quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 11

Em suas Catequeses nn. 16-17 sobre Jesus Cristo o Papa São João Paulo II prossegue a reflexão sobre a relação entre o Pai e o Filho.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO

16. Jesus Cristo, o Filho enviado pelo Pai
João Paulo II - 24 de junho de 1987

1. O Prólogo do Evangelho de João, ao qual foi dedicada a Catequese anterior, falando de Jesus como Logos, Verbo, Filho de Deus, exprime sem sombra de dúvida o núcleo essencial da verdade sobre Jesus Cristo; verdade que forma o conteúdo central da autorrevelação de Deus na nova aliança e como tal é professada solenemente pela Igreja. É a fé no Filho de Deus, que é “da mesma natureza do Pai como Verbo eterno, eternamente “gerado”, “Deus de Deus e Luz de Luz”, de modo algum “criado” (ou adotado). O Prólogo manifesta ademais a verdade sobre adivinha preexistência de Jesus Cristo como “Filho Unigênito” que está “no seio do Pai”. Sobre esta base adquire destaque a verdade sobre a vinda do Deus-Filho ao mundo - “O Verbo se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14) - para cumprir uma particular missão da parte do Pai. Esta missão (missio Verbi) possui uma importância essencial no plano divino da salvação. Ela contém a suprema e definitiva realização do desígnio salvífico de Deus em relação ao mundo e ao homem.

2. Em todo o Novo Testamento encontramos expressa a verdade sobre o envio do Filho por parte do Pai, que se concretiza na missão messiânica de Jesus Cristo. São particularmente significativas a respeito as numerosas passagens do Evangelho de João, aos quais é preciso recorrer antes de tudo.

Jesus Cristo, enviado do Pai
(Giovanni Battista Gaulli, il Baciccio)

Jesus diz, falando com os discípulos e com seus próprios adversários: “É da parte de Deus que Eu saí e vim. Eu não vim por mim mesmo; foi Ele quem me enviou” (Jo 8,42). “Eu não estou só, mas o Pai que me enviou está comigo” (v. 16). “Eu dou testemunho de mim mesmo, e também o Pai, que me enviou, dá testemunho de mim” (v. 18). “Aquele que me enviou é verdadeiro, e vós não o conheceis. Eu o conheço porque venho da parte d’Ele; foi Ele quem me enviou” (Jo 7,28-29). “Essas mesma obras que Eu faço dão testemunho em meu favor, de que o Pai me enviou” (Jo 5,36). “O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que me enviou e levar a termo sua obra” (Jo 4,34).

3. Muitas vezes, como se vê no Evangelho joanino, Jesus fala de Si mesmo - em primeira pessoa - como enviado pelo Pai. A mesma verdade emergirá, de modo particular, na oração sacerdotal, onde Jesus, recomendando seus discípulos ao Pai, enfatiza: “Eles... reconheceram verdadeiramente que Eu saí de junto de ti, e creram que Tu me enviaste” (Jo 17,8). E continuando esta oração, na véspera da sua Paixão, Jesus diz: “Assim como Tu me enviaste ao mundo, Eu também os enviei ao mundo” (v. 18). Quase em direta referência à oração sacerdotal, as primeiras palavras dirigidas aos discípulos na tarde do dia da Ressurreição soam assim: “Como o Pai me enviou, Eu também vos envio” (Jo 20,21).

4. Embora a verdade sobre Jesus Cristo como Filho enviado pelo Pai seja enfatizada sobretudo nos textos joaninos, esta também está contida nos Evangelhos Sinóticos. Deles resulta, por exemplo, que Jesus disse: “Eu devo anunciar o evangelho do Reino de Deus também a outras cidades, porque é para isso que fui enviado” (Lc 4,43). Particularmente iluminadora é a parábola dos vinhateiros homicidas. Estes maltratam os servos enviados pelo dono da vinha “para receber dos agricultores sua parte dos frutos da vinha” e inclusive matam diversos deles. Por fim o dono da vinha decide enviar-lhes seu próprio filho: “Agora restava ainda alguém: o filho amado. Por último, então, enviou o filho aos agricultores, pensando: ‘A meu filho respeitarão’. No entanto, aqueles agricultores disseram uns aos outros: ‘Este é o herdeiro! Vamos matá-lo e a herança será nossa’. E agarraram-no, mataram-no e o lançaram fora da vinha” (Mc 12,6-8). Comentando a parábola, Jesus se refere à expressão do Salmo 117 sobre a pedra rejeitada pelos construtores: precisamente esta pedra se converteu em pedra angular (cf. Sl 117,22).

5. A parábola do filho enviado aos vinhateiros é relatada em todos os Sinóticos (cf. Mc 12,1-12; Mt 21,33-46; Lc 20,9-19); Nela se manifesta claramente a verdade sobre Cristo como Filho enviado pelo Pai. É destacado claramente, ademais, o caráter sacrifical e redentor deste envio. O Filho é verdadeiramente “Aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo 10,36). Assim, pois, Deus não só “nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (cf. Hb 1,1-2), mas entregou este Filho por nós, em um ato de inconcebível amor, enviando-o ao mundo.

6. Com esta linguagem continua falando de modo particularmente intenso o Evangelho de João: “De tal modo Deus amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). E acrescenta: “O Pai enviou o seu Filho como salvador do mundo” (cf. v. 17). Em outro lugar, João escreve: “Deus é amor. Foi assim que o amor de Deus se manifestou entre nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos por Ele. (...) não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o seu Filho como oferenda de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,8-10) Por isso acrescenta que, acolhendo Jesus, o seu Evangelho, a sua Morte e Ressurreição, “reconhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” (v. 16).

7. Paulo expressa a mesma verdade na Carta aos Romanos: “Deus que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como é que, com Ele, não nos daria todas as coisas?” (Rm 8,32). Cristo foi “entregue” por nós, como lemos em Jo 3,16; foi “entregue” em sacrifício “por todos nós”. O Pai “enviou o seu Filho como oferenda de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,10). O Símbolo da fé professa esta mesma verdade: “Por nós, homens, e para nossa salvação, (o Verbo de Deus) desceu dos céus”.

8. A verdade sobre Jesus Cristo como Filho enviado pelo Pai para a redenção do mundo, para a salvação e a libertação do homem prisioneiro do pecado (e, por conseguinte, das forças das trevas), constitui o conteúdo central da Boa-Nova. Cristo Jesus é o “Filho Unigênito” (Jo 1,18) que, para cumprir sua missão messiânica, “não considerou um privilégio ser igual a Deus, mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante ao ser humano... fazendo-se obediente até a morte” (Fl 2,6-8). E nesta condição livremente aceita por Ele como homem, como Servo do Senhor, proclamava: “O Pai é maior do que Eu” (Jo 14,28); e ainda: “Eu sempre faço o que é do seu agrado” (Jo 8,29).

Precisamente esta obediência ao Pai, livremente aceita, esta submissão ao Pai, em antítese à “desobediência” do primeiro Adão, permanece a expressão da mais profunda união entre o Pai e o Filho, reflexo da unidade trinitária: “É preciso que o mundo saiba que Eu amo o Pai e faço como o Pai me mandou” (Jo 14,31). Com efeito, esta união de vontades em função da salvação do homem revela definitivamente a verdade sobre Deus, na sua Essência íntima: o Amor; e, ao mesmo tempo, revela a fonte originária da salvação do mundo e do homem: a “Vida que é a luz dos homens” (cf. Jo 1,4).

17. “Abbá
João Paulo II - 01 de julho de 1987

1. Provavelmente não há palavra que exprima melhor a autorrevelação de Deus no Filho do que a palavra “Abbá-Pai”. “Abbá” é uma expressão aramaica que foi mantida no texto grego do Evangelho de Marcos. Ela aparece precisamente quando Jesus se dirige ao Pai (cf. Mc 14,36). E embora esta palavra possa ser traduzida em qualquer língua, nos lábios de Jesus de Nazaré permite-nos perceber melhor seu conteúdo único, irrepetível.

2. “Abbá”, com efeito, exprime não só o tradicional louvor de Deus - “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra...” (Mt 11,25) -, mas, nos lábios de Jesus, revela também a consciência da relação única e exclusiva que existe entre o Pai e Ele, entre Ele e o Pai. Exprime a mesma realidade à qual Jesus se refere de forma tão simples e ao mesmo tempo tão extraordinária com as palavras conservadas no texto do Evangelho de Mateus e também no de Lucas: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27; Lc 10,22). Ou seja, a palavra “Abbá” manifesta não só o mistério do vínculo recíproco entre o Pai e o Filho, mas resume de alguma forma toda a verdade da vida íntima de Deus em sua profundidade trinitária: aquele conhecimento recíproco do Pai e do Filho, do qual procede o eterno Amor (o Espírito Santo).

3. A palavra Abbá” pertence à linguagem da família e testemunha aquela particular comunhão de pessoas que há entre o pai e o filho por ele gerado, entre o filho que ama o pai e é amado por ele. Quando Jesus utilizava essa palavra para falar de Deus, devia de maravilhar e também escandalizar os seus ouvintes. Um israelita não a teria usado nem mesmo na oração. Só quem se considerava filho de Deus em sentido próprio podia falar d’Ele assim e dirigir-se a Ele como Pai. “Abbá”, ou seja, “meu Pai”, “Papai”.

4. Em um texto de Jeremias se fala de Deus que espera ser invocado como Pai: “Vós me chamareis de Pai...” (Jr 3,19). É como uma profecia que teria seu cumprimento nos tempos messiânicos. Jesus de Nazaré a realizou e superou ao falar de Si mesmo, em sua relação com Deus, como Aquele que “conhece o Pai”, servindo-se da expressão filial “Abbá”. Ele constantemente fala do Pai, e invoca o Pai como quem tem direito a dirigir-se a Ele simplesmente com o apelativo: “Abbá, meu Pai”.

5. Tudo isto foi destacado pelos evangelistas. De modo particular no Evangelho de Marcos se lê que durante a oração no Getsêmani Jesus exclamou: “Abbá, Pai! Tudo te é possível. Afasta de mim este cálice! Contudo, não seja o que Eu quero, mas o que Tu queres” (Mc 14,36). A passagem paralela de Mateus traz: “Meu Pai”, ou seja, “Abbá”, ainda que a palavra aramaica não seja relatada literalmente (cf. Mt 26,39.42). Mesmo quando o texto evangélico se limita à expressão “Pai” (Lc 22,42 e, também, em outro contexto, Jo 12,27), o conteúdo essencial é idêntico.

6. Jesus “treinou” os seus ouvintes para entender que em seus lábios a palavra “Deus”, e em particular a palavra “Pai”, significava “Abbá, meu Pai”. Assim, desde a infância, quando tinha apenas 12 anos, Jesus diz aos seus pais que o estavam buscando por três dias: “Não sabíeis que Eu devo estar naquilo que é de meu Pai?” (Lc 2,49). E, no fim da sua vida, na oração sacerdotal com a qual conclui a sua missão, insiste em pedir a Deus: “Pai, chegou a hora. Glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique” (Jo 17,1); “Pai Santo, guarda em teu nome os que me deste...” (v. 11). “Pai justo, o mundo não te conheceu, mas Eu te conheci...” (v. 25). Já no anúncio das realidades últimas, na parábola sobre o juízo final, Ele se apresenta como Aquele que proclama: “Vinde, benditos de meu Pai!” (Mt 25,34). Na cruz, então, Ele pronuncia estas últimas palavras: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Ressuscitado, por fim, anuncia aos discípulos: “Eu enviarei sobre vós o que meu Pai prometeu” (Lc 24,49).

7. Jesus Cristo, que “conhece o Pai” tão profundamente, veio para “manifestar seu nome aos homens que o Pai lhe confiou” (cf. Jo 17,6). Um momento particular desta revelação do Pai é a resposta que Ele dá aos seus discípulos quando lhe pedem: “Ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Ele lhes dita então a oração que começa com as palavras “Pai nosso (Mt 6,9-13) ou então “Pai” (Lc 11,2-4). Mediante a revelação desta oração, os discípulos descobrem que eles participam de modo especial na filiação divina, sobre a qual o Apóstolo João dirá no Prólogo do seu Evangelho: “A quantos o receberam (isto é, a quantos receberam o Verbo que se fez carne), deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12). Por isso, segundo seu próprio ensinamento, rezam com toda razão dizendo “Pai nosso...”.

8. Jesus, porém, faz sempre distinção entre “meu Pai” e “vosso Pai”. Inclusive depois da Ressurreição diz a Maria Madalena: “Vai dizer aos meus irmãos que subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17). Além disso, cabe notar que em nenhuma passagem do Evangelho se lê que Jesus tenha recomendado aos discípulos rezar usando a palavra “Abbá”. Esta se refere exclusivamente à sua pessoal relação filial com o Pai. Ao mesmo tempo, porém, o “Abbá” de Jesus em realidade é Aquele que é também “Pai nosso”, como se deduz da oração ensinada aos discípulos: o é por participação, ou melhor, por adoção, como ensinaram os teólogos seguindo os passos de São Paulo, que na Carta aos Gálatas escreve: “Deus enviou seu Filho... para que recebêssemos, a dignidade de filhos” (cf. Gl 4,4-5; cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica III q. 23, aa. 1 e 2).

9. Neste contexto convém ler e interpretar também as sucessivas palavras da Carta de Paulo aos Gálatas: “E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama ‘Abbá, Pai!’”  (v. 6); e as palavras da Carta aos Romanos: “Não recebestes espírito de escravos..., mas recebestes o Espírito de adoção filial, no qual clamamos: ‘Abbá, Pai!’” (Rm 8,15). Quando, portanto, como filhos adotivos (adotados em Cristo) - “filhos no Filho”, diz São Paulo (cf. Rm 8,29) -, clamamos a Deus “Pai”, “Pai nosso”, estas palavras se referem ao mesmo Deus ao qual Jesus com incomparável intimidade dizia: “Abbá, meu Pai”.

Abbá, Pai”

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (24 de junho e 01 de julho de 1987).

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