quinta-feira, 5 de março de 2020

Liturgia na Exortação Ecclesia in Africa

Entre os anos 1994 e 1999, no contexto da preparação para o Grande Jubileu do ano 2000, o Papa João Paulo II convocou cinco Assembleias Especiais do Sínodo dos Bispos, uma para cada continente: África, América, Ásia, Oceania e Europa.

Ao longo dos próximos meses, como parte de nossas postagens especiais nos 20 anos do Jubileu, vamos analisar cada uma das Exortações Apostólicas fruto destes Sínodos sob o ponto de vista da Liturgia. Embora sejam orientações pensadas para a realidade de cada continente, veremos como as contribuições dos Sínodos recordam os princípios universais do culto divino.

Começamos com o Sínodo para o continente africano, que teve lugar em Roma de 10 de abril a 08 de maio de 1994. O documento fruto desta Assembleia é a Exortação Ecclesia in Africa, promulgada em 14 de setembro de 1995, durante uma viagem ao continente africano.

João Paulo II
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in Africa
Sobre a Igreja em África e a sua missão evangelizadora rumo ao ano 2000

Introdução

Já na Introdução do Documento o Papa recorda a celebração de abertura do Sínodo, no dia 10 de abril de 1994: “A África estava presente com a diversidade dos seus ritos, unida a todo o Povo de Deus: ela dançava na sua alegria, exprimindo a sua fé na vida, ao som do batuque e de outros instrumentos musicais africanos” (n. 06).

Sobre a diversidade dos ritos, é importante salientar que provém da África a família litúrgica alexandrina, originária da Sé Patriarcal de Alexandria no Egito, composta por dois ritos: o rito copta, utilizado pela Igreja Católica Copta, e o rito etíope, celebrado pelas Igrejas Católicas Etíope e Eritreia. Há também no continente africano circunscrições de outras Igrejas Católicas Orientais.

Além disso, em 1988 foi aprovado pela Santa Sé o “rito zairense”, uma forma própria do Rito Romano para as dioceses da República Democrática do Congo, com vários elementos inculturados. O Papa Francisco celebrou uma Missa utilizando elementos deste “rito” na Basílica de São Pedro em 01 de dezembro de 2019.

Papa Francisco celebra Missa no Egito (2017)

Capítulo I: Um histórico momento eclesial

No capítulo I o Papa descreve os passos que levaram à celebração da Assembleia Sinodal. Aqui recorda as Missas de abertura e de encerramento do Sínodo, destacando o contexto litúrgico em que ocorreram: respectivamente, o II e o VI Domingos da Páscoa (cf. nn. 12 e 28). No n. 25 o Papa expressa seu agradecimento pelos responsáveis por estas celebrações, salientando seu caráter inculturado:

Estou profundamente grato, ainda, ao grupo de trabalho que tão bem cuidou as Liturgias Eucarísticas de abertura e encerramento do Sínodo. Contando entre os seus membros, teólogos, liturgistas e peritos em cânticos e instrumentos africanos de expressão litúrgica, o grupo quis, como era desejo meu, fazer com que aquelas cerimônias fossem marcadas por nítido caráter africano”.


Capítulo III: Evangelização e inculturação

Após traçar a história da evangelização do continente e descrever um pouco da sua realidade no capítulo II, no capítulo III o Papa reflete sobre os temas da evangelização e da inculturação. Primeiramente, sobre a evangelização, aparece uma menção às Celebrações da Palavra de Deus, pensadas sobretudo na ausência do presbítero:

 Para fazer com que a Palavra de Deus seja conhecida, amada, meditada e conservada no coração dos fiéis (cf. Lc 2,19.51), é necessário intensificar os esforços para facilitar o acesso à Sagrada Escritura (...) predispor adequadas Celebrações da Palavra...” (n. 58)

No que se refere à inculturação, já no n. 62 a Liturgia é elencada entre os seus campos de aplicação:

O Sínodo recomendou aos Bispos e às Conferências Episcopais terem presente que a inculturação engloba todos os domínios da vida da Igreja e da evangelização: teologia, Liturgia, vida e estruturas da Igreja”.

Porém, será no n. 64 que este tema será melhor explorado:

Na prática, sem prejuízo algum para as tradições próprias de cada Igreja, Latina ou Oriental, deverá ser continuada a inculturação da Liturgiasob a condição de nada modificar nos elementos essenciais desta, para que o povo fiel possa compreender e viver melhor as celebrações litúrgicas”.

Note-se que o Documento ressalta que a inculturação não pode alterar os elementos essenciais da Liturgia. A importância da fidelidade ao ensinamento da Igreja é reafirmada na sequência do mesmo parágrafo:

O Sínodo reafirmou também o princípio de que, mesmo no caso de a doutrina se apresentar dificilmente assimilável não obstante um período longo de evangelização, ou então quando a sua prática puser sérios problemas pastorais sobretudo na vida sacramental, é necessário permanecer fiel ao ensinamento da Igreja e, simultaneamente, respeitar as pessoas na justiça e com verdadeira caridade pastoral. Suposto isto, o Sínodo fez votos de que as Conferências Episcopais, em colaboração com as Universidades e os Institutos Católicos, criem comissões de estudo, sobretudo no que se refere ao Matrimônio, à veneração dos antepassados e ao mundo dos espíritos, com o objetivo de examinar profundamente todos os aspectos culturais dos problemas que se levantem do ponto de vista teológico, sacramental, ritual e canônico”.

Papa Francisco celebra Missa em Moçambique (2019)

Capítulo IV: Na perspectiva do Terceiro Milênio cristão

I. Os desafios atuais
A primeira parte do capítulo IV está dedicada aos desafios atuais do continente apresentados pelos Bispos durante o Sínodo. Segundo o Documento, “a primeira urgência é, naturalmente, a evangelização” (n. 73). Aqui ocupa um papel importante o tema do sacramento do Batismo:

Como sucedeu no Pentecostes, a pregação do querigma tem como finalidade natural levar o ouvinte à metanoia e ao Batismo: o anúncio da Palavra de Deus visa a conversão cristã, isto é, a adesão plena e sincera a Cristo e ao Evangelho, mediante a fé. Por outro lado, a conversão a Cristo está conexa com o Batismo: está não só por ser práxis comum da Igreja, mas por vontade de Cristo, que enviou a sua Igreja a fazer discípulos em todas as nações e a batizá-los (cf. Mt 28,19); está ainda por intrínseca exigência da recepção em plenitude da vida nova n'Ele: “Em verdade, em verdade, te digo - ensina Jesus a Nicodemos - quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5). O Batismo, de fato, regenera-nos para a vida de filhos de Deus; une-nos a Jesus Cristo e unge-nos no Espírito Santo: aquele não é um simples selo da conversão, uma espécie de sinal exterior que a comprova e atesta; mas é o sacramento que significa e opera este novo nascimento do Espírito, instaura vínculos reais e indivisíveis com a Trindade, torna-nos membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja. Portanto, um itinerário de conversão que não chegasse ao Batismo, ter-se-ia detido a meio da estrada” (n. 73).

Ainda nesta primeira parte do capítulo retorna o tema da inculturação, incluindo a inculturação da Liturgia:

Devido à profunda convicção de que «a síntese entre cultura e fé não é só uma exigência da cultura, mas também da fé», porque uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, nem inteiramente pensada, nem fielmente vivida, a Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos considerou a inculturação uma prioridade e uma urgência na vida das Igrejas particulares em África: só assim pode o Evangelho lançar sólidas raízes nas comunidades cristãs do Continente. Na esteira do Concílio Vaticano II os Padres Sinodais interpretaram a inculturação como um processo que abrange a vida cristã em toda a sua extensão - teologia, Liturgia, costumes, estruturas - obviamente sem lesar o direito divino e a grande disciplina da Igreja, corroborada ao longo dos séculos por frutos extraordinários de virtude e heroísmo” (n. 78).

II. A família
A segunda parte do capítulo IV traz o tema da família. O n. 83 destaca a dimensão sacramental do matrimônio:

O amor recíproco dos esposos batizados manifesta o Amor de Cristo e da Igreja. Sinal do Amor de Cristo, o Matrimônio é um sacramento da Nova Aliança: Os esposos são para a Igreja o chamamento permanente daquilo que aconteceu sobre a Cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação da qual o sacramento os faz participar. Deste acontecimento de salvação, o Matrimônio, como todo o sacramento, é memorial, atualização e profecia”.

Capítulo V: «Vós sereis minhas testemunhas» em África

O capítulo V, após apresentar o tema da santidade, elenca os sujeitos e as estruturas da evangelização. Sobre o tema da santidade, a Exortação destaca o valor dos sacramentos, especialmente da Eucaristia:

Ora, a entrada no Reino de Deus exige uma mudança de mentalidade (metanoia) e de comportamento, um testemunho de vida por palavras e obras que tem o seu alimento na recepção dos sacramentos, nomeadamente a Eucaristia, dentro da Igreja, sacramento de salvação” (n. 87).

No mesmo parágrafo salienta-se que também a inculturação constitui um caminho para a santidade: “Uma inculturação, sabiamente conduzida, purifica e eleva as culturas dos vários povos”. Aqui ocupa um papel fundamental a Liturgia:

Sob este ponto de vista, é chamada a desempenhar um papel importante a LiturgiaEsta, enquanto modo eficaz de proclamar e viver os mistérios da salvação, pode contribuir validamente para elevar e enriquecer específicas manifestações da cultura de um povo. Será, pois, responsabilidade da autoridade competente procurar, segundo modelos ricos de beleza artística, a inculturação daqueles elementos litúrgicos que, à luz das normas vigentes, possam ser modificados” (n. 87).

I. Obreiros da evangelização
No elenco dos sujeitos da evangelização reaparece o tema da família, apresentada aqui como local da vivência do sacerdócio batismal:

É no seio da família que os pais são, pela palavra e pelo exemplo, para os seus filhos, os primeiros arautos da fé. É aqui que se exerce, de modo privilegiado, o sacerdócio batismal do pai, da mãe, dos filhos, de todos os membros da família, na recepção dos sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade efetiva’” (n. 92).

II. Estruturas de evangelização
Por fim, a última referência à Liturgia no Documento diz respeito às Universidades como estruturas de evangelização capacitadas para estudar a inculturação da Liturgia:

As Universidades e os Institutos Superiores Católicos em África desempenham um papel importante na proclamação da Palavra salvífica de Deus. Eles são sinal do crescimento da Igreja, enquanto, nas suas investigações, integram as verdades e as experiências da fé, e ajudam a interiorizá-las. Assim, estes centros de estudo servem a Igreja, fornecendo-lhe pessoal bem preparado; estudando importantes questões teológicas e sociais; desenvolvendo a teologia africana; promovendo o trabalho de inculturação, especialmente na celebração litúrgica; publicando livros e divulgando o pensamento católico; realizando as pesquisas que lhes são confiadas pelos Bispos; contribuindo para o estudo científico das culturas” (n. 103).


Imagem da Virgem Maria segundo a cultura africana

Nos próximos meses analisaremos as Exortações para a América, a Ásia, a Oceania e a Europa, respectivamente no início de maio, julho, setembro e novembro. Acompanhe-nos!

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