá” pertence
à linguagem da família e testemunha aquela particular comunhão de pessoas que
há entre o pai e o filho por ele gerado, entre o filho que ama
o pai e é amado por ele. Quando Jesus utilizava essa palavra para falar de Deus,
devia de maravilhar e também escandalizar os seus ouvintes. Um israelita não a teria
usado nem mesmo na oração. Só quem se considerava filho de Deus em sentido próprio
podia falar d’Ele assim e dirigir-se a Ele como Pai. “Abbá”, ou
seja, “meu Pai”, “Papai”.
4. Em um texto de Jeremias se fala
de Deus que espera ser invocado como Pai: “Vós me chamareis de Pai...” (Jr 3,19).
É como uma profecia que teria seu cumprimento nos tempos messiânicos. Jesus de
Nazaré a realizou e superou ao falar de Si mesmo, em sua relação com Deus, como
Aquele que “conhece o Pai”, servindo-se da expressão filial “Abbá”. Ele constantemente
fala do Pai, e invoca o Pai como quem tem direito a dirigir-se a Ele simplesmente
com o apelativo: “Abbá, meu Pai”.
5. Tudo isto foi destacado pelos evangelistas.
De modo particular no Evangelho de Marcos se lê que durante a oração no
Getsêmani Jesus exclamou: “Abbá, Pai! Tudo te é possível. Afasta de mim
este cálice! Contudo, não seja o que Eu quero, mas o que Tu queres” (Mc 14,36).
A passagem paralela de Mateus traz: “Meu Pai”, ou seja, “Abbá”,
ainda que a palavra aramaica não seja relatada literalmente (cf. Mt 26,39.42).
Mesmo quando o texto evangélico se limita à expressão “Pai” (Lc 22,42
e, também, em outro contexto, Jo 12,27), o conteúdo essencial é idêntico.
6. Jesus “treinou” os seus ouvintes
para entender que em seus lábios a palavra “Deus”, e em particular a palavra “Pai”,
significava “Abbá, meu Pai”. Assim, desde a infância, quando tinha
apenas 12 anos, Jesus diz aos seus pais que o estavam buscando por três dias: “Não
sabíeis que Eu devo estar naquilo que é de meu Pai?” (Lc 2,49).
E, no fim da sua vida, na oração sacerdotal com a qual conclui
a sua missão, insiste em pedir a Deus: “Pai, chegou a hora. Glorifica teu Filho,
para que teu Filho te glorifique” (Jo 17,1); “Pai Santo, guarda em
teu nome os que me deste...” (v. 11). “Pai justo, o mundo não te conheceu, mas
Eu te conheci...” (v. 25). Já no anúncio das realidades últimas, na parábola
sobre o juízo final, Ele se apresenta como Aquele que proclama: “Vinde, benditos
de meu Pai!” (Mt 25,34). Na cruz, então, Ele pronuncia estas
últimas palavras: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”
(Lc 23,46). Ressuscitado, por fim, anuncia aos discípulos: “Eu
enviarei sobre vós o que meu Pai prometeu” (Lc 24,49).
7. Jesus Cristo, que “conhece o Pai”
tão profundamente, veio para “manifestar seu nome aos homens que o Pai lhe confiou”
(cf. Jo 17,6). Um momento particular desta revelação
do Pai é a resposta que Ele dá aos seus discípulos quando lhe pedem: “Ensina-nos
a orar” (Lc 11,1). Ele lhes dita então a oração que começa com as palavras “Pai
nosso” (Mt 6,9-13) ou então “Pai” (Lc 11,2-4).
Mediante a revelação desta oração, os discípulos descobrem que eles participam
de modo especial na filiação divina, sobre a qual o Apóstolo João dirá no Prólogo
do seu Evangelho: “A quantos o receberam (isto é, a quantos receberam o Verbo
que se fez carne), deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12).
Por isso, segundo seu próprio ensinamento, rezam com toda razão dizendo “Pai nosso...”.
8. Jesus, porém, faz sempre distinção
entre “meu Pai” e “vosso Pai”. Inclusive depois da Ressurreição
diz a Maria Madalena: “Vai dizer aos meus irmãos que subo para junto do meu Pai
e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17). Além disso, cabe
notar que em nenhuma passagem do Evangelho se lê que Jesus tenha recomendado aos
discípulos rezar usando a palavra “Abbá”. Esta se refere exclusivamente
à sua pessoal relação filial com o Pai. Ao mesmo tempo, porém,
o “Abbá” de Jesus em realidade é Aquele que é também “Pai nosso”, como
se deduz da oração ensinada aos discípulos: o é por participação, ou
melhor, por adoção, como ensinaram os teólogos seguindo os passos de
São Paulo, que na Carta aos Gálatas escreve: “Deus enviou seu Filho...
para que recebêssemos, a dignidade de filhos” (cf. Gl 4,4-5;
cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica III q. 23, aa. 1 e 2).
9. Neste contexto convém ler e
interpretar também as sucessivas palavras da Carta de Paulo aos Gálatas:
“E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o
Espírito do seu Filho, que clama ‘Abbá, Pai!’” (v. 6); e as palavras da Carta aos Romanos:
“Não recebestes espírito de escravos..., mas recebestes o Espírito de adoção
filial, no qual clamamos: ‘Abbá, Pai!’” (Rm 8,15). Quando,
portanto, como filhos adotivos (adotados em Cristo) - “filhos no Filho”, diz São
Paulo (cf. Rm 8,29) -, clamamos a Deus “Pai”, “Pai nosso”, estas palavras
se referem ao mesmo Deus ao qual Jesus com incomparável intimidade dizia: “Abbá,
meu Pai”.
“Abbá, Pai” |
Tradução nossa a partir do texto
italiano divulgado no site da Santa Sé (24 de junho e 01 de julho de 1987).
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