A reflexão sobre Jesus como Filho de Deus está no centro das Catequeses nn. 12-13 do Papa São João Paulo II sobre Jesus Cristo.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO
12. Jesus Cristo, Filho de Deus
João Paulo II - 13 de maio de 1987
1. Como vimos nas Catequeses anteriores,
o nome “Cristo”, na linguagem do Antigo Testamento, significa “Messias”.
Israel, o povo de Deus da antiga aliança, viveu na expectativa da realização da
promessa do Messias, que se cumpriu em Jesus de Nazaré. Por isso desde
o começo Jesus é chamado “Cristo” - isto é, “Messias” - e foi aceito como tal
por todos aqueles que “o receberam” (Jo 1,12).
2. Vimos que, segundo a tradição da
antiga aliança, o Messias é Rei e que este Rei messiânico é chamado
também Filho de Deus, nome que no âmbito do monoteísmo javista do Antigo
Testamento tem um significado exclusivamente analógico, e mesmo metafórico.
Não se trata nesses livros do Filho “gerado” por Deus, mas de alguém que Deus escolhe,
confiando-lhe uma particular missão ou ministério.
Jesus Cristo, Filho Unigênito do Pai (Viktor Vasnetsov) |
3. Neste sentido também todo o povo
é às vezes denominado “filho”, como, por exemplo, nas palavras de Yahweh
a Moisés: “Tu dirás ao faraó: (...) Israel é meu filho, meu primogênito...
deixa ir o meu filho para que me sirva” (Ex 4,22-23; cf.
também Os 11,1; Jr 31,9). Se, pois, o rei é chamado
“filho de Deus” na antiga aliança, é porque, na teocracia israelita, ele é um particular
representante de Deus.
Vemo-lo, por exemplo, no Salmo 2,
em relação à entronização do rei: “O Senhor me disse: ‘Tu és o meu filho, Eu hoje
te gerei!’” (v. 7). Também no Salmo 88 lemos: “Ele (Davi) me invocará: ‘Tu és meu
pai...’. Eu o constituirei como meu primogênito, o mais elevado entre os reis da
terra” (vv. 27-28). Na sequência, o profeta Natã dirá a respeito da descendência
de Davi: “Eu serei para ele pai e ele será para mim filho. Se proceder mal, Eu o
castigarei...” (2Sm 7,14).
Todavia, no Antigo Testamento, através
do seu significado analógico e metafórico, parece que a expressão
“filho de Deus” diz respeito a outro, que permanece obscuro. Assim, no citado Salmo 2, Deus diz ao
rei: “Tu és o meu filho, Eu hoje te gerei!” (v. 7); e, no Salmo 109: “Do seio,
antes da aurora Eu te gerei” (v. 3).
4. É preciso ter presente este “pano
de fundo” bíblico-messiânico para dar-se conta de que o modo de agir
e de expressar-se de Jesus indica a consciência de uma realidade
completamente nova.
Ainda que nos Evangelhos Sinóticos
Jesus jamais se defina como Filho de Deus (assim como não se autodenomina Messias),
de diversos modos Ele afirma e faz compreender que é o Filho de Deus,
e não em sentido analógico ou metafórico, mas natural.
5. Ele inclusive enfatiza a
exclusividade da sua relação filial com Deus. Nunca diz de Deus: “nosso
Pai”, mas só “meu Pai”, ou então distingue: “meu Pai e vosso Pai”. Não hesita em
afirmar: “Tudo me foi entregue por meu Pai” (Mt 11,27).
Esta exclusividade da relação
filial com Deus se manifesta particularmente na oração, quando Jesus
se dirige a Deus como Pai usando a palavra aramaica “Abbá”, que indica uma
particular proximidade filial e, na boca de Jesus, constitui uma expressão da
sua total entrega à vontade do Pai: “Abbá, Pai! Tudo te é possível. Afasta
de mim este cálice!” (Mc 14,36).
Outras vezes Jesus usa a expressão
“vosso Pai”; por exemplo: “como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36);
“vosso Pai, que está nos céus” (Mc 11,25). Ele enfatiza assim o caráter
específico da sua própria relação com o Pai, desejando ao mesmo tempo que
esta paternidade divina se comunique a outros, como atesta a oração do “Pai nosso”
que Jesus ensinou aos seus Apóstolos e seguidores.
6. A verdade sobre Cristo
como Filho de Deus é o ponto de convergência de todo o Novo
Testamento. Os Evangelhos, especialmente o Evangelho de João, e
os escritos dos Apóstolos, de modo particular as Cartas de São Paulo, nos oferecem
testemunhos explícitos. Nesta Catequeses nos centraremos apenas em algumas
afirmações particularmente significativas que, em certo sentido, nos “abrem
o caminho” para a descoberta da verdade sobre Cristo como Filho de Deus e nos aproximam
da correta percepção desta “filiação”.
7. É importante constatar que a
convicção da filiação divina de Jesus foi confirmada
por uma voz do céu durante o batismo no Jordão (cf. Mc 1,11;
Mt 3,17; Lc 3,22) e no monte da Transfiguração (cf. Mc 9,7;
Mt 17,5; Lc 9,35). Em ambos casos, os evangelistas nos falam da proclamação
feita pelo Pai acerca de Jesus, seu “Filho amado”.
Os Apóstolos tiveram uma confirmação
análoga de parte dos espíritos malignos que protestavam contra
Jesus: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos arruinar? Eu sei
quem tu és: o Santo de Deus!” (Mc 1, 24). “Que queres de mim, Jesus,
Filho do Deus Altíssimo?” (Mc 5,7).
8. Se depois escutamos o testemunho
dos homens, merece especial atenção a confissão de Simão Pedro próximo
a Cesareia de Filipe: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16).
Note-se que esta profissão de fé foi confirmada de modo insolitamente
solene por Jesus: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi
carne e sangue que te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16,17).
Não se trata de um fato isolado. No
mesmo Evangelho de Mateus lemos que, ao ver Jesus caminhar sobre as águas
do lago de Genesaré, acalmar o vento e salvar Pedro, os Apóstolos se prostraram
diante do Mestre, dizendo: “Verdadeiramente tu és o Filho de Deus!” (Mt 14,33).
9. Assim, pois, aquilo que Jesus fazia
e ensinava alimentava nos Apóstolos a convicção de que Ele era não só o Messias,
mas também o verdadeiro “Filho de Deus”. E Jesus confirmou tal convicção.
Foram precisamente algumas das
afirmações proferidas por Jesus que suscitaram contra Ele a acusação de
blasfêmia. Disso resultaram momentos particularmente dramáticos, como atesta
o Evangelho de João, onde se lê que os judeus “procuravam matá-lo, porque
não só violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu Pai, fazendo-se igual
a Deus” (Jo 5,18).
O mesmo problema foi levantado no processo
movido contra Jesus diante do Sinédrio: Caifás, sumo sacerdote, o
interpelou: “Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos digas se tu és o
Cristo, o Filho de Deus”. A esta pergunta, Jesus responde
simplesmente: “Tu o disseste”, isto é, “Sim, Eu sou” (cf. Mt 26,63-64).
Também no processo diante de Pilatos, embora houvesse outra acusação, isto é, a
de fazer-se proclamar rei, os judeus repetem a acusação fundamental: “Nós temos
uma lei, e segundo esta lei ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”
(Jo 19,7).
10. Assim, podemos dizer que
definitivamente Jesus morreu na cruz pela verdade acerca da sua filiação
divina. Ainda que a inscrição colocada sobre a cruz, a declaração oficial da
condenação, dizia: “Jesus Nazareno, o Rei dos judeus”, São Mateus faz notar que
“os que passavam por ali o insultavam, balançando a cabeça e dizendo: ‘(...) Se
és o Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,39-40). E ainda: “Confiou
em Deus, que o livre agora, se é que o ama! De fato, Ele disse: ‘Eu sou Filho
de Deus’” (v. 43).
Esta verdade se encontra no centro
do acontecimento do Gólgota. No passado foi objeto da convicção, da proclamação
e do testemunho dado pelos Apóstolos, agora se converteu em objeto de escárnio.
E, no entanto, também aqui, o centurião romano que vigia a agonia
de Jesus e ouve as palavras com as quais Ele se dirige ao Pai, no momento da morte,
ele - um pagão - oferece um último e surpreendente testemunho da identidade
divina de Cristo: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39).
11. As palavras do centurião
romano sobre a verdade fundamental do Evangelho e de todo o Novo
Testamento nos remetem àquelas que o Anjo dirige a Maria no momento da Anunciação:
“Conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será
grande e será chamado Filho do Altíssimo...” (Lc 1,31-32). E quando
Maria pergunta “Como acontecerá isso?”, o mensageiro lhe responde: “O Espírito
Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra. Por isso,
aquele que vai nascer é santo e será chamado Filho de Deus” (vv. 34-35).
12. Em virtude da consciência que Jesus
tinha de ser Filho de Deus no sentido real, natural da palavra, Ele
“dizia que Deus era seu Pai...” (Jo 5,18). Com a mesma convicção, não
hesitou em dizer aos seus adversários e acusadores: “Em verdade, em verdade vos
digo: antes que Abraão existisse, Eu sou” (Jo 8,58).
Neste “Eu sou” está a verdade sobre
a filiação divina que precede não só o tempo de Abraão, mas todo tempo e toda a
existência criada.
Dirá São João na conclusão do seu Evangelho:
“Estes (sinais) foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho
de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31).
13. No coração do testemunho evangélico
João Paulo II - 20 de maio de 1987
1. O ciclo das Catequeses sobre Jesus
Cristo aproxima-se gradualmente do seu centro, permanecendo em relação
constante com o artigo do Símbolo no qual confessamos: “Creio em... Jesus
Cristo, Filho Unigênito de Deus”. As Catequeses anteriores nos prepararam
para esta verdade central, mostrando antes de tudo o caráter messiânico de Jesus
de Nazaré. Verdadeiramente a promessa do Messias - presente em
toda a Revelação da antiga aliança como principal conteúdo das expectativas de
Israel - encontra seu cumprimento n’Aquele que costumava autodenominar-se
“Filho do homem”.
À luz das obras e das palavras de Jesus
fica cada vez mais claro que Ele é, ao mesmo tempo, o verdadeiro Filho
de Deus. Esta é uma verdade muito difícil de admitir para uma mentalidade
enraizada em um rígido monoteísmo religioso, como era a mentalidade dos
israelitas contemporâneos de Jesus. Nossas Catequeses sobre Jesus Cristo entram
agora justamente no âmbito desta verdade, que determina a novidade
essencial do Evangelho - e da qual depende toda a originalidade do Cristianismo
como religião fundada na fé no Filho de Deus que se fez homem por nós.
2. Os Símbolos da fé se
centram nesta verdade fundamental a respeito de Jesus Cristo.
No Símbolo Apostólico confessamos:
“Creio em Deus, Pai todo-poderoso... e em Jesus Cristo, seu único Filho...”. Só
sucessivamente o Símbolo Apostólico enfatiza o fato de que o Filho Unigênito do
Pai é o mesmo Jesus Cristo como Filho do homem: “Que foi concebido pelo poder
do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria”.
O Símbolo Niceno-Constantinopolitano expressa
a mesma realidade com palavras ligeiramente distintas: “Por nós, homens, e para
nossa salvação, desceu dos céus: e se encarnou (em latim: incarnatus
est) pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”.
Antes ainda, no entanto, o mesmo
Símbolo apresenta de modo muito mais amplo a verdade da filiação divina de Jesus
Cristo, Filho do homem: “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso... Creio em um
só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de
todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as
coisas foram feitas”. Estas últimas palavras enfatizam ainda mais a unidade na
divindade do Filho com o Pai, que é “criador do céu e da terra, de todas as
coisas visíveis e invisíveis”.
3. Os Símbolos expressam a fé da
Igreja de modo conciso, mas, precisamente graças à sua concisão, captam as
verdades mais essenciais: aquelas que constituem como que a “medula”, o “núcleo”
da fé cristã, a plenitude e o ápice da autorrevelação de Deus. Segundo
a expressão do autor da Carta aos Hebreus, “muitas vezes e de muitos modos
Deus falou outrora” e, por fim, falou à humanidade “por meio do Filho” (Hb 1,1-2).
Difícil não reconhecer indicada aqui a autêntica plenitude da Revelação. Deus não
só fala de Si por meio dos homens chamados a falar em seu nome,
mas, em Jesus Cristo, Deus mesmo, falando “por meio do Filho”, se torna o sujeito
da Palavra que revela. Ele mesmo fala de Si mesmo. Sua palavra
contém em si a autorrevelação de Deus, autorrevelação em sentido estrito e imediato.
4. Essa autorrevelação de Deus constitui
a grande novidade e “originalidade” do Evangelho. Professando a fé com as palavras
dos Símbolos, tanto o Apostólico como o Niceno-Constantinopolitano, a
Igreja bebe plenamente do testemunho evangélico e atinge a sua essencial
profundidade. À luz deste testemunho, ela professa e dá testemunho de Jesus
Cristo como Filho, que é “consubstancial ao Pai”. O nome “Filho de Deus” podia ser
usado - e o foi - também em sentido amplo, como se vê em alguns textos do Antigo
Testamento (Sb 2,18; Eclo 4,11; Sl 81,6;
e, com maior clareza: 2Sm 7,14; Sl 2,7; Sl 109,3).
O Novo Testamento, especialmente os Evangelhos, falam de Jesus Cristo como Filho
de Deus em sentido estrito e pleno: Ele é “gerado, não criado, consubstancial
ao Pai”.
5. Prestaremos atenção agora a esta
verdade central da fé cristã analisando o testemunho do Evangelho a partir deste
ponto de vista. Trata-se, antes de tudo, do testemunho do Filho sobre o
Pai e, em particular, do testemunho de uma relação filial que é própria
d’Ele e somente d’Ele.
De fato, tão significativas como as
palavras de Jesus: “Ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele
a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27), são estas outras: “Ninguém
conhece o Filho senão o Pai” (ibid.). É o Pai quem realmente
revela o Filho. Cabe observar que no mesmo contexto são relatadas as palavras
de Jesus: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas
coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25;
cf. Lc 10,21-22). São palavras que Jesus pronuncia - como
anota o evangelista - com particular alegria de coração: “Naquela hora, Jesus
exultou no Espírito Santo” (Lc 10,21).
6. A verdade sobre Jesus Cristo, Filho
de Deus, pertence, portanto, à própria essência da Revelação trinitária.
Nela e mediante ela Deus revela a Si mesmo como unidade da inescrutável Trindade:
do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Assim, pois, a fonte definitiva do
testemunho que os Evangelhos (e todo o Novo Testamento) dão de Jesus Cristo
como Filho de Deus é o próprio Pai: o Pai que conhece o Filho e a Si mesmo no Filho.
Jesus, revelando o Pai, compartilha de certo forma conosco o conhecimento que
o Pai tem de Si mesmo no seu eterno e Unigênito Filho. Mediante esta
eterna filiação, Deus é eternamente Pai. Verdadeiramente, com espírito de fé e
de alegria, admirados e comovidos, façamos nossa a confissão de Jesus: “Tudo foi
confiado a ti pelo Pai, ó Jesus, Filho de Deus, e ninguém conhece o Filho senão
o Pai, nem o Pai senão o Filho e aquele a quem Tu, o Filho, o quiser revelar”.
Crucificação (Paolo Veneziano): “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” |
Tradução nossa a partir do texto
italiano divulgado no site da Santa Sé (13 de maio e 20 de maio de 1987).
Nenhum comentário:
Postar um comentário