O Papa Bento XVI concluiu suas meditações sobre a oração nas Cartas de Paulo - parte das suas Catequeses sobre a oração - com o célebre hino cristológico da Carta aos Filipenses (Fl 2,6-11).
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Papa Bento XVI
Audiência Geral
Quarta-feira, 27 de junho de 2012
A oração (38):
O hino da Carta aos Filipenses
Queridos
irmãos e irmãs,
Como
vimos nas quartas-feiras anteriores, a nossa oração é feita de silêncios e
palavras, de cânticos e gestos que envolvem toda a pessoa: da boca à mente, do
coração ao corpo inteiro. É uma característica que encontramos na oração
judaica, especialmente nos Salmos. Hoje gostaria de falar sobre um dos cânticos
ou hinos mais antigos da tradição cristã, que São Paulo nos apresenta naquele
que é, em certo sentido, o seu testamento espiritual: a Carta aos Filipenses.
De fato, trata-se de uma carta que o Apóstolo ditou enquanto estava na prisão,
talvez em Roma. Ele sentia que a morte estava próxima porque afirmou que a sua
vida seria oferecida em libação (Fl 2,17).
Não
obstante esta situação de grave perigo para a sua integridade física, São
Paulo, em todo o texto, expressa a alegria de ser discípulo de Cristo, de poder
ir ao seu encontro, até ao ponto de ver a morte não como uma perda, mas como
lucro. No último capítulo da Carta há um convite insistente à alegria,
característica fundamental do ser cristão e da nossa oração. São Paulo escreve:
«Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo eu vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4,4).
Mas como se pode rejubilar diante de uma condenação à morte iminente? De onde,
ou melhor, de quem São Paulo extrai a serenidade, a força e a coragem para ir
ao encontro do martírio e do derramamento do sangue?
Cristo como “Homem das Dores” (Antonio de Pereda y Salgado) |
Encontramos
a resposta no centro da Carta aos Filipenses, naquele que a tradição
cristã denomina carmen Christo, o cântico a Cristo, ou, mais comumente,
«hino cristológico»; um cântico no qual toda a atenção está centrada nos
«sentimentos» de Cristo, isto é, no seu modo de pensar e na sua atitude
concreta e viva. Esta oração inicia com a exortação: «Tende entre vós os mesmos
sentimentos que há em Cristo Jesus» (Fl 2,5). Tais sentimentos são
apresentados nos versículos sucessivos: o amor, a generosidade, a humildade, a
obediência a Deus, o dom de si. Trata-se não só nem simplesmente de seguir o
exemplo de Jesus, como uma ação moral, mas de comprometer toda a existência no
seu modo de pensar e agir. A oração deve levar a uma consciência e a uma união
no amor cada vez mais profundas com o Senhor, para poder pensar, agir e amar
como Ele, n’Ele e por Ele. Realizar isto e aprender os sentimentos de Jesus é o
caminho da vida cristã.
Agora
gostaria de refletir brevemente sobre alguns elementos deste cântico profundo,
que resume todo o itinerário divino e humano do Filho de Deus e abrange a
história humana inteira: desde o estar na condição de Deus, até à Encarnação, à
Morte na cruz e à exaltação na glória do Pai está implícito também o
comportamento de Adão, do homem desde o início. Este hino a Cristo inicia a
partir do seu ser «en morphé tou Theou» (ἐν μορφῇ θεοῦ), diz
o texto grego, isto é, do estar «na forma de Deus», ou melhor, na condição de
Deus. Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não vive o seu «ser como Deus»
para triunfar ou impor a sua supremacia, não o considera uma posse, um privilégio,
um tesouro ao qual apegar-se. Ao contrário, «despojou-se», esvaziou-se a si
mesmo, assumindo, diz o texto grego, a «morphé doulos» (μορφὴ δοῦλος), a
«forma de servo», a realidade humana marcada pelo sofrimento, pela pobreza,
pela morte; assemelhou-se plenamente aos homens, exceto no pecado (cf. Hb
4,15), de modo a comportar-se como servo completamente dedicado ao serviço dos
outros. Eusébio de Cesareia afirma: «Tomou sobre si mesmo as dores dos que
sofrem. Fez suas as nossas humildes doenças. Sofreu e foi atribulado por nossa
causa: isto em conformidade com o seu grande amor pela humanidade» (Demonstração
evangélica, 10, 1, 22).
São
Paulo continua delineando o quadro «histórico» no qual se realizou este
abaixamento de Jesus: «Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte»
(Fl 2, 8). O Filho de Deus tornou-se verdadeiramente homem e
percorreu um caminho na total obediência e fidelidade à vontade do Pai, até ao
sacrifício supremo da própria vida. Mais ainda, o Apóstolo especifica «até a
morte, e morte de cruz». Na cruz Jesus Cristo alcançou o máximo grau de
humilhação, porque a crucificação era a pena reservada aos escravos e não às
pessoas livres: «mors turpissima crucis», escreve Cícero (In
Verrem, V, 64, 165).
Na Cruz
de Cristo o homem é redimido e a experiência de Adão é cancelada: Adão, criado
à imagem e semelhança de Deus, pretendeu ser como Deus com as próprias forças,
colocar-se no lugar de Deus, e assim perdeu a dignidade original que lhe fora
atribuída. Ao contrário, Jesus estava «na condição de Deus», mas rebaixou-se,
entrou na condição humana, em total fidelidade ao Pai, para redimir o Adão que
está em nós e restituir ao homem a dignidade que perdera. Os Padres realçam que
Ele se fez obediente, restituindo à natureza humana, através da sua humanidade
e obediência, o que se tinha perdido por causa da desobediência de Adão.
Na
oração, na relação com Deus, abrimos a mente, o coração e a vontade à ação do
Espírito Santo para entrar na mesma dinâmica de vida, como afirma São Cirilo de
Alexandria, cuja festa celebramos hoje: «A obra do Espírito procura
transformar-nos por meio da graça na cópia perfeita da sua humilhação» (Cartas
Festais 10, 4). A lógica humana, ao contrário, com frequência procura
a realização de si mesmo no poder, no domínio e nos meios poderosos. O homem
continua a querer construir com as próprias forças a torre de Babel para
alcançar por si mesmo a altura de Deus, para ser como Deus. A Encarnação e a
Cruz recordam-nos que a realização plena consiste em conformar a própria vontade
humana à do Pai, em livrar-se do próprio egoísmo, para se encher do amor, da
caridade de Deus e assim em tornar-se verdadeiramente capaz de amar os outros.
O homem não se encontra a si mesmo permanecendo fechado, afirmando-se a si
mesmo. Só saindo de si mesmo o homem se encontra; só se sairmos de nós mesmos
nos encontramos. E se Adão queria imitar Deus, por si só isto não é mau, mas
errou sobre a ideia de Deus. Deus não é alguém que quer apenas grandeza. Deus é
amor que se doa já na Trindade, e depois na criação. E imitar Deus quer dizer
sair de si mesmo, doar-se no amor.
Na
segunda parte deste «hino cristológico» da Carta aos Filipenses, o
sujeito muda: já não é Cristo, mas Deus Pai. São Paulo realça que é
precisamente pela obediência à vontade do Pai, que «Deus o exaltou acima de
tudo e lhe deu o nome que está acima de todo nome» (Fl 2,9). Aquele
que se abaixou profundamente, assumindo a condição de escravo, é exaltado,
elevado sobre todas as coisas pelo Pai, que lhe dá o nome de «Kyrios» (Kύριος),
«Senhor», a suprema dignidade e senhorio. De fato, diante desse nome novo, que
é o próprio nome de Deus no Antigo Testamento, «todo joelho se dobre no céu, na
terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor” para
a glória de Deus Pai» (vv. 10-11). O Jesus exaltado é o da Última Ceia, que
depõe as vestes, se cinge com uma toalha, se inclina para lavar os pés aos Apóstolos
e lhes pergunta: «Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e
Senhor, e dizeis bem, pois Eu o sou. Portanto, se Eu, o Senhor e Mestre, vos
lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros» (Jo 13,12-14).
É importante recordar sempre isto na nossa oração e na nossa vida: «A subida para
Deus acontece precisamente na descida ao serviço humilde, na descida ao amor,
que é a essência de Deus e, portanto, a verdadeira força purificadora, que capacita
o homem para conhecer e para ver a Deus» (Jesus de Nazaré, vol. 1,
Planeta, 2007, p. 95).
O hino
da Carta aos Filipenses oferece-nos aqui duas indicações importantes
para a nossa oração. A primeira é a invocação «Senhor», dirigida a Jesus
Cristo, sentado à direita do Pai: Ele é o único Senhor da nossa vida, no meio
de muitos «dominadores» que querem orientá-la e guiá-la. Por isso, é necessário
dispor de uma escala de valores na qual a primazia compete a Deus, para afirmar
com São Paulo: «Considero tudo como perda diante da vantagem suprema que
consiste em conhecer a Cristo Jesus, meu Senhor» (Fl 3,8). O
encontro com o Ressuscitado levou-o a compreender que Ele é o único tesouro
pelo qual vale a pena despender a própria existência.
A
segunda indicação é a prostração, o «dobrar-se de todos os joelhos» na terra e
nos céus, que evoca uma expressão do profeta Isaías, onde indica a adoração que
todas as criaturas devem a Deus (cf. Is 45,23). A genuflexão diante do
Santíssimo Sacramento, ou o pôr-se de joelhos na oração exprimem precisamente a
atitude de adoração perante Deus, também com o corpo. Daqui a importância de
realizar este gesto não por hábito e à pressa, mas com consciência profunda.
Quando nos ajoelhamos diante do Senhor, professamos a nossa fé n’Ele,
reconhecemos que Ele é o único Senhor da nossa vida.
Caros
irmãos e irmãs, na nossa oração fixemos o nosso olhar no Crucifixo, detenhamo-nos
em adoração mais frequentemente diante da Eucaristia, para fazer entrar a nossa
vida no amor de Deus, que se abaixou com humildade para nos elevar a Ele. No
início da Catequese perguntamo-nos como podia São Paulo alegrar-se diante do
risco iminente do martírio e da efusão do seu sangue. Isto só é possível porque
o Apóstolo nunca afastou o seu olhar de Cristo, até se conformar com Ele na
morte, «na esperança de alcançar a ressurreição dos mortos» (Fl 3,11).
Como São Francisco diante do Crucifixo, também nós digamos: «Deus Altíssimo e
glorioso, iluminai as trevas do meu coração. Concedei-me uma fé reta, uma
esperança certa e uma caridade perfeita, juízo e discernimento para cumprir a
tua verdadeira e santa vontade. Amém!» (Oração diante do Crucifixo: Fontes
Franciscanas, 276).
Fonte: Santa Sé.
Confira também quatro meditações sobre esse hino no contexto das Catequeses sobre os Salmos e Cânticos da Liturgia das Horas: duas proferidas por São João Paulo II (n. 92 e n. 114) e duas por Bento XVI (n. 136 e n. 152).
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