“No princípio criou
Deus o céu e a terra” (Gn 1,1).
Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, iniciaremos o estudo de um dos escritos mais
importantes do Antigo Testamento (AT), o primeiro dos rolos da Torá
(Pentateuco): o Livro do Gênesis (Gn).
Este livro é claramente dividido em duas partes: a “História
das Origens” (cap. 1–11) e a “História dos Patriarcas” (cap. 12–50). Devido às
grandes diferenças entre as duas partes, começaremos analisando a leitura
litúrgica dos capítulos 1–11.
A criação (Santuário da Imaculada Conceição, Washington) |
1. Breve introdução ao Livro do Gênesis 1–11: “História das Origens”
O “tema” da primeira parte dá nome ao livro em grego: Gênesis (Γένεσις), “origem”, do mundo e do ser humano. Em hebraico, por sua vez, o nome dos livros da Torá é a primeira palavra do texto: no caso, Bereshit, “no início” ou “no princípio”.
O Livro do Gênesis foi escrito ao longo de vários
séculos, recolhendo tradições orais que foram compiladas por diferentes escolas
teológicas. Em seus primeiros onze capítulos é possível identificar ao menos duas
grandes tradições que se intercalam: a tradição “javista” e a tradição “sacerdotal”.
A tradição “javista” seria a mais antiga, anterior ao exílio
da Babilônia (séc. X-VII a. C.). Nesta tradição, Deus é representado com traços
antropomórficos: modela o homem com
argila (Gn 2,7), planta um jardim (v. 8), tece
vestes para o homem e a mulher (Gn 3,21). À narrativa javista da criação (Gn 2,4b-25), centrada no ser humano, seguem os relatos da
queda, fruto do mau uso da liberdade: Adão e Eva (cap. 3), Caim (cap. 4), a
torre de Babel (Gn 11,1-9).
A tradição “sacerdotal”, por sua vez, remontaria ao período exílico
e pós-exílico (séc. VI-V a. C.). Deus é representado de maneira mais
transcendente: cria apenas com sua palavra. O primeiro relato da criação (Gn 1,1–2,4a), a célebre narrativa dos
seis dias (hexaemeron), é fruto desta tradição: tem um alcance cósmico, um caráter poético, com expressões
que se repetem como um refrão, e culmina na bênção de Deus sobre a criação e o
descanso sabático (sétimo dia).
Além disso, pertencem também à tradição “sacerdotal” as
descendências ou genealogias (toledot):
de Adão a Noé (cap. 5) e de Noé a Abraão (cap. 10-11).
As duas tradições ora se intercalam em blocos distintos, ora
se interpenetram em um único bloco, como é o caso dos relatos sobre o dilúvio,
desde o anúncio do pecado da humanidade até a morte de Noé (cap. 6–9). Por exemplo,
enquanto um relato menciona um casal de animais de cada espécie, indistintamente
(Gn 6,19-20), o outro relato insiste na diferença entre animais “puros”
e “impuros” (Gn 7,2-3).
É importante ter presente que Gn 1–11 não é uma narrativa histórica, mas sim teológica. O relato
dos seis dias, por exemplo, deve ser lido como uma poesia, como um hino ao Deus
criador. Seu objetivo não é nos dizer como
Deus criou o mundo, mas porquê:
porque Deus é bom e quer comunicar sua bondade. Por isso o refrão: “E Deus viu que era bom” (Gn 1,4.10.12.18.21.25.31).
Ao longo de todo o Livro, com efeito, há duas “forças” que
movimentam a história: o amor de Deus e a liberdade do ser humano, a partir da
qual este pode escolher o bem ou o mal (pecado).
Os onze primeiros capítulos utilizam a linguagem mítica, isto
é, a linguagem das narrativas sagradas dos povos vizinhos. Porém, enquanto o
mito permanece sempre fora da história, o Gênesis
caminha para a história, com os relatos dos patriarcas a partir do capítulo 12.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica de Gênesis 1–11: Composição harmônica
Como temos feito com todos os livros estudados nesta série, analisaremos a leitura litúrgica dos capítulos 1–11 do Livro do Gênesis a partir dos critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1]. Começamos pela composição harmônica, isto é, pelos textos escolhidos por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Começamos nosso percurso pelas celebrações do Ano Litúrgico
com o Tempo da Quaresma. Nos domingos
deste tempo as leituras do AT “referem-se à história da salvação (...). Cada ano
há uma série de textos que apresentam os principais elementos desta história” [2].
Assim, no I Domingo
da Quaresma do ano A lemos Gn
2,7-9; 3,1-7 [3]. Os primeiros dois versículos da perícope trazem a segunda
narrativa da criação do homem, enquanto que o resto do texto relata a
queda de Adão e Eva: tentados pela serpente, querem “tornar-se como Deus” (v. 5).
Cumpre notar que o Evangelho do I Domingo da Quaresma é
sempre o das tentações de Jesus (Mt
4,1-11; Mc 1,12-15; Lc 4,1-13). Estabelece-se assim um paralelo
antitético entre os dois textos: enquanto os primeiros pais cederam à tentação,
mesmo estando no paraíso, Cristo, o novo Adão, vence a tentação no lugar mais
inóspito, o deserto.
As leituras do I Domingo da Quaresma do Ano A são adaptadas para a Missa votiva do jejum do Senhor (De Commeratione Ieiunii Domini), que pode ser celebrada pelos peregrinos que visitam Jericó, próximo ao deserto onde Jesus sofreu as tentações. A perícope indicada aqui é Gn 3,1-8 [4].
Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
No I Domingo da
Quaresma do ano B, por sua vez, lê-se Gn
9,8-15 [5], a aliança que Deus fez com Noé e sua descendência após o dilúvio,
prometendo não mais destruir a terra, e marcando o céu com o sinal desta
aliança: o arco-íris.
Ainda em relação à Quaresma, vale recordar a tradicional antífona
para a imposição das cinzas na Quarta-feira de Cinzas, a advertência divina ao homem após o pecado, recordando nossa fragilidade: “Lembra-te que és pó, e
ao pó hás de voltar” (cf. Gn 3,19) [6].
A criação de Adão (Michelangelo, Capela Sistina) |
Concluída a Quaresma, a Igreja nos propõe uma leitura de Gn 1–11 no coração do Ano Litúrgico, isto é, no Tríduo Pascal. A 1ª leitura para a Vigília Pascal é Gn 1,1–2,2 [7], o primeiro relato da criação ou, em sua forma breve, Gn 1,1.26-31a, a criação do homem e da mulher “à imagem e semelhança” de Deus.
Uma vez que a Ressurreição é considerada uma nova criação, nada mais justo do que, nesta noite santa, recordar o início da história da salvação. A oração após a forma breve da leitura, com efeito, proclama Deus “admirável na criação do ser humano e mais ainda na sua redenção” [8].
Se a Vigília Pascal marca o início do Tempo da Páscoa, a Vigília de Pentecostes encontra-se na
sua conclusão. A perícope de Gn
11,1-9 [9], o episódio da torre de Babel, é a 1ª leitura na forma longa da
Vigília, podendo ser lida ad libitum
(à escolha) na forma breve.
Mais uma vez temos aqui uma antítese: na construção da torre
de Babel, pelo orgulho dos homens, as línguas se confundem e estes se
dispersam, enquanto no Pentecostes (At
2,1-11), pela humildade dos Apóstolos ao acolher o Espírito Santo, todos
compreendem a mesma língua e são unidos em um só povo, a Igreja.
Passando aos domingos
do Tempo Comum, quando as leituras do AT são escolhidas em “relação às
perícopes evangélicas” [10], temos outras duas ocorrências do nosso escrito:
- X Domingo do Tempo Comum
(Ano B): Gn 3,9-15 [11]. No
contexto da queda dos primeiros pais, Deus profetiza que a descendência da mulher
combaterá a serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher...” (v. 15). No Evangelho
(Mc 3,20-35), esta profecia se cumpre
com o ministério de Jesus contra a ação de Satanás. Maria, a “nova Eva”, é
elogiada indiretamente nesta perícope, como aquela que “faz a vontade de Deus”
(v. 35).
- XXVII Domingo do Tempo
Comum (Ano B): Gn 2,18-24 [12]. A
criação do homem e da mulher de acordo com o segundo relato da criação, enfatizando a sua relação: “O homem se unirá à
mulher e eles serão uma só carne” (v. 24). No Evangelho (Mc 10,2-16) Jesus cita este texto para
condenar o divórcio: “Já não são dois, mas
uma só carne” (v. 8).
O pecado de Adão e Eva (Tiziano) |
Na sequência, seguimos identificando as ocorrências de Gn 1–11 na Liturgia com as celebrações dos santos.
Na Solenidade da
Imaculada Conceição da Virgem Maria (08 de dezembro) a 1ª leitura é Gn 3,9-15.20 [13], que, como vimos
acima, anuncia a vitória da descendência de Eva sobre o mal. Este texto é
chamado na tradição cristã de “protoevangelho”, isto é, a “primeira
boa-nova”: após o pecado, a ação de Deus não é o castigo, mas o anúncio da
salvação, que se realizará com a vinda de Cristo, o novo Adão, filho de Maria,
a nova Eva.
A mesma perícope é indicada como 1ª opção de leitura (dentre
as duas propostas) na nova Memória de
Maria, Mãe da Igreja, instituída pelo Papa Francisco em 2018 e celebrada na
segunda-feira depois do Pentecostes [14].
Merece destaque aqui o v. 20, no qual Eva é indicada “mãe de todos os viventes”: se Eva é
nossa mãe segundo a natureza, Maria é nossa Mãe segundo a graça (cf. Jo
19,25-27). O texto aparece também dentre as várias opções de leituras à escolha
do Comum de Nossa Senhora [15].
Na Memória
facultativa de São José Operário (01 de maio) a 1ª opção de leitura (dentre
as duas propostas) é Gn 1,26–2,3 [16],
a conclusão do primeiro relato da criação, no qual Deus confia ao homem e à
mulher a sua obra, para que cuidem dela com o seu trabalho. Ao mesmo tempo,
afirma-se a importância do repouso, com a evocação do “sétimo dia”.
Ainda em relação às celebrações dos santos, vale recordar
que algumas tradições cristãs celebram alguns dos personagens de Gn 1–11
nas seguintes datas: Adão e Eva a 19 de dezembro; o justo Abel a
20 de março; e Noé a 29 de novembro. No Rito Romano, por sua vez, esses
personagens são recordados na Comemoração de Todos os Antepassados de Jesus, a
24 de dezembro.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto aos santos do Antigo Testamento.
A expulsão de Adão e Eva do jardim (Benjamin West) |
Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
presença dos capítulos 1 a 11 do Livro do
Gênesis nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na segunda parte concluiremos a análise da sua leitura em composição harmônica com as Missas
para diversas necessidades e votivas, os demais sacramentos, os sacramentais e
a Liturgia das Horas, além de contemplar sua leitura semicontínua.
Breve bibliografia
sobre Gênesis 1–11 usada para esta
postagem:
CLIFFORD, Richard J. Gênesis. in: BROWN,
Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 59-79.
LÓPEZ, Félix Gárcia. O
Livro do Gênesis: II. “História das Origens” (1,1–11,26). in: O
Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 64-80. Coleção: Introdução
ao Estudo da Bíblia, v. 3A.
TORRALBA, Juán. Guillén. Gênesis.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 31-68.
UEHLINGER,
Christoph. Gênesis 1–11. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel;
NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 144-167.
Confira também as Catequeses do Papa São João Paulo II sobre a criação e o pecado (1986) publicadas em nosso blog.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 97.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[4] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
As Missas votivas em honra do Senhor, da Virgem Maria ou dos
santos são celebradas em determinados dias para favorecer a devoção dos fiéis (cf.
Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, n. 375). Cada santuário
da Terra Santa, por sua vez, possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas
quais os peregrinos contemplam os eventos da história da salvação a ele
associados.
[5] LECIONÁRIO I.
[6] MISSAL ROMANO. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 176.
A outra antífona para a imposição das cinzas é: “Convertei-vos e crede no Evangelho”
(Mc 1,15).
[7] LECIONÁRIO I.
[8] MISSAL ROMANO, p. 280. A oração após a forma longa da
leitura recorda a mesma ideia: “(...) o sacrifício de Cristo, nossa Páscoa, na
plenitude dos tempos, ultrapassa em grandeza a criação do mundo, realizada no
princípio” (ibid., p. 79).
[9] LECIONÁRIO I,.
[10] ALDAZÁBAL, op. cit.,
p. 103.
[11] LECIONÁRIO I.
[12] ibid.
[13] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e
Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[14] cf. Decreto Ecllesiae Matris, Anexo. A outra opção
de leitura é At 1,12-14.
[15] LECIONÁRIO III.
[16] ibid. A outra opção de leitura é Cl
3,14-15.17.23-24.
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