Entre os anos 1994 e 1999, no contexto da preparação
para o Grande Jubileu do ano 2000, o Papa João Paulo II convocou cinco
Assembleias Especiais do Sínodo dos Bispos, uma para cada continente: África,
América, Ásia, Oceania e Europa.
Ao longo dos próximos meses, como parte de nossas
postagens especiais nos 20 anos do Jubileu, vamos analisar cada uma das
Exortações Apostólicas fruto destes Sínodos sob o ponto de vista da Liturgia.
Embora sejam orientações pensadas para a realidade de cada continente, veremos
como as contribuições dos Sínodos recordam os princípios universais do culto
divino.
Começamos com o Sínodo para o continente africano,
que teve lugar em Roma de 10 de abril a 08 de maio de 1994. O documento fruto
desta Assembleia é a Exortação Ecclesia in Africa, promulgada em 14 de setembro
de 1995, durante uma viagem ao continente africano.
João Paulo II
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in Africa
Sobre a Igreja em África e a sua missão
evangelizadora rumo ao ano 2000
Introdução
Já na Introdução do Documento o Papa recorda a celebração de abertura do
Sínodo, no dia 10 de abril de 1994: “A África estava presente com a diversidade dos seus ritos, unida a
todo o Povo de Deus: ela dançava na sua alegria, exprimindo a sua fé na vida,
ao som do batuque e de outros instrumentos musicais africanos” (n. 06).
Sobre a diversidade dos ritos, é importante salientar que provém da
África a família litúrgica alexandrina, originária da Sé Patriarcal de
Alexandria no Egito, composta por dois ritos: o rito copta, utilizado pela
Igreja Católica Copta, e o rito etíope, celebrado pelas Igrejas Católicas
Etíope e Eritreia. Há também no continente africano circunscrições de outras
Igrejas Católicas Orientais.
Além disso, em 1988 foi aprovado pela Santa Sé o “rito zairense”, uma
forma própria do Rito Romano para as dioceses da República Democrática do
Congo, com vários elementos inculturados. O Papa Francisco celebrou uma Missa
utilizando elementos deste “rito” na Basílica de São Pedro em 01 de dezembro de
2019.
Papa Francisco celebra Missa no Egito (2017) |
Capítulo I: Um histórico momento eclesial
No capítulo I o Papa descreve os passos que levaram à celebração da
Assembleia Sinodal. Aqui recorda as Missas de abertura e de encerramento do
Sínodo, destacando o contexto litúrgico em que ocorreram: respectivamente, o II
e o VI Domingos da Páscoa (cf. nn. 12 e 28). No n. 25 o Papa expressa seu
agradecimento pelos responsáveis por estas celebrações, salientando seu caráter
inculturado:
“Estou profundamente grato, ainda,
ao grupo de trabalho que tão bem cuidou as Liturgias
Eucarísticas de abertura e encerramento do Sínodo. Contando entre os seus
membros, teólogos, liturgistas e peritos em cânticos e instrumentos africanos
de expressão litúrgica, o grupo quis, como era desejo meu, fazer com que
aquelas cerimônias fossem marcadas por nítido caráter africano”.
Capítulo III: Evangelização e inculturação
Após traçar a história da evangelização do continente e descrever um
pouco da sua realidade no capítulo II, no capítulo III o Papa reflete sobre os
temas da evangelização e da inculturação. Primeiramente, sobre a evangelização,
aparece uma menção às Celebrações da Palavra de Deus, pensadas sobretudo na
ausência do presbítero:
“Para fazer com que a Palavra de Deus seja conhecida, amada, meditada e
conservada no coração dos fiéis (cf. Lc 2,19.51), é necessário intensificar os esforços para
facilitar o acesso à Sagrada Escritura (...) predispor adequadas Celebrações
da Palavra...” (n. 58)
No que se refere à inculturação, já no n. 62 a Liturgia é elencada entre
os seus campos de aplicação:
“O Sínodo recomendou aos Bispos e
às Conferências Episcopais terem presente que a inculturação engloba todos os
domínios da vida da Igreja e da evangelização: teologia, Liturgia, vida e estruturas da Igreja”.
Porém, será no n. 64 que este tema será melhor explorado:
“Na prática, sem prejuízo algum
para as tradições próprias de cada Igreja, Latina ou Oriental, deverá ser
continuada a inculturação da Liturgia, sob a condição de nada modificar nos elementos essenciais
desta, para que o povo fiel possa compreender e viver melhor as celebrações
litúrgicas”.
Note-se que o Documento ressalta que a inculturação não pode alterar os
elementos essenciais da Liturgia. A importância da fidelidade ao ensinamento da
Igreja é reafirmada na sequência do mesmo parágrafo:
“O Sínodo reafirmou também o
princípio de que, mesmo no caso de a doutrina se apresentar dificilmente
assimilável não obstante um período longo de evangelização, ou então quando a
sua prática puser sérios problemas pastorais sobretudo na vida sacramental, é necessário permanecer fiel ao ensinamento da
Igreja e, simultaneamente, respeitar as pessoas na justiça e com verdadeira
caridade pastoral. Suposto isto, o Sínodo fez votos de que as Conferências
Episcopais, em colaboração com as Universidades e os Institutos Católicos,
criem comissões de estudo, sobretudo no que se refere ao Matrimônio, à veneração dos antepassados e ao mundo dos espíritos,
com o objetivo de examinar profundamente todos os aspectos culturais dos
problemas que se levantem do ponto de vista teológico, sacramental, ritual e
canônico”.
Papa Francisco celebra Missa em Moçambique (2019) |
Capítulo IV: Na perspectiva do Terceiro Milênio cristão
I. Os desafios atuais
A primeira parte do
capítulo IV está dedicada aos desafios atuais do continente apresentados pelos
Bispos durante o Sínodo. Segundo o Documento, “a primeira urgência é, naturalmente, a
evangelização” (n. 73). Aqui ocupa um papel
importante o tema do sacramento do Batismo:
“Como sucedeu no Pentecostes, a
pregação do querigma tem
como finalidade natural levar o ouvinte à metanoia e ao Batismo: o anúncio da Palavra de
Deus visa a conversão cristã, isto
é, a adesão plena e sincera a Cristo e ao Evangelho, mediante a fé. Por outro
lado, a conversão a Cristo está conexa com o Batismo: está não só por ser práxis comum da Igreja, mas por
vontade de Cristo, que enviou a sua Igreja a fazer discípulos em todas as
nações e a batizá-los (cf. Mt 28,19);
está ainda por intrínseca exigência da recepção em plenitude da vida nova
n'Ele: “Em verdade, em verdade, te
digo - ensina Jesus a Nicodemos - quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”
(Jo 3,5). O Batismo, de fato, regenera-nos para a
vida de filhos de Deus; une-nos a Jesus Cristo e unge-nos no Espírito Santo:
aquele não é um simples selo da conversão, uma espécie de sinal exterior que a comprova e
atesta; mas é o sacramento que
significa e opera este novo nascimento do Espírito, instaura
vínculos reais e indivisíveis com a Trindade, torna-nos membros do Corpo de
Cristo, que é a Igreja. Portanto, um itinerário de conversão que não chegasse
ao Batismo, ter-se-ia detido a meio
da estrada” (n. 73).
Ainda nesta primeira parte do capítulo retorna o tema da inculturação,
incluindo a inculturação da Liturgia:
“Devido à profunda convicção de
que «a síntese entre cultura e fé
não é só uma exigência da cultura, mas também da fé», porque uma fé
que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, nem inteiramente pensada,
nem fielmente vivida, a Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos
considerou a inculturação uma
prioridade e uma urgência na vida das Igrejas particulares em África: só assim
pode o Evangelho lançar sólidas raízes nas comunidades cristãs do Continente.
Na esteira do Concílio Vaticano II os Padres Sinodais interpretaram a inculturação
como um processo que abrange a vida cristã em toda a sua extensão - teologia, Liturgia, costumes, estruturas -
obviamente sem lesar o direito divino e a grande disciplina da Igreja,
corroborada ao longo dos séculos por frutos extraordinários de virtude e
heroísmo” (n. 78).
II. A família
A segunda parte do
capítulo IV traz o tema da família. O n. 83 destaca a dimensão sacramental do
matrimônio:
“O amor recíproco dos esposos batizados
manifesta o Amor de Cristo e da Igreja. Sinal do Amor de Cristo, o Matrimônio é um sacramento da Nova Aliança: Os esposos são para
a Igreja o chamamento
permanente daquilo que aconteceu sobre a Cruz; são um para o outro,
e para os filhos, testemunhas da salvação da qual o sacramento os faz
participar. Deste acontecimento de salvação, o Matrimônio, como todo o sacramento,
é memorial, atualização e profecia”.
Capítulo V: «Vós sereis minhas testemunhas» em África
O capítulo V, após apresentar o tema da santidade, elenca os sujeitos e
as estruturas da evangelização. Sobre o tema da santidade, a Exortação destaca
o valor dos sacramentos, especialmente da Eucaristia:
“Ora, a entrada no Reino de Deus
exige uma mudança de mentalidade (metanoia)
e de comportamento, um testemunho de vida por palavras e obras que tem o seu
alimento na recepção dos sacramentos,
nomeadamente a Eucaristia, dentro da
Igreja, sacramento de salvação” (n. 87).
No mesmo parágrafo salienta-se que também a inculturação constitui um
caminho para a santidade: “Uma
inculturação, sabiamente conduzida, purifica e eleva as culturas dos vários
povos”. Aqui ocupa um papel fundamental a Liturgia:
“Sob este ponto de vista, é
chamada a desempenhar um papel importante a Liturgia. Esta,
enquanto modo eficaz de proclamar e viver os mistérios da salvação, pode
contribuir validamente para elevar e enriquecer específicas manifestações da
cultura de um povo. Será, pois, responsabilidade da autoridade competente
procurar, segundo modelos ricos de beleza artística, a inculturação daqueles
elementos litúrgicos que, à luz das normas vigentes, possam ser modificados”
(n. 87).
I. Obreiros da evangelização
No elenco dos
sujeitos da evangelização reaparece o tema da família, apresentada aqui como
local da vivência do sacerdócio batismal:
“É no seio da família que os pais
são, pela palavra e pelo exemplo, para os seus filhos, os primeiros arautos da
fé. É aqui que se exerce, de modo privilegiado, o sacerdócio batismal do pai, da mãe,
dos filhos, de todos os membros da família, ‘na recepção dos sacramentos,
na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e
na caridade efetiva’” (n. 92).
II. Estruturas de evangelização
Por fim, a última
referência à Liturgia no Documento diz respeito às Universidades como
estruturas de evangelização capacitadas para estudar a inculturação da
Liturgia:
“As Universidades e os Institutos
Superiores Católicos em África desempenham um papel importante na proclamação
da Palavra salvífica de Deus. Eles são sinal do crescimento da Igreja,
enquanto, nas suas investigações, integram as verdades e as experiências da fé,
e ajudam a interiorizá-las. Assim, estes centros de estudo servem a Igreja,
fornecendo-lhe pessoal bem preparado; estudando importantes questões teológicas
e sociais; desenvolvendo a teologia africana; promovendo o trabalho de inculturação, especialmente na celebração
litúrgica; publicando livros e divulgando o pensamento católico; realizando
as pesquisas que lhes são confiadas pelos Bispos; contribuindo para o estudo
científico das culturas” (n. 103).
Imagem da Virgem Maria segundo a cultura africana |
Nos próximos meses analisaremos as Exortações para a América, a Ásia, a Oceania e a Europa, respectivamente no início de maio, julho, setembro e novembro. Acompanhe-nos!
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