“O Senhor disse a
Abraão: Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra!” (cf. Gn 12,1.3).
Nas postagens anteriores da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos o estudo de um dos escritos
mais importantes do Antigo Testamento (AT), o primeiro dos rolos da Torá
(Pentateuco): o Livro do Gênesis (Gn).
Começamos analisando a leitura litúrgica dos capítulos 1–11,
a “História das Origens”. Agora daremos continuidade com os capítulos 12–50, a
“História dos Patriarcas”.
1. Breve introdução
ao Livro do Gênesis 12–50: “História
dos Patriarcas”
Das origens do mundo e do ser humano nos capítulos 1 a 11, o
Livro do Gênesis passa a narrar as
origens do povo de Israel. O “ciclo dos Patriarcas” remonta aos séculos XVIII a
XV a. C., quando os primeiros hebreus formavam tribos nômades de pastores que
viviam entre a Mesopotâmia e o Egito.
Como vimos em nossa introdução a Gn 1–11, estas histórias foram escritas séculos depois dos acontecimentos,
que sobreviveram na memória do povo graças à tradição oral. A maior parte dos
relatos da “História dos Patriarcas” é da chamada “tradição javista”, anterior ao
exílio da Babilônia (séc. X-VII a. C.). A redação final dos textos, porém,
aconteceu após o retorno do exílio (séc. VI-V a. C.).
Esta segunda parte do Gênesis
possui três grandes ciclos, conforme seus protagonistas:
a) Gn 12,1–25,18:
A história de Abraão;
b) Gn 25,19–36,43:
A história de Isaac e Jacó;
c) Gn 37–50: A
história de José.
Com Abraão, cuja genealogia já havia sido delineada no final
do capítulo 11, começa a história dos Patriarcas. Em sua “vocação” Deus lhe faz
três promessas: terra - “Sai da tua
terra... para a terra que eu te mostrarei” (Gn 12,1); descendência - “Eu
farei de ti um grande povo” (v. 2); e bênção, entendida sobretudo como proteção
contra os inimigos - “Abençoarei os que
te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem” (v. 3).
Esta tríplice promessa será reafirmada diversas vezes, tanto
a Abraão quanto a seus descendentes, Isaac e Jacó. A fé de Abraão na promessa
será testada no capítulo 22, com o célebre relato do “sacrifício” de Isaac, um
texto que exprime a rejeição de Deus ao sacrifício humano.
O ciclo de Isaac e Jacó é mais centrado neste último,
sobretudo por causa dos seus doze filhos, que depois nomearão as doze tribos de
Israel: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Dã, Neftali, Gad, Aser, Issacar, Zabulon,
José e Benjamim. A tribo de José, por sua vez, será dividida entre seus filhos:
Efraim e Manassés.
O “romance de José”, terceiro ciclo da segunda parte do Gn, é considerado por alguns estudiosos
como um relato à parte, fazendo a ponte entre a história dos três grandes
patriarcas e o relato do Livro do Êxodo.
Este bloco de capítulos, com efeito, é um romance bem elaborado,
que pode ser dividido em três “atos”, “emoldurados” por um prólogo e um
epílogo:
Gn 37 (Prólogo):
José e seus irmãos (seguido por um interlúdio sobre Judá no cap. 38);
Gn 39–41 (1º ato):
José no Egito;
Gn 42–45 (2º ato):
Os irmãos de José no Egito;
Gn 46–49 (3º ato):
Jacó no Egito (Gn 49,1-28 é outro interlúdio,
com a bênção de Jacó aos seus doze filhos);
Gn 50 (Epílogo):
Funerais de Jacó e morte de José.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
de Gênesis 12–50: Composição
harmônica
Como fizemos com os capítulos 1–11, analisaremos a leitura
litúrgica dos capítulos 12–50 do Livro do
Gênesis a partir dos dois critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a
composição harmônica e a leitura semicontínua [1]. Começamos pela composição
harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Começamos nosso percurso pelo Ano Litúrgico através do Ciclo do Advento-Natal, no qual encontramos duas leituras da
“História dos Patriarcas”.
No final do Advento, de 17 a 24 de dezembro, leem-se os
Evangelhos que preparam o nascimento do Senhor, enquanto as leituras do AT
foram selecionadas “levando em consideração o Evangelho do dia” (ELM, n. 94) [2].
Assim, na Missa de 17
de dezembro lemos Gn 49,2.8-10 [3],
a bênção de Jacó ao seu filho Judá. Da tribo de Judá, com efeito, virá o
Messias, como o demonstra, no Evangelho do dia, a genealogia de Jesus, “filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1-17).
Na Festa da Sagrada
Família, no domingo após ao Natal, a Igreja propõe como 1ª leitura à escolha para o ano B o texto de Gn 15,1-6; 21,1-3 [4]: a promessa de uma descendência numerosa a Abraão e o relato do nascimento de Isaac. A 2ª leitura à escolha, por
sua vez, elogia a fé de Abraão, recompensada com a continuidade de sua família
(Hb 11,8.11-12.17-19).
Na sequência, contemplamos o Tempo da Quaresma, em cujos domingos as leituras do AT “referem-se
à história da salvação (...). Cada ano há uma série de textos que apresentam os
principais elementos desta história” (ELM, n. 97) [5]. Assim, Gn 12–50 aparece sempre como 1ª leitura do II Domingo da Quaresma:
- II Domingo da
Quaresma do ano A: Gn 12,1-4a [6],
a “vocação de Abraão”, com a tríplice promessa de terra, descendência e bênção.
O tema da vocação é retomado na 2ª leitura (2Tm
1,8b-10);
- II Domingo da Quaresma do ano B: Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18 [7], o “sacrifício” de Isaac, lido, à luz da 2ª leitura (Rm 8,31b-34), como prefiguração do sacrifício de Cristo;
- II Domingo da Quaresma do ano C: Gn 15,5-12.17-18 [8], novo relato da aliança e das promessas a Abraão.
Partida de Abraão rumo à terra prometida (Jozsef Molnar) |
Ainda no Tempo da
Quaresma, encontramos outras duas leituras do nosso escrito nos dias de
semana, nos quais “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram
escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos
temas próprios da catequese quaresmal”. A partir da IV semana, por sua vez, começa a leitura semicontínua do Evangelho de João, com leituras em sintonia com o relato evangélico (cf. ELM, n. 98) [9].
Na sexta-feira da II
semana da Quaresma lemos Gn
37,3-4.12-13a.17b-28 [10], o prólogo da história de José, no qual este quase é
morto por seus irmãos. Sua história ecoa no Evangelho (Mt
21,33-43.45-46), através da parábola dos
vinhateiros homicidas: “Aí vem o
sonhador! Vamos matá-lo...” (Gn
37,19-20); “Este é o herdeiro. Vinde,
vamos matá-lo...” (Mt 21,38).
Na quinta-feira da V
semana da Quaresma, por sua vez, a Igreja proclama Gn 17,3-9 [11], a “aliança eterna” de Deus com Abraão e sua
descendência. Jesus, no Evangelho (Jo
8,51-59) recorda o grande Patriarca - “Abraão
exultou por ver o meu dia; ele o viu e alegrou-se” (v. 56) -, apresentando-se
como superior a ele: “Antes que Abraão
existisse, eu sou” (v. 58).
Passada a Quaresma, chegamos ao coração do Ano Litúrgico,
isto é, ao Tríduo Pascal. Já vimos em nossa postagem sobre Gn 1–11 que a 1ª leitura proposta para a Vigília
Pascal é Gn 1,1–2,2, o relato da
criação.
Também a 2ª leitura da Vigília é tomada do Gênesis: Gn 22,1-18 (forma breve: Gn
22,1-2.9a.10-13.15-18) [12], o “sacrifício” de Isaac, como vimos acima,
interpretado como uma prefiguração do sacrifício de Cristo, “cordeiro pascal”
que foi imolado em favor dos “filhos de Abraão”.
Após o Pentecostes, celebramos algumas solenidades do Senhor no Tempo Comum que de certa forma são um
eco do Tempo Pascal.
Assim, na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de
Cristo, mais conhecida como Corpus Christi (II quinta-feira após
o Pentecostes), a 1ª leitura no ano C é Gn
14,18-20 [13]. Trata-se do encontro de Abraão com um misterioso personagem,
interpretado como prefiguração de Cristo: Melquisedec, rei e sacerdote, que
oferece a Deus pão e vinho.
Antes ainda da Solenidade de Corpus Christi, celebra-se em alguns lugares a Festa de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote (quinta-feira após o Pentecostes), instituída pelo Papa Bento XVI em 2012, cuja celebração ficou a cargo de cada Conferência Episcopal.
Para esta Festa foi proposto um ciclo trienal de leituras. Assim, a 1ª opção de leitura para o Ano A é tomada do nosso livro: Gn 22,9-18 [14], parte do relato do “sacrifício” de Isaac. A chave de leitura aqui é a “obediência”, reforçada pelo Sl 39 (40) e pelo Evangelho: Mt 26,36-42.
Sacrifício de Isaac (Rafael Sanzio) |
Por fim, em relação aos tempos do Ano Litúrgico, passamos
aos domingos do Tempo Comum, nos
quais as leituras do AT são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” (ELM, n. 106) [15].
Aqui temos outras duas ocorrências do nosso escrito:
- XVI Domingo do Tempo
Comum do ano C: Gn 18,1-10a [16],
a hospitalidade de Abraão, que recebe junto ao carvalho de Mambré três
misteriosos personagens (interpretados como anjos ou mesmo como uma
prefiguração da Trindade). O tema da filoxenia,
isto é, da hospitalidade, é retomado no Evangelho (Lc 10,38-42), com a acolhida de Jesus na casa de Marta e Maria.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone da Santíssima Trindade.
Vale destacar que as leituras desse domingo são adaptadas -
incluindo Gn 18,1-10a - para a Missa
votiva dos Santos Lázaro, Marta e Maria, a ser celebrada pelos peregrinos que visitam seu Santuário em Betânia [17].
Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
- XVII Domingo do Tempo
Comum do ano C: Gn 18,20-21.23-32
[18], a intercessão de Abraão pela cidade de Sodoma, “negociando” com o Senhor
para salvá-la em atenção aos justos que nela habitavam. O patriarca torna-se
assim modelo da perseverança na oração, ensinada por Jesus no Evangelho (Lc 11,1-13).
Após os tempos litúrgicos, seguimos com os Comuns dos Santos, formulários com
várias opções de textos ad libitum (à
escolha) conforme as “categorias” de santos. Aqui a perícope da vocação de
Abraão é proposta em dois Comuns:
- Comum de Nossa
Senhora: Gn 12,1-7 [19].
A ênfase aqui reside na promessa da descendência, culminando em Cristo, que se
torna “filho de Abraão” (Mt 1,1) ao
assumir a nossa humanidade no seio de Maria;
- Comum dos Santos: Gn 12,1-4a [20]. Destaca-se neste
contexto a obediência de Abraão ao Senhor, pressuposto básico da santidade.
Uma vez mencionadas as celebrações dos santos, vale destacar
que o Patriarca Abraão é comemorado pelo Martirológio Romano no
dia 09 de outubro (em Jerusalém, Memória obrigatória) e o misterioso Melquisedec, prefiguração de Cristo rei
e sacerdote, no dia 26 de agosto.
Outras tradições cristãs celebram alguns dos personagens de Gn
12–50 nas seguintes datas: Isaac a 16 de agosto; Jacó a 05 de fevereiro; José a
31 de março; e Sara a 20 de janeiro.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto aos santos do Antigo Testamento.
O encontro de Abraão com Melquisedec (Juan Antonio de Frías) |
Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
presença dos capítulos 12 a 50 do Livro
do Gênesis nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na segunda parte prosseguiremos
com as Missas para diversas necessidades e votivas, os demais sacramentos, os
sacramentais e a Liturgia das Horas, além de contemplar sua leitura semicontínua.
Breve bibliografia
sobre Gênesis 12–50 usada para esta
postagem:
CLIFFORD, Richard J.; MURPHY, Roland E. Gênesis. in: BROWN,
Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 59-62.79-127. (Introdução
e comentário sobre Gn 1,1–25,18: R. J. Clifford; comentário sobre Gn
25,19–50,26: R. E. Murphy)
DE PURY,
Albert. Gênesis 12–36; in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel;
NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 168-194.
LÓPEZ, Félix Gárcia. O
Livro do Gênesis: III. “Histórias dos Patriarcas” (11,27–50,26). - in: O
Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 80-107. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 3A.
TORRALBA, Juán. Guillén. Gênesis. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA,
Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo
Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 31-36.69-111.
UEHLINGER,
Christoph. Gênesis 37–50: o “Romance de
José”. in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo:
Loyola, 2015, pp. 195-214.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 94.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[4] LECIONÁRIO I:
Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[5] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 97.
[6] LECIONÁRIO I.
[7] ibid.
[8] ibid.
[9] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 97.
[10] LECIONÁRIO II.
[11] ibid.
[12] LECIONÁRIO I.
[13] ibid.
[14] cf. Revista Notitiae, n. 551-552 (2012,
n. 7-8), p. 366. A outra opção de leitura é Hb 10,4-10.
[15] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[16] LECIONÁRIO I.
[17] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
Cada santuário da Terra Santa possui uma ou mais “Missas votivas
do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos da história da
salvação a ele associados. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
As leituras indicadas para a Missa votiva dos Santos Marta,
Maria e Lázaro em Betânia são: Gn 18,1-10a ou 1Jo 4,7-16; Sl
14,2-5 (R: v. 1); Lc 10,38-42 ou Jo 11,19-27.
[18] LECIONÁRIO I.
[20] ibid.
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