“Hoje, com tua palavra
portadora de vida, libertas o amigo, como Deus que és, da corrupção do abismo
profundo” - Santo André de Creta [1]
Até o momento, em nossa série de postagens, trouxemos os
ícones de algumas das principais festas litúrgicas do Oriente e do Ocidente. O
relato evangélico que apresentaremos aqui não é conteúdo de uma das grandes
festas, embora seja celebrado de formas distintas nas diversas igrejas.
Trata-se da ressurreição de Lázaro.
A ressurreição de
Lázaro no Oriente e no Ocidente
Na tradição romana, a perícope (Jo 11,1-45) é proclamada no
V Domingo da Quaresma no ano A. Neste ciclo se reforça o caráter batismal do
tempo quaresmal, servindo os três últimos domingos como uma grande catequese,
evidenciando os símbolos do Batismo: a água (diálogo de Jesus com a samaritana),
a luz (cura do cego de nascença) e a vida (ressurreição de Lázaro) [2].
Completando assim as catequeses batismais e os sete “sinais”
do Evangelho de João, somos colocados às portas da celebração pascal: “a Liturgia deste domingo nos conduz até o
âmago da mensagem cristã de salvação. Já é o mistério pascal, como indica o
Prefácio próprio: ‘Compadecendo-se da
humanidade, que jaz na morte do pecado, por seus sagrados mistérios Ele nos
eleva ao Reino da vida nova’” [3]
Na tradição bizantina, por sua vez, este relato encontra
lugar no sábado que antecede o Domingo de Ramos, o qual é conhecido justamente
como “sábado de Lázaro”. Uma semana antes
do Sábado Santo, este Evangelho prefigura a sepultura do Senhor e a sua
Ressurreição: “a Semana Santa vem assim
situada entre duas ressurreições: a primeira como sinal e antecipação da do
Redentor” [4].
O primeiro testemunho da celebração do “sábado de Lázaro”
vem do Itinerarium de Etéria,
referente à Liturgia de Jerusalém no século IV. Neste dia, segundo a peregrina,
se celebrava no Lazarium, isto é, na
igreja em Betânia. Desta tradição hierosolimitana deriva a celebração
bizantina.
Mesmo que as igrejas do Oriente e do Ocidente enfatizem
diferentes aspectos do relato (ápice das catequeses batismais no Rito Romano e
profecia da Páscoa no Rito Bizantino), em ambas a ressurreição de Lázaro é lida
à luz do Mistério Pascal de Cristo.
O ícone
O ambiente: Dois
conjuntos de montanhas servem de moldura às muralhas de uma cidade,
representadas ao fundo. Na base de uma das montanhas encontra-se o túmulo de
Lázaro, escavado na rocha.
O interesse do artista não é geográfico, indicando que os
túmulos se situavam fora da cidade, mas teológico: a cidade ao longe é antes de
tudo profecia da Paixão de Cristo, que seria morto fora das muralhas de
Jerusalém (Hb 13,12).
Às vezes a cidade é representada com tinta muito fraca,
indicando que “não temos aqui cidade permanente” (Hb 13,14): “o homem é um peregrino entre duas cidades; e
a vida não é senão uma passagem da cidade inferior para a cidade superior, a
Jerusalém celeste, significada pela ressurreição” [5].
A representação da cidade pode indicar ainda o vaticínio de
Cristo sobre a ruína de Jerusalém e seu fechamento à sua mensagem. Esta
proposição é bastante interessante, já que as duas únicas vezes em que os
Evangelhos descrevem Jesus chorando são diante de Jerusalém e do túmulo de
Lázaro (Lc 19,41; Jo 11,35).
Abaixo da cidade, entre as duas montanhas, está retratada a
multidão. Nela encontramos duas atitudes diante da cena: alguns olham para
Lázaro - são os que “creram” (Jo 11,45) - enquanto outros olham para Jesus -
são os que tramarão em seguida a sua morte (Jo 11,46-53). Alguns têm uma
atitude maravilhada diante da ressurreição de Lázaro, com os braços levantados,
enquanto outros, incrédulos, tapam o nariz pelo suposto “mau cheiro” (Jo
11,39).
Cristo: Em pé, na
parte esquerda do ícone, está representado Cristo. Ele está revestido com as
vestes tradicionais (a túnica vermelha de quem assumiu nossa humanidade, o
manto azul da divindade, a estola da dignidade sacerdotal e régia) e
acompanhado dos doze Apóstolos, retratados atrás d’Ele.
O Cristo tem o braço direito estendido em direção a Lázaro,
com o tradicional gesto de bênção com os três dedos levantados, em alusão à
Trindade. Neste momento, o Filho evoca o poder criador de toda a Trindade, ao
ordenar “Lázaro, vem para fora” (Jo 11,43). “Como na primeira criação, também na segunda é a voz divina, a voz do
Criador, que vai realizá-la. Ali, o Criador chamou tudo pelo nome, outorgando,
assim, a tudo existência e vida; aqui, chama Lázaro pelo nome e o ressuscita
dos mortos” [6].
Na mão esquerda Ele empunha um rolo: é o quirógrafo dos
pecados de Lázaro, que Cristo arrebata ao Hades (Cl 2,13-14). Por isso Ele e
Lázaro são os únicos personagens retratados com o nimbo ou halo da santidade
(nem os Apóstolos são retratados assim, talvez prefigurando sua traição e
abandono do Mestre durante os eventos da Paixão). Jesus é por natureza o “três
vezes Santo”, fonte de toda santidade, enquanto Lázaro é santificado por sua
Palavra.
Ao lado de Cristo, entre Ele e Lázaro, vemos um arbusto
vicejante, bem no centro do ícone. Trata-se da árvore da vida, recordando a autoafirmação central do Mestre na perícope: “Eu
sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25).
Lázaro: O lado
direito do ícone é dominado por Lázaro, que sai do sepulcro auxiliado por dois
homens: obedientes às ordens de Cristo, um remove a pedra do sepulcro, enquanto
o outro começa a desatar Lázaro das faixas que o envolviam.
O fato de Lázaro ser retratado ainda preso às faixas
simboliza que a morte ainda tem poder sobre ele. Sua ressurreição é apenas
profecia, figura daquela que será a Ressurreição de Cristo.
Lázaro é retratado diante do túmulo, retratado em forte cor
negra, a mesma da gruta da Natividade e da morada dos mortos no ícone da
Ressurreição do Senhor. A montanha na qual está a caverna costuma ser pintada
em um leve tom de vermelho, para dar a ideia do órgão de um animal vivo, o
Hades, o qual, porém, empalideceu diante da ação de Cristo:
“Ai de mim, que estou
perdido. Assim, entre alaridos, falava à Morte o Hades, e dizia: Eis que o
Nazareno humilhou meus reinos subterrâneos ; rasgando-me o próprio ventre e
chamando-o unicamente pelo nome, devolveu a vida a um corpo sem alento”
[7].
Marta e Maria: Por
fim, aos pés de Jesus, encontramos as duas irmãs de Lázaro, Marta e Maria. Elas
parecem encarnar aqui a dupla natureza de Cristo: Marta, retratada de joelhos, é
aquela que professou a fé em Jesus como Filho de Deus (Jo 11,27); recorda-nos,
portanto, inclusive pela cor azul que veste (a cor do céu) a divindade do
Filho.
Maria, por sua vez, é anacronicamente retratada aos pés do
Senhor, remetendo-nos à unção de Betânia que terá lugar seis dias antes da
Páscoa (Jo 12,1-8). Sendo esta unção “em vista da sepultura” do Senhor, Maria
evoca aqui a sua humanidade, imagem corroborada pela cor vermelha de suas
vestes.
“Ó Cristo, alegria de todos, verdade, luz, vida do mundo e nossa ressurreição,
na tua bondade te manifestaste aos que estão na terra, tornando-te modelo da
ressurreição e concedendo a todos o perdão divino”
Kontákion
do dia [8]
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da ressurreição de Lázaro. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 18. Coleção:
Iconostásio, 12.
[2] No calendário bizantino as perícopes da samaritana e do
cego de nascença são proclamadas respectivamente no V e no VI Domingos da
Páscoa (cf. DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo:
Ave Maria, 1998, pp. 105-108).
[3] ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, p. 77.
[4] PASSARELLI, op.
cit., p. 18.
[5] ibid., p. 25.
[6] ibid., p. 18.
[7] ibid., p. 27.
[8]
DONADEO, op. cit., p. 92.
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