Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
V pregação de Quaresma
23 de março de 2018
A pureza cristã
Em nosso comentário à
parênese da Carta aos Romanos, chegamos ao ponto em que se diz: “A noite vai
adiantada, e o dia vem chegando. Despojemo-nos das obras das trevas e
vistamo-nos das armas da luz. Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia:
nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada
de contendas, nada de ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo
e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites” (Rm 13,12-14).
Santo Agostinho, nas
Confissões, nos diz o lugar que esta passagem teve em sua conversão. Ele já
havia alcançado uma quase completa adesão à fé; as suas objeções haviam sido
aniquiladas uma após a outra e a voz de Deus se tornara cada vez mais urgente.
Mas havia uma coisa que o detinha: o medo de não ser capaz de viver casto. Ele
vivia, como sabemos, com uma mulher sem ser casado.
Estava no jardim da casa que
o abrigava, nas garras dessa luta interior e com lágrimas nos olhos, quando, de
uma casa próxima, ouviu uma voz, como um menino ou menina, que repetia: “Tolle,
lege! / Pegue, leia; pegue, leia!”. Ele interpretou estas palavras como um
convite de Deus e, tendo ao alcance das mãos o livro das Epístolas de São
Paulo, abriu-o ao acaso, determinado a considerar como vontade de Deus a
primeira frase em que seu olhar se fixasse.
A palavra em que seu olhar
caiu foi, de fato, aquela da Carta aos Romanos que acabamos de mencionar. Uma
luz de segurança brilhou dentro dele (lux securitatis), o que fez
desaparecer toda a escuridão da incerteza. Ele sabia agora que, com a ajuda de
Deus, poderia ser casto [1].
As coisas que o Apóstolo,
naquela passagem, chama “obras das trevas” são as mesmas que em outros lugares
define “desejos, ou obras, da carne” (cf. Rm 8,13; Gl 5,19) e as coisas que
chama "armas da luz" são as mesmas que em outros lugares chama de
"obras do Espírito", ou "frutos do Espírito" (cf. Gl 5,22).
Entre essas obras da carne é enfatizada, com dois termos (koite e aselgeia),
a devassidão sexual, à qual se opõe a arma da luz que é a pureza.
O Apóstolo não se ocupa, no
presente contexto, em falar desse aspecto da vida cristã; mas da lista dos
vícios, colocada no início da Carta (cf. Rm 1,26ss), sabemos quão importante
era isso para os seus olhos. São Paulo estabelece uma ligação muito estreita
entre pureza e santidade e entre pureza e Espírito Santo:
"Esta é a vontade de
Deus: a vossa santificação; que eviteis a impureza; que cada um de vós saiba possuir
o seu corpo santa e honestamente, sem se deixar levar pelas paixões
desregradas, como os pagãos que não conhecem a Deus; e que ninguém, nesta
matéria, oprima nem defraude a seu irmão, porque o Senhor faz justiça de todas
estas coisas, como já antes vo-lo temos dito e asseverado. Pois Deus não nos
chamou para a impureza, mas para a santidade. Por conseguinte, desprezar estes
preceitos é desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos deu o seu Espírito
Santo." (1Ts 4,3-8)
Por isso, procuremos reunir
esta última "exortação" da palavra de Deus, aprofundando o fruto do
Espírito que é a pureza.
1. As motivações cristãs da pureza
Na Carta aos Gálatas, São
Paulo escreve: "O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5,22). O
termo grego original, que traduzimos com "autodomínio” é enkrateia e
tem uma gama muito ampla de significados; pode-se exercer, de fato, o domínio
de si no comer, no falar, no controle da ira, etc.
Aqui, porém, como nos
demais, quase sempre no Novo Testamento, isso significa o domínio de si em uma
esfera bem precisa da pessoa, ou seja, no âmbito da sexualidade. Deduzimos isso
do fato de que, pouco acima, elencando as “obras da carne”, o Apóstolo
chama porneia, ou seja, impureza, aquilo que se opõe ao domínio de
si (é o mesmo termo do qual deriva “pornografia”!).
Nas traduções modernas da
Bíblia, o termo porneia é traduzido ora como prostituição, ora
como impureza, ora como fornicação ou adultério, e ora como outros vocábulos. A
ideia de fundo, contida no termo é, todavia, aquela de “vender-se”, de alienar
o próprio corpo, portanto, de prostituir-se (pernemi, em grego,
significa “me vendo”).
Usando este termo para
indicar quase todas as manifestações de desordem sexual, a Bíblia diz que todo
pecado de impureza é, em certo sentido, um prostituir-se, um vender-se.
Os termos usados por São
Paulo nos dizem, portanto, que são possíveis, com relação ao nosso próprio
corpo e a própria sexualidade, duas atitudes opostas, uma atitude do Espírito e
a outra obra da carne; uma, virtude e a outra vício.
A primeira atitude é conservar
o controle de si e do próprio corpo; a segunda é, pelo contrário, vender ou
alienar o próprio corpo, ou seja, dispor da sexualidade à vontade, para fins
utilitaristas e diversos daqueles para os quais foi criada; um transformar o
ato sexual em um ato venal, mesmo que o útil em questão não seja sempre
constituído pelo dinheiro, como no caso da prostituição verdadeira e real, mas
também pelo prazer egoísta como um fim em si mesmo.
Quando falamos da pureza e
da impureza em simples listas de virtudes ou de vícios, sem aprofundar a
matéria, a linguagem do Novo Testamento não é muito diferente da linguagem dos
moralistas pagãos, por exemplo, dos Estoicos.
Até os moralistas pagãos
exaltavam o domínio de si, mas somente em função da quietude interior, da impassividade
(apatheia), do autodomínio; a pureza era governada, para eles, pelo
princípio da "reta razão".
Na realidade, porém, dentro
desses velhos vocabulários pagãos, existe um conteúdo totalmente novo que
brota, como sempre, do querigma. Isso já é visível em nosso texto, onde a
devassidão é contraposta, de modo muito significativo, como seu contrário, do
“revestir-se do Senhor Jesus Cristo”.
Os primeiros cristãos foram
capazes de compreender este conteúdo novo, porque isso era objeto específico de
catequese em outros contextos.
Vamos agora examinar uma
dessas catequeses específicas sobre pureza, para descobrir o verdadeiro
conteúdo e as verdadeiras motivações cristãs dessa virtude que derivam do
evento pascal de Cristo. Trata-se do texto de 1Cor 6,12-20. Parece que os
Coríntios - talvez deturpando uma frase do Apóstolo - alegassem o princípio:
"tudo me é lícito", para justificar também os pecados da impureza.
Na resposta do Apóstolo está
contida uma motivação absolutamente nova da pureza que brota do mistério de
Cristo. Não é lícito - diz ele – entregar-se à impureza (porneia), não é
lícito vender-se, ou dispor de si à vontade, pelo simples fato de que nós não
nos pertencemos mais, não somos nossos, mas de Cristo. Não se pode dispor do
que não é nosso: "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo
[...] e que não pertenceis a vós mesmos?" (1Cor 6,15.19).
A motivação pagã é, em certo
sentido, invertida; o valor supremo a ser salvaguardado não é mais o domínio de
si, mas o “não domínio de si”. “O corpo não é para a impureza, mas para o
Senhor!” (1Cor 6,13): a motivação última da pureza é, portanto, que “Jesus é o
Senhor!”. A pureza cristã, em outras palavras, não consiste tanto em
estabelecer o domínio da razão sobre os instintos, mas em estabelecer o domínio
de Cristo sobre toda a pessoa, razão e instintos.
Esta motivação cristológica
da pureza torna-se mais convincente com aquilo que São Paulo acrescenta no
mesmo texto: não somos apenas genericamente “de” Cristo, como sua propriedade
ou sua coisa; nós somos o próprio corpo de Cristo, os seus membros! Isso torna
tudo imensamente mais delicado, porque significa que, ao cometer a impureza, eu
prostituo o corpo de Cristo, realizo uma espécie de sacrilégio odioso; uso da
"violência" ao corpo do Filho de Deus. Diz o Apóstolo: "Tomarei
então os membros de Cristo e torná-los-ei membros de uma prostituta?"
(1Cor 6,15).
A esta motivação
cristológica, acrescenta-se em seguida aquela pneumatológica, isto é, relativa
ao Espírito Santo: "Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito
Santo que está em vós?" (1Cor 6,19). Abusar do próprio corpo é, portanto,
profanar o templo de Deus; mas se alguém destruir o templo de Deus, Deus o
destruirá (cf. 1Cor 3,17). Cometer impureza é "entristecer o Espírito
Santo de Deus" (cf. Ef 4,30).
Juntamente com as motivações
cristológicas e pneumatológicas, o Apóstolo também menciona uma motivação
escatológica, que se refere ao destino final do homem: "Deus, que
ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará" (1Cor 6,14). O nosso corpo
está destinado à ressurreição; está destinado a participar, um dia, na
bem-aventurança e na glória da alma. A pureza cristã não se baseia no desprezo
do corpo, mas, ao contrário, na grande estima de sua dignidade.
O Evangelho - diziam os
Padres da Igreja ao combater os gnósticos - não prega a salvação "de"
carne, mas a salvação "da" carne. Aqueles que consideram o corpo um
"traje estrangeiro", destinado a ser abandonado aqui, não possuem os
motivos que o cristão tem para mantê-lo imaculado.
O Apóstolo conclui a sua
catequese sobre a pureza com o convite apaixonado: "Glorificai, pois, Deus
no vosso corpo" (1Cor 6,20). O corpo humano é, portanto, para a glória de
Deus e expressa essa glória quando a pessoa vive a própria sexualidade e toda a
sua corporeidade em obediência amorosa à vontade de Deus, que é como dizer: em
obediência ao próprio sentido da sexualidade, à sua natureza intrínseca e
originária que não é aquela de vender-se, mas aquela de doar-se.
Tal glorificação de Deus
através do seu próprio corpo não exige necessariamente a renúncia ao exercício
da própria sexualidade. No capítulo imediatamente seguinte, isto é, em 1Cor 7,
São Paulo explica, de fato, que tal glorificação de Deus é expressa de duas
maneiras e em dois carismas diferentes: ou através do casamento, ou através da
virgindade. Glorifica a Deus em seu corpo a virgem e o celibatário, mas também
o glorifica quem se casa, desde que todos vivam as exigências do próprio
estado.
2. Pureza, beleza e amor ao próximo
Na nova luz que emergiu do
mistério pascal e ilustrada até agora por São Paulo, o ideal da pureza ocupa um
lugar privilegiado em toda síntese da moral cristã do Novo Testamento. Não
existe, podemos dizer, uma carta de São Paulo na qual ele não dedique um
espaço, quando descreve a vida nova no Espírito (cf. por exemplo, Ef 4,17–5,33;
Cl 3,5-12).
Este requisito fundamental
de pureza é especificado, de tempos em tempos, de acordo com os diferentes
estados de vida dos cristãos. As epístolas pastorais mostram como a pureza deve
ser configurada em jovens, mulheres, casais, idosos, viúvas, presbíteros e
bispos; nos apresentam a pureza em suas várias faces de castidade, fidelidade
conjugal, sobriedade, continência, virgindade, modéstia.
No seu conjunto, este
aspecto da vida cristã determina o que o Novo Testamento – de modo especial, as
Epístolas pastorais – chama de “beleza” ou o caráter “belo” da vocação cristã,
que, fundindo-se com outra característica, a de bondade, forma o ideal único da
"boa beleza", ou da "bela bondade", o que nos levou a
falar, indiferentemente, tanto de obras boas como de obras belas.
A tradição cristã, chamando
a pureza de “bela virtude”, recolheu esta visão bíblica, que expressa, apesar
dos abusos e das ênfases muito unilaterais que também houve, algo de
profundamente verdadeiro. A pureza, de fato, é beleza!
Essa pureza é um modo de
vida, mais que uma única virtude. Tem uma gama de manifestações que vai além da
esfera propriamente sexual. Há uma pureza do corpo, mas há também uma pureza do
coração que evita não só os atos, mas também os desejos e os pensamentos
“feios” (cf. Mt 5,8.27-28).
Há também uma pureza da boca
que consiste, negativamente, em abster-se de palavras obscenas, de vulgaridades
e futilidades (cf Ef 5,4; Cl 3,8) e, positivamente, na sinceridade e retidão do
falar, ou seja, no dizer: “sim, sim” e “não, não”, a imitação do Cordeiro
imaculado “em cuja boca não se encontrou engano” (cf. 1Pd 2,22). Finalmente, há
uma pureza ou claridade dos olhos e do olhar.
O olho – dizia Jesus – é a
luz do corpo; se o olho é puro e claro, todo o corpo está na luz (cf. Mt 6,
22s; Lc 11, 34). São Paulo usa uma imagem muito sugestiva para indicar este
novo estilo de vida: diz que os cristãos, nascidos pela Páscoa de Cristo, devem
ser “fermento de pureza e de sinceridade” (cf. 1Cor 5,8). O termo usado aqui
pelo Apóstolo - eilikrinéia - contém, por si só, a imagem de
uma "transparência solar". Em nosso próprio texto, ele fala da pureza
como uma "arma da luz".
Hoje em dia, tende-se a
contrapor entre si os pecados contra a pureza e os pecados contra o próximo e
tende-se a considerar verdadeiro pecado somente o que é feito contra o próximo;
ironiza-se, às vezes, o culto excessivo concedido no passado à "bela
virtude".
Essa atitude, em parte, pode
ser explicada; a moral havia enfatizado muito unilateralmente, no passado, os
pecados da carne, até criar, por vezes, verdadeiras e reais neuroses, em
detrimento aos deveres para com o próximo e em detrimento da própria virtude da
pureza que foi, assim, empobrecida e reduzida a virtude quase somente negativa,
a virtude de saber dizer não. Mas agora, porém, se passou ao excesso oposto e
se tende a minimizar os pecados contra a pureza, privilegiando (muitas vezes
somente de palavra) uma atenção ao próximo. O erro de fundo está no opor estas
duas virtudes.
A palavra de Deus, longe de
opor pureza e caridade, liga-as intimamente uma a outra. Basta ler a
continuação da passagem da Primeira Carta aos Tessalonicenses que mencionei no
início, para entender como as duas coisas são interdependentes entre si segundo
o Apóstolo (cf. 1Ts 4,3-12). O propósito único da pureza e da caridade é ser
capaz de levar uma vida "cheia de decoro", isto é, íntegra em todas
as suas relações, tanto em relação a si mesmos quanto em relação aos outros. No
nosso texto, o Apóstolo resume tudo isso com a expressão: “comportar-se
honestamente como em pleno dia” (cf. Rm 13,13).
Pureza e amor ao próximo
estão entre si como o autocontrole e a doação aos demais. Como posso doar-me,
se não me possuo, mas sou escravo das minhas paixões? Como posso doar-me aos
demais, se não compreendi ainda o que me disse o Apóstolo, ou seja, que não me
pertenço e que o meu próprio corpo não é meu, mas do Senhor?
É uma ilusão acreditar que
se pode colocar junto um autêntico serviço aos irmãos, que requer sempre
sacrifício, altruísmo, esquecimento de si e generosidade, e uma vida pessoal
desordenada, inteiramente voltada a gratificar a si mesmos e as próprias
paixões. Terminamos, inevitavelmente, por instrumentalizar os irmãos, como se
instrumentaliza o próprio corpo. Não sabe dizer “sim” aos irmãos quem não sabe
dizer “não” a si mesmo.
Uma das
"desculpas" que mais contribuem para favorecer o pecado de impureza,
na mentalidade popular, e eliminar qualquer responsabilidade, é a indiferença
do tanto faz, pois isso não faz mal a ninguém, não viola os direitos e a
liberdade dos demais, a menos – se fala – que se trate de violência carnal.
Mas, além do fato de que viola o direito fundamental de Deus de dar uma lei às
suas criaturas, essa "desculpa" é falsa também com relação ao
próximo.
Não é verdade que o pecado
de impureza termina com quem o comete. Há uma solidariedade entre todos os
pecados. Todo pecado, onde quer que seja e por quem quer que seja cometido,
contagia e polui o ambiente moral do homem; este contágio é chamado por Jesus
“o escândalo” e é condenado por ele com algumas das palavras mais terríveis de
todo o Evangelho (cf Mt 18,6ss; Mc 9,42ss; Lc 17,1s). Mesmo os maus pensamentos
que estagnam no coração, de acordo com Jesus, poluem o homem e, portanto, o
mundo: “Do coração vêm os propósitos maus; os homicídios, os adultérios, as
prostituições... Estas são as coisas que poluem o homem” (Mt 15,19-20).
Todo pecado produz uma
erosão dos valores e todos juntos criam o que Paulo chama de "a lei do
pecado" e da qual ele ilustra o terrível poder sobre todos os homens (cf.
Rm 7,14ss). No Talmud judaico se lê uma parábola que ilustra bem a
solidariedade que existe no pecado e o dano que cada pecado, também o pessoal,
faz aos demais: "Algumas pessoas estavam a bordo de um barco. Uma delas
pegou uma broca e começou a fazer um buraco embaixo dela. Os outros
passageiros, vendo, disseram-lhe: "O que você está fazendo? - Ele
respondeu: O que isso importa a vocês? Eu não estou fazendo o buraco debaixo do
meu assento? - Mas eles responderam: - Sim, mas a água virá e nos afogará a
todos!" A própria natureza começou a nos enviar sinais sinistros de
protesto contra certos modernos abusos e excessos na esfera da sexualidade.
3. Pureza e renovação
Estudando a história das origens
cristãs, fica claro com clareza que foram dois os principais instrumentos com o
qual a Igreja conseguiu transformar o mundo pagão da época; o primeiro foi o
anúncio da Palavra, o querigma, e o segundo o testemunho de vida dos cristãos,
a martyria; e se vê como, no âmbito do testemunho de vida, duas
foram, de novo, as coisas que mais surpreenderam e converteram os pagãos: o
amor fraterno e a pureza dos costumes. Já a Primeira Carta de Pedro menciona o
assombro do mundo pagão em face do teor de vida tão diferente dos cristãos.
Escreve:
"Baste-vos que no tempo
passado tenhais vivido segundo os caprichos dos pagãos, em luxúrias,
concupiscências, embriaguez, orgias, bebedeiras e criminosas idolatrias.
Estranham eles agora que já não vos lanceis com eles nos mesmos desregramentos
de libertinagem, e por isso vos cobrem de calúnias." (1Pd 4,3-4).
Os Apologistas - isto é, os
escritores cristãos que escreveram em defesa da fé, nos primeiros séculos da
Igreja - atestam que os padrões de vida puro e casto dos cristãos era, para os
pagãos, algo de “extraordinário e inacreditável”. Em particular, teve um
impacto extraordinário sobre a sociedade pagã a reestruturação da família, que
as autoridades da época queriam reformar, mas que eram impotentes para conter a
desintegração.
Um dos argumentos que São
Justino Mártir utiliza para basear a sua Apologia dirigida ao imperador
Antonino Pio, é este: os imperadores romanos estão preocupados em restaurar os
costumes e a família e se esforçam para emanar, para esse fim, oportunas leis,
que se revelam, no entanto, insuficientes. Bem, por que não reconhecer o que
conseguiram obter as leis cristãs junto àqueles que a acolheram e a ajuda que
podem dar também à sociedade civil? Algumas donzelas cristãs brilhantes, mortas
mártires, mostraram até onde chegava, nesse ponto, a força do cristianismo.
Não devemos pensar que a
comunidade cristã estava totalmente livre de desordens e pecados em questões
sexuais. São Paulo teve que repreender um caso, até mesmo, de incesto, na
comunidade de Corinto. Mas esses pecados eram claramente reconhecidos como
tais, denunciados e corrigidos. Não se exigia que se fosse sem pecado, nesta
matéria, como no resto, mas de lutar contra o pecado.
Agora vamos dar um salto das
origens cristãs para os nossos dias. Qual é a situação no mundo de hoje em
relação à pureza? A mesma, se não pior, do que era naquele tempo! Nós vivemos
em uma sociedade que, em termos de costumes, mergulhou em pleno paganismo e em
plena idolatria do sexo. A tremenda denúncia que São Paulo faz do mundo pagão,
no começo da Carta aos Romanos, se aplica, ponto a ponto, ao mundo de hoje,
especialmente nas sociedades assim chamadas do bem-estar (cf. Rm 1,26-27.32).
Também hoje, não só se fazem
essas coisas e outras piores, mas também se tenta justificá-las, ou seja,
justificar toda licença moral e toda perversão sexual, desde que - dizem - ela
não faça violência aos outros e não prejudique a liberdade dos outros. Como se
Deus não tivesse nada a ver com isso!
Famílias inteiras são
destruídas e dizem: o que há de errado? Não há dúvida de que certos juízos da
moral sexual tradicional deviam ser revistos e que as modernas ciências do
homem têm ajudado a lançar luz sobre certos mecanismos e condicionamentos da
psique humana que removem ou diminuem a responsabilidade moral de certos
comportamentos considerados, uma vez, pecaminosos.
Mas este progresso não tem
nada a ver com o pansexualismo de certas teorias pseudo-científicas e
permissivas que tendem a negar qualquer norma objetiva em questões de moral
sexual, reduzindo tudo a uma questão de evolução espontânea dos costumes, ou
seja, a uma questão de cultura. Se examinarmos de perto aquela que é chamada de
revolução sexual dos nossos dias, percebemos, com espanto, que ela não é
simplesmente uma revolução contra o passado, mas é, muitas vezes, também uma
revolução contra Deus.
4. Puro de coração!
Mas eu não quero me demorar
muito descrevendo a situação atual que nos circunda que, além disso, todos
conhecemos bem. Muito me interessa, de fato, descobrir e transmitir o que Deus
quer de nós cristãos em tal situação. Deus nos chama ao mesmo empreendimento ao
qual ele chamou nossos primeiros irmãos de fé: "se opor a essa torrente de
perdição". Nos chama a fazer a "beleza" da vida cristã brilhar
novamente diante dos olhos do mundo. Nos chama a lutar pela pureza. Lutar com
tenacidade e humildade; não necessariamente a ser, todos e imediatamente,
perfeitos. Esta é uma luta tão antiga quanto a própria Igreja.
Hoje há algo novo que o
Espírito Santo nos chama a fazer: ele nos chama a testemunhar ao mundo a
inocência original das criaturas e das coisas. O mundo afundou muito baixo; o
sexo - foi escrito - subiu na cabeça de todos. Algo muito forte é necessário
para quebrar esse tipo de narcose e intoxicação sexual. É necessário despertar
no homem a nostalgia da inocência e da simplicidade que ele traz em seu coração
com pungência, ainda que tantas vezes coberta de lama.
Não de uma inocência de
criação que não há mais, mas de uma inocência de redenção que nos foi devolvida
por Cristo e que nos é oferecida nos sacramentos e na palavra de Deus. São
Paulo assinala este programa quando escreve aos Filipenses: " Sejam
irrepreensíveis e simples, filhos de Deus imaculados no meio de uma geração
perversa e degenerada, na qual vocês devem brilhar como estrelas no mundo,
mantendo no alto a palavra de vida "(Fp 2,15ss). Isto é o que o apóstolo
chama, em nosso texto, "usar as armas da luz".
Não basta mais uma pureza
feita de medos, de tabus, de proibições, de fuga recíproca entre o homem e a
mulher, como se um fosse, sempre e necessariamente, uma armadilha para o outro
e um inimigo potencial, mais que uma "ajuda". No passado, a pureza
tinha sido reduzida, às vezes, pelo menos na prática, precisamente a este
complexo de tabu, de proibições e de medos, como se a virtude tivesse que se
envergonhar perante o vício e não, pelo contrário, o vício a ter que se
envergonhar perante a virtude.
Devemos desejar, graças à
presença em nós do Espírito, uma pureza que seja mais forte do que o vício; uma
pureza positiva, não somente negativa, que seja capaz de fazer-nos experimentar
a verdade dessa palavra do Apóstolo: "Tudo é puro para os que são
puros!" (Tt 1,15) e desta outra palavra da Escritura: " Aquele que
está em ti é maior do que aquele que está no mundo" (1Jo 4,4).
Temos de começar curando a
raiz que é o "coração", porque é dali que sai tudo aquilo que polui
verdadeiramente a vida de uma pessoa (cf. Mt 15,18ss). Jesus dizia:
"Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus" (Mt 5,8).
Eles realmente verão, isto é, terão novos olhos para ver o mundo e Deus, olhos
limpos que sabem ver o que é belo e o que é feio, o que é verdade e o que é
mentira, o que é vida e o que é morte. Olhos, em suma, como os de Jesus.
Com que liberdade Jesus
podia falar de tudo: das crianças, da mulher, da gestação, do parto... Olhos
como os de Maria. A pureza não consiste mais, então, em dizer “não” às
criaturas, mas em dizer “sim”; sim em quanto criaturas de Deus que eram, e
permanecem, “muito boas”.
Nós não nos iludimos. Para
poder dizer esse "sim", devemos passar pela cruz, porque depois do
pecado, nosso olhar sobre as criaturas se tornou nublado; a concupiscência foi
desencadeada em nós; a sexualidade não é mais pacífica, tornou-se uma força
ambígua e ameaçadora que nos atrai contra a lei de Deus, apesar de nossa
própria vontade. Na primeira meditação desta Quaresma, insistimos em um aspecto
particularmente atual e necessário da mortificação: a dos olhos. Um jejum
saudável das imagens é mais importante hoje do que o jejum das comidas e das
bebidas.
Concluo trazendo à vossa
mente a experiência de Santo Agostinho recordada no início. Depois daquela
experiência, o santo inventou uma oração toda sua para obter a castidade:
“Senhor, disse, tu me ordenas ser casto. Pois bem, dá-me o que me ordenas e
então ordena-me o que quiseres”. Uma oração que todos podemos fazê-la nossa,
recordando que nisso, bem como em qualquer outro campo, sem a graça de Deus não
podemos fazer nada.
[1] S. Agostino,
Confessioni, VIII, 11-12.
Fonte: Vatican News
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