Publicamos aqui as homilias do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, proferidas durante as celebrações da Semana Santa deste ano na Sé Patriarcal de Lisboa:
Homilia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor
Da decepção à conversão
Acompanhamos Jesus, da entrada
em Jerusalém à sua morte e sepultura. Ouvimos outros trechos bíblicos,
condicentes com o significado deste dia. Guardemos tudo em memória viva.
Podemos verificar que, à
exceção de Jesus, o sentimento geral foi de decepção. Aqueles ramos levantados,
aqueles hosanas entusiásticos, não prometiam tal desfecho, tão poucos dias
depois. Era o Messias régio que finalmente entrava na sua cidade. Sua e não dos
ocupantes romanos; sua e não dos régulos herodianos; sua e não dos poderosos
mesquinhos…
Lembravam a antiga profecia,
prevendo a sua entrada, sentado num simples jumento, como de facto foi. Mas não
compreendiam que a humildade da montada assinalava a muito maior humildade de
quem chegava. Só viam o “Filho de Davi”, que não poderia ser menos poderoso do
que o seu antepassado, jamais esquecido.
Mas nada correspondeu a quanto
esperavam. Pelo contrário, tudo pareceu confirmar o que diziam os seus
opositores. Que o Messias não podia ser assim, nem vir donde vinha, nem falar
como falara, pondo em causa velhas práticas e interdições. Que era mesmo um
perigo, podendo provocar os romanos e trazer mais opressão…
Daí a dias, quantos terão sido
os que, no pretório de Pilatos, mudaram os hosanas em condenações? Terão sido
muitos e uníssonos. Sugestionados, é certo, pelos habituais inimigos de Jesus.
Mas a sugestão deve ter coincidido com uma grande decepção.
Aliás, não foi só dessa vez
que se decepcionaram com possíveis messias, também aclamados e também
derrotados. A memória dum passado glorioso, guardada em tempos desconformes,
proporciona sempre alvoroços e desilusões. É uma verificação tão trágica como
repetida.
Deparamos com um caso mais
personalizado. Foi também de decepção que se tratou, com Judas Iscariotes. Fora
um dos escolhidos por Jesus, do seu círculo mais próximo, testemunha de
palavras e gestos que certamente o maravilharam e atraíram. Porém não os
interpretou segundo Jesus, mas segundo Judas. Como garantias de mais um reino
“deste mundo” e não como sinais de outro a começar, diferente e já aqui.
Daí a deceção. Daí a
coincidência com os inimigos de Jesus, que entendiam ser melhor que morresse,
para não provocar os romanos com alguma agitação indevida. Daí que aceitasse
trinta moedas para lhes entregar Jesus. Também doutras moedas fala um
Evangelho, a propósito de Judas. Diz que, por cobiça, as tirava da bolsa comum
do grupo. A decepção juntava-se à falta de escrúpulos (cf. Jo 12,4-6).
No caso dos outros discípulos,
também haveria decepção naquela altura. A entrada na cidade correra tão bem… Mas
o que se sobrepôs foi o medo. Mesmo que pouco antes prometessem que não
abandonariam Jesus. Talvez esperassem que não fosse tão assim, tão
decididamente indefeso.
Fugiram todos. Pedro ainda o
seguiu até à casa de Anás, mas para negar conhecê-lo, logo que identificado
como seu discípulo. Ao contrário de Judas, que morreu de remorso, Pedro
arrependeu-se e testemunhou Jesus até ao fim dos seus dias.
Da decepção geral, mesmo dos mais
próximos, darão conta os discípulos de Emaús: «Nós esperávamos que fosse ele o
que viria redimir Israel…» (Lc 24,21). Mas afinal não fora como
esperavam, da maneira que pensavam.
Começamos uma Semana Santa
muito especial e diferente, enfrentando a presente pandemia. Com alguma decepção
também, não podendo já contar com o que contávamos, no que diz respeito a
tempos e lugares previstos. Com receios e cautelas, por nós e pelos nossos. Com
atenção solidária a enfermos e cuidadores, que tanto a merecem, uns e outros.
Mas pode existir também, aqui
e ali, alguma decepção ”religiosa”. – Onde está Deus, como atua Deus? Para a
prevenir ou ultrapassar, fixemo-nos em Jesus, no que disse e calou, no que fez
ou não fez, nesta semana que só é santa por ser absolutamente sua. Aliás, com a
vantagem de sabermos já o que os discípulos da altura souberam depois, naquele
dia a seguir ao sábado: Jesus venceu a morte, não porque lhe fugiu, mas porque
a encheu de vida, da sua própria vida.
Não nos decepcionaremos nós,
se não esperarmos nada a não ser a sua Páscoa e o modo como passou deste mundo
para o Pai. Bem por dentro do drama comum duma humanidade frágil e não por
qualquer alienação do que ela é de facto. Alienar-se é fugir da realidade e dos
seus dramas, exatamente o contrário da encarnação de Deus, que em Cristo nos
assume. Até à morte e morte de cruz (cf. Fl 2,8), para que a
vida triunfe, aí mesmo onde é preciso. É esta a novidade de Cristo na
humanidade que reconstrói. Nada se subtrai ao seu reino, porque a sua presença
tudo invade. Como oferta de si e sem conquista dos outros – a não ser como
rendição ao seu amor comprovado.
Ninguém esperava que fosse
assim - e daí a decepção. Mas nós sabemos que assim é - e daqui a conversão. E
no modo de o verificar nestes dias, com tanto que de bom e solidário acontece,
no Espírito que Cristo nos doou, para multiplicar a sua ação neste mundo: Na
oração mais intensa, que garante que tudo se faz a partir de Deus, para o
resultado ser absoluto. No trabalho pastoral, que encontrou outras formas de se
exercer - sem a habitual proximidade física, é certo, mas orante, mediática e
igualmente concreta, com muita criatividade também. Nas famílias, nas
autarquias e no Estado; nos vários setores públicos, particulares e sociais,
que nos sustentam o presente e o futuro; na aplicação redobrada dos cientistas
e dos profissionais de saúde. Em quem, mesmo sem deslocações, sabe colmatar a
solidão alheia. Na preocupação ativa por doentes e isolados, por pobres e sem
abrigo, por imigrantes e reclusos. Em quem cuida e protege, em quem vigia e
responde. E reconhecendo todo o bem que se faça, seja por quem for, como Jesus
reconhecia e louvava (cf. Mc 9,40).
Assim sabemos que Deus está
conosco, onde Cristo revive em mil gestos solidários. O sofrimento do mundo é a
sua cruz, última etapa para a ressurreição garantida. Todos os que praticam o
bem o vão sabendo também e nunca lhes sobrevirá a decepção. Vivamos esta semana
como Jesus a preencheu. Com os outros e para todos, mesmo quando ficou só.
Experimentaremos assim a verdade pascal.
Sé de Lisboa, 5 de abril de 2020
Homilia na Missa Vespertina da
Ceia do Senhor
Compreendeis o que vos fiz?
Caríssimos, celebramos a Missa
da Ceia do Senhor. Celebramo-la nas atuais circunstâncias, difíceis decerto,
mas por isso mesmo mais necessitadas de Cristo, Sacerdote e Oferta, por nós e
para nós. Sempre à luz da fé pascal, que ilumina a nossa existência,
garantindo-lhe a vitória da vida – sendo a de Cristo em nós, para a vida do
mundo.
Se nos perguntarem o que
evocamos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, responderemos, logo e bem,
que se trata da Eucaristia e do Sacerdócio ministerial que a perpetua. Assim
nos referimos ao trecho da Carta aos Coríntios, há pouco escutado, primeiro
relato escrito da respetiva instituição, que importa muito reter, no que
significa e exige.
Hoje retemos especialmente o
“Lava-Pés”, que o Evangelho segundo São João acabou de narrar. Ressalta-nos a
pergunta do próprio Cristo, a propósito do que realizara: «Compreendeis o que
vos fiz?» Quase dois milénios depois, não reduzimos a premência da pergunta,
nem lhe esgotamos a resposta. É a comprovação, também esta, da impossibilidade
de ultrapassar as palavras de Cristo, que, humanamente proferidas, mantêm a
densidade divina que as prolonga (cf. Mc 13, 31). É por isso
que, à pergunta de Cristo, temos de responder sinceramente que sim. Que
queremos entender e cumprir mais e melhor o que ali fez - e através de nós quer
continuar a fazer, para bem de todos.
Sobre o gesto, fixemos bem
aquele tirar e retomar do manto, sinal de dignidade, que, parecendo interrompida,
ainda mais se identificou com um serviço que não cessa: Jesus repôs o manto,
mas não tirou a toalha que cingira.
Já aqui a lição é grande e o
contraste imenso com qualquer domínio que não se traduza em serviço dos outros.
Não faltam, felizmente, bons exemplos de reinar servindo, como os que
verificamos no combate à atual pandemia. São os que mais admiramos,
reconhecendo o bem que fizeram e fazem. Reinam assim na nossa gratidão, que é o
terreno mais sólido para um reino perdurar, como acontece ao de Cristo.
Compreender o gesto de Cristo
é alcançar-lhe o significado inteiro, naquele tempo e circunstância. Não admira
a estranheza de Pedro, pois era próprio de escravos cingir-se e lavar os pés de
quem quer que fosse.
Era na verdade um grande
contraste com as atitudes habituais de uns e de outros, senhores ou servos.
Noutro Evangelho, o de São Lucas, este “paradoxo evangélico” é especialmente
acentuado. Por exemplo, quando Jesus interroga os discípulos sobre o que era
espetável num senhor, quando o seu servo chegasse do trabalho: «Qual de vós,
tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do
campo: “Vem cá depressa e senta-te à mesa”? Não lhe dirá antes: “Prepara-me o
jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e
beberás tu”?» (Lc 17,7-9). A pergunta fica em suspenso, para nos
interrogar a nós.
Porém, noutro passo, já é o
senhor a cingir-se para servir quem o espera: «Felizes aqueles servos a quem o
senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se,
mandará que se ponham à mesa e há de servi-los.» (Lc 12,37).
Esta inversão total de
posições pede a nossa conversão, total também, ao modo divino de ser e atuar,
como em Jesus se apresenta. Não esperou a nossa entrega, para se entregar por
nós. Suscita-nos e pede a adequação perfeita à sua maneira de ser e fazer. Como
quando inverte toda a ordem de grandeza: «- Quem é o maior: o que está sentado
à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, eu estou no meio
de vós como aquele que serve.» (Lc 22,27).
Estas passagens, onde os
Evangelhos são concordes, reforçam-nos o que aprendemos hoje com o Lava-pés
segundo São João. Mas é da coincidência das nossas vidas com a do próprio
Cristo que mais havemos de tratar, para podermos responder afirmativamente à
pergunta que ressoa, insistente: «- Compreendeis o que vos fiz?»
Assim foi, naquela Ceia onde
estamos. Para nos encontrar na pequenez que somos, fez-se mais pequeno ainda.
Para o vermos rente ao chão da vida, donde devemos começar a crescer. Sempre
com Ele e no seu meio vital, que é a “humildade” de Deus. Em Deus, assim
revelado no Lava-pés de Cristo, a humildade não é condescendência ocasional, é
sentimento essencial.
Humildade com que mantém a sua
criação agora, como no primeiro momento que ninguém viu nem ouviu. Humildade
com que nos recriou em Cristo, do recôndito presépio de Belém à modesta Nazaré
da Galileia, ou ao rochedo do Gólgota, apenas um crucificado entre outros – mas
já no meio deles, como agora no meio de nós… É o modo divino de ser,
humanamente traduzido e oferecido. – Compreendemos já, inteiramente já?
Assim também na
humildade dos seus sacramentos, como pão repartido e cálice elevado. E na
humildade sacerdotal, quer do ministro que O representa, quer da comunidade que
com Ele se oferece, em comunhão verdadeira.
- Compreendemos já como o
Lava-Pés de Cristo resume uma atitude total, de Deus para nós e de nós para
Deus? Respondamos hoje que assim mesmo será, para que todos descubram que o serviço
aos outros é o sacrifício que Deus pede. Bem o souberam as primeiras gerações
cristãs, face aos mais desamparados do seu tempo. Como na Epístola de São
Tiago, sempre tão concreta: «A religião pura e sem mácula diante daquele que é
Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se
deixar contaminar pelo mundo» (Tg 1,27).
Traduzamo-lo nas necessidades
de agora, tão inesperadas e acrescidas, para a humanidade próxima e global.
Reconheçamos agradecidos a solidariedade de tantas pessoas, dos profissionais
de saúde e outros setores fundamentais às autoridades e famílias. O Espírito
divino prolonga neles o Lava-Pés de Cristo, reavivando-lhe a imagem e
recuperando-lhe a semelhança. Assim acontece igualmente nas comunidades cristãs
e nos seus ministros, que, mesmo sem a possibilidade de celebrar
presencialmente, o fazem sempre por todos. Agradeçamos a Cristo Sacerdote a sua
manifestação em tantos sacerdotes que nestes dias lhe reproduzem o cuidado
pastoral, com grande generosidade criativa.
Assim continua o Lava-Pés de
Cristo, no sentido absoluto do termo, para compreendermos como Deus é e como
atua. Assim a Santa Missa se faz Santa Missão.
Sé de Lisboa, 9 de abril de 2020
Homilia na Celebração da
Paixão do Senhor
Tudo está consumado!
Caríssimos: Sempre acontece,
depois de ouvir a Paixão do Senhor em Sexta-Feira Santa, ser difícil
acrescentar alguma coisa, além do silêncio meditativo. Acaba por
impor-se algum trecho, como o que vos destaco agora. Tenho sobretudo presente
quem mais sofre e quem mais cuida, neste difícil tempo que decorre. Neles
continua a Paixão de Cristo e com eles querermos estar em comunhão perfeita.
Ressoa-me sobremaneira este
passo: «...sabendo que tudo estava consumado e para que se cumprisse a
Escritura, Jesus disse: “Tenho sede”. Estava ali um vaso cheio de vinagre.
Prenderam a uma vara uma esponja embebida em vinagre e levaram-lha à boca.
Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: “Tudo está consumado.” E inclinando a
cabeça, expirou.»
Tudo estava consumado, naquele
momento final e finalizado. Mas ouvimo-lo agora para connosco acontecer também.
Aquilo a que chamamos geralmente “vida cristã” deve ser, mais propriamente,
“vida de Cristo em nós”. Lembrá-lo junto à Cruz do Senhor é o que mais importa
nesta celebração. - Como não aceitar o realismo de São Paulo, em frases como
esta, que decerto sabemos de cor: «Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 3,19-20)?!
Toda a vida terrena de Cristo
é orientada para este fim, que é entregar-se por nós, para nos levar aonde
nunca chegaríamos sozinhos, tal a distância que entrepusemos com Deus. Falo de
nós, como humanidade ferida e insarável por si só, como a história geral e
particular tragicamente demonstra. As boas aspirações permanecem, mas as
deceções também. É preciso mais do que boas intenções para encher o Céu…
Jesus foi realmente um de nós,
para nos ensinar a ser inteiramente de Deus, como ele próprio é inteiramente do
Pai. Não foi preciso muito tempo e muito estudo para que as primeiras gerações
cristãs o soubessem. Como ouvimos há pouco na Epístola aos Hebreus: «Ele mesmo
foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado […]. Apesar de ser
Filho [de Deus], aprendeu a obediência no sofrimento. E, tendo atingido a sua
plenitude, tornou-se, para os que lhe obedecem, causa de salvação
eterna.»
Em tudo igual a nós, menos no
que nos separa de Deus. O que isto doí, a separação, contou-o numa parábola em
que se fala da prodigalidade dum filho e da misericórdia do pai (cf. Lc 15,11-32).
Parábola que devemos guardar na memória convertida.
Doeu-se aquele filho, quando
esbanjou tudo o que o pai lhe dera e ficou em miséria extrema. E condoeu-se
sobretudo aquele pai, que sempre esperou o regresso do filho e o recebeu com
espantosa alegria. Bem ao contrário do irmão mais velho da parábola, Jesus
irmanou-se conosco e tornou-se ele próprio o caminho do regresso. Bem sabia ser
essa a maior alegria do Céu, por um só pecador que se converta (cf. Lc 15,7).
Jesus fez-se caminho e o
caminho consumou-se na Cruz. Não por gosto próprio ou do Pai, mas porque nela
nos colocamos nós e aí mesmo teve de nos recuperar a todos. Nas mil e uma
cruzes deste mundo, encontramo-lo nas mãos de Deus Pai, que nele nos
recebem.
Tem sede da nossa sede, para
nos saciar com a água viva do seu Espírito, como disse à Samaritana: «Quem
beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede». E é essa a obra que
consuma, levando-nos ao Pai pelo estreito caminho da Cruz, como a seguir disse
aos discípulos: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e
consumar a sua obra» (Jo 4, 14.34).
Compreendamos, irmãos, que a
Cruz era inevitável, porque inevitáveis somos nós, tão contraditórios e
frágeis. Eleva-se do rochedo do Gólgota, maneira de indicar o chão deste mundo
que é o nosso agora. Jesus não nos encontra nem aliena em qualquer zona etérea
de imaginação ou desejo. Busca-nos no chão concreto onde vivemos realmente – e
por vezes duramente, como tantos experimentam.
É neste chão, nesta rocha, que
se levanta a Cruz. Era um instrumento de tortura horrível, de que o olhar
fugia. O condenado tinha os pulsos amarrados – e no caso de Jesus pregados –
numa trave dura. Mas os seus braços alargaram-se até onde a vida humana se
distende. Em todo o espaço e tempo, como o nosso agora, onde a sua Cruz se
eleva. Tudo nela cabe: dores e esperanças, caminhos e descaminhos. Também o
sofrimento que a pandemia trouxe e a grande coragem de quem a combate.
A Cruz eleva-se sempre, na
transcendência divina. Contemplamo-la hoje, seguindo o olhar de Jesus, que visa
sempre o Pai, passando por nós todos. Acontece agora, quando entre tantos
trabalhos e canseiras, entre tantos planos e percalços, a lembrança da Cruz nos
reanima e alenta. Acontece agora, acontece sempre.
Só isto “explica” porque é que
um sinal de morte – e morte tremenda – acabou por se impor. Impôs-se por si só
e contra toda a expetativa humana, percorrendo os séculos e esperando-nos no
futuro. A Cruz tornou-se o coração do mundo e por ela entramos na Casa do Pai,
no Coração de Deus. Só Cristo o podia fazer, porque «de Deus saíra e para Deus
voltava» (Jo 13,3). Na Cruz leva-nos consigo e de onde estivermos.
«E inclinando a cabeça
expirou.» Exalou-nos o Espírito, para que o último instante da sua vida terrena
fosse o primeiro da nossa vida divina.
A verdade do que ouvimos e
contemplamos requer sempre, requer hoje, a nossa presença junto da Cruz que se
ergue neste mundo, assolado por tão grave pandemia. Presença orante e
solidária. Orante, pois com Cristo olhamos o Pai; solidária, pois com Cristo
olhamos a todos. Fixemo-nos no Crucificado, que em cada um nos alcança.
Sé Lisboa, 10 de abril de 2020
Homilia na Vigília Pascal na
Noite Santa
Sinais de vida ressuscitada
Caríssimos irmãos: De tudo quanto ouvimos e tanto nos iluminou nesta noite
santa, ressoam-nos fortes as palavras do Anjo, ditas a Maria Madalena e à outra
Maria: «Ide depressa dizer aos discípulos: “Ele ressuscitou dos mortos e vai
adiante de vós para a Galileia. Lá O vereis!”».
Na Galileia tinha começado a
aventura evangélica e de lá recomeçaria, para chegar a qualquer parte e
qualquer tempo. A este lugar agora, onde a celebramos também, como em tantos
por esse mundo fora. Com tão pouca presença física, mas tão luminosos ainda
assim. E a este tempo preciso, em que a pandemia se sofre, mas o Ressuscitado
atua, como sempre o faz por muitos que O refletem.
Não duvidemos, porque dois
milénios o testemunham. Em tempos de fome, peste e guerra, como tantas vezes
aconteceram e tragicamente se repetem, mais longe ou mais perto, a ressurreição
de Cristo redobra os sinais da sua presença salvadora. Apenas espera que a
acolhamos consequentes.
Consequentes foram aquelas
santas mulheres, que transmitiram fielmente o seu anúncio. E concluamos que,
sem a notícia pascal, ecoada por tantas presenças generosas, por tantos motivos
e figuras, a sociedade e a cultura não contariam com a esperança que ela trouxe
e a tantos acalenta nesta hora.
A ressurreição de Cristo
trouxe-lhe a vitória sobre qualquer morte que seja. Não por a eliminar como
passagem, mas por nos garantir um futuro absoluto, só em Deus atingível.
Salvação definitiva, que já se assinala nas curas deste mundo, do corpo ou do
espírito. Assim as reanimações evangélicas, do filho da viúva de Naim, da filha
de Jairo ou de Lázaro de Betânia, que já eram sinais da ressurreição de Cristo,
que agora celebramos.
Na lembrança daquele sepulcro
vazio, quanta esperança se acendeu, quanta vida se ofereceu, quanta certeza se
firmou de que, contra grandes males, só vale todo o bem; quanto ânimo acresceu
para recomeçar sempre e apesar de tudo… De há dois milénios para cá a
humanidade revive de muita herança pascal.
Sim, o Ressuscitado espera-nos
na Galileia do mundo, para a nós e conosco manifestar a sua Páscoa. Onde for
mais urgente, para reabrir o futuro.
- Como pode e deve ser? A
resposta é absolutamente pessoal, no sentido pleno que a palavra “pessoa” contém,
qual relação mútua e perfeita. Aprendemos que a lição que Deus nos dá de si
mesmo se aprende na vida de Jesus, sendo um só com o Pai, na união do Espírito.
Esta mesma comunhão é que nos leva à eternidade feliz, como humanidade à
maneira da Trindade, quando a vida circular inteiramente entre todos. Esta vida
vence a morte, que é o isolamento absoluto, ou o egoísmo sem fim.
É fundamental este ponto.
Tira-nos qualquer ilusão de chegarmos a Deus por mera especulação, pois ainda
seríamos nós, apenas nós, o que alcançássemos. Concluiríamos pela razoabilidade
da sua existência, mas não abrangeríamos o seu modo de ser, em si mesmo e para
conosco. Lembremos o prólogo do Quarto Evangelho, com a sua frase ineludível:
«A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigênito, que é Deus e está no seio do
Pai, foi Ele quem O deu a conhecer» (Jo 1,18).
Pois bem, em toda a vida de
Jesus é uma relação total que se revela. A que mantém com Deus Pai, em mútua
convivência num só Espírito; e na relação que mantém com cada um, na plena
comunhão que nos oferece. É um permanente “Segue-me!”, como ele próprio ao Pai.
Deus mostra-se na vida de Jesus, como vida inteiramente partilhada. E assim
mesmo vencendo a morte, porque «o amor jamais passará» (1Cor 13,8).
Tão intensamente relacional é
tudo isto que só de modo interpessoal o podemos abarcar e transmitir. Consolida
divinamente a experiência humana, como Jesus resumiu num versículo de oiro,
felizmente recolhido nos Atos dos Apóstolos: «A felicidade está mais em dar do
que em receber» (At 20,35).
Anunciar a Páscoa na Galileia
do mundo é conviver assim, como a ressurreição de Cristo nos impele, da família
de cada um à sociedade de todos. Nenhum sepulcro encerrará tal convivência
perfeita.
Em muitas ações e lugares, em
tempo de luta pela saúde e pelo futuro de tanta gente, são muitos os
testemunhos de felicidade já pascal, nas entreajudas que se dão, nas curas que
se fazem ou procuram, nas vizinhanças que se concretizam.
Assim mesmo – e só assim –
podemos nós alcançar alguma “experiência de Deus”, garantida e eterna. Como
exortam estes versículos da Primeira Epístola de São João:
«Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama
nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a
conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1Jo 4,7-8).
Foi esta certeza, ganha em
Cristo, cuja morte foi vencida em plena entrega, que transformou aquelas santas
mulheres e os discípulos num anúncio pessoal tão convincente. Anúncio capaz de
vencer as oposições que não faltaram. Ontem como depois e ainda agora. Mas
vence e convence pelo amor que o preencheu.
Movidos pelo Espírito de
Cristo, foram sinais vivos e ativos da ressurreição de Cristo onde chegaram.
Não menos havemos de ser nós agora, iluminados pela Luz batismal que recebemos.
Lembrou-o São Paulo, no trecho
que ouvimos: «Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que
assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos
uma vida nova.» Vida nova, que é plena comunhão com Deus e com todos a partir
de Deus. Ressurreição, em suma, como foi em Cristo.
A Páscoa é uma iluminação
total e pede-nos um exercício permanente. Não ofusquemos a luz recebida, não
demoremos o anúncio vivo e convivente. - Espera-nos bem perto a Galileia deste mundo,
tão ansiosa de ressurreição também!
Sé de Lisboa, 11 de abril de 2020
Homilia do Domingo de Páscoa
Vemos e acreditamos
Chamados por Maria Madalena,
dois discípulos correram ao sepulcro e encontraram-no vazio. De um deles, o
discípulo predileto, disse o Evangelho que «viu e acreditou».
Não viu o cadáver que era de
esperar, mas entreviu o que inesperadamente acontecera. Restos mortais
transformados numa infinita vida. Nenhum espaço, nenhum tempo a podia já conter
e limitar.
Por isso aqui estamos hoje,
nesta catedral tão vazia de presenças físicas e tão repleta de Cristo, vencedor
da morte. Nenhuma passagem bíblica escutada, nenhum trecho do Evangelho deste
dia, se ficam por um eco do passado. Daquele sepulcro vazio jorrou uma vida
inextinguível.
Os inúmeros vazios deste mundo
– estes mesmos do tempo que vivemos – são preenchidos pelo Ressuscitado, aqui e
em qualquer lugar que seja. E nós, como o discípulo predileto, aí mesmo lhe
entrevemos a presença.
O círio que acendemos na
Vigília brilhou na noite escura que o cercava. Modo de dizer que a fé, um dom
divino, nos abriu os olhos para Cristo, em múltiplos sinais da sua luz. Sinais
em que o anúncio pascal resplende agora, espelhado nos olhos de quem crê. Uma
grande poetisa já o disse, neste belo verso tão certeiro: «Só o olhar daqueles
que escolheste nos dá o teu sinal entre os fantasmas» (Sophia).
Refulgiu certamente nos olhos
madrugadores da Madalena. Refulgiu nos do discípulo que «viu e acreditou».
Depois nos olhos dos que O viram entre eles, sem precisar que lhe abrissem a
porta donde estavam. E nos olhos de incontáveis testemunhas, refletindo a
Páscoa que já vivem.
A ressurreição de Cristo tudo
garante e impele e a própria humanidade o reconhece, porque a notícia pascal
lhe alargou o horizonte. Sim, atinge muito mais e bem mais longe, do que o
ciclo anual da natureza, em que a Primavera sucede à invernia, em mera
repetição do quase igual. Beleza tem alguma, mas não chega, porque o coração
humano pede mais. Pede aquilo que a ressurreição de Cristo já lhe deu, como
definitivo acesso a outro além. Precisamente àquele sol que não declina, ao
perfeito Domingo sem ocaso.
Preenchendo a humanidade que
salvou, o Ressuscitado refulge nestes dias no olhar e nos gestos de muitíssimos
que em todos os domínios da vida eclesial ou pública, da saúde ao trabalho e a
tantos serviços indispensáveis, protegem vidas no seu arco natural e face à
pandemia que sofremos.
Quando os ministros do culto
hoje celebram, quase tão sós como naquele sepulcro esvaziado, é sempre a
Ressurreição que se assinala, porque isso mesmo são os sacramentos, para a vida
do mundo. Quando a oração redobra nas famílias, é também de Ressurreição que
assim se trata, pois tudo é vida garantida, quando sobe com Cristo para o
Pai.
Quando a solidariedade de
facto se demonstra, é Cristo que aí mesmo se depara. Assim prometeu e assim
cumpre. Referindo-se aos que não desamparam os peregrinos (também os emigrantes
de hoje em dia), os que não tenham agasalho, saúde ou liberdade, declarou:
«Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o
fizestes». A Páscoa de Cristo é uma realidade total e englobante e experimenta-se
na caridade praticada.
Os sinos que nesta manhã
ressoam cantam todo o bem que hoje é feito, sinal de ressurreição em Jesus
Cristo. Desejar Santa Páscoa é impelir ao anúncio e à missão,
porque a Páscoa acontece no que faz, e os primeiros que o souberam não
pararam.
O sepulcro esvaziou-se, porque
a vida que encerrava lhe irrompeu. Não como vírus nocivo, mas como amor que
vence todo o mal. Assim foi então e continua, no vazio agora preenchido por tudo
o que se faça em bom apoio. Vencendo solidões, prevenindo e curando a pandemia,
mantendo a instrução e o trabalho e em tudo o mais que urgente for.
- É um enorme compromisso
celebrar a Páscoa, no tempo a recriar por todos nós!
A verdade é esta e está
patente, como aquela grande pedra destapada, porque a vida não coube no
sepulcro. Saibamos entrevê-la e anunciá-la, como o discípulo que «viu e
acreditou». Ainda ficaremos mais convictos, mais seguros e solidários de
certeza, em Páscoa realmente partilhada.
Sé de Lisboa, 12 de abril de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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