“E Deus viu tudo
quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom” (Gn 1,31).
Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo sobre a presença dos capítulos 1–11 do Livro do Gênesis
(Gn) nas celebrações do
Rito Romano.
Após uma breve introdução a estes capítulos, que compõem a
“História das Origens”, começamos a analisar sua leitura litúrgica sob o
critério da composição harmônica, isto é, da sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica, como indica o Elenco das Leituras da Missa (ELM) em seu
número 66 [1].
Criação do sol e da lua (Michelangelo, Capela Sistina) |
Tendo considerado as celebrações do Ano Litúrgico e dos santos, nesta
postagem prosseguiremos a análise com as Missas para diversas necessidades e
votivas, os demais sacramentos, os sacramentais e a Liturgia das Horas (LH).
2. Leitura litúrgica
de Gênesis 1-11: Composição harmônica
a) Celebração
Eucarística
Iniciamos esta segunda parte do nosso estudo com as Missas para diversas necessidades,
formulários com várias opções de textos, nos quais há cinco leituras ad libitum (à escolha) do nosso livro:
- Missas pela pátria,
pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e
pelo progresso dos povos, com três opções de textos:
Gn 1,26–2,3: Deus
confia ao homem e à mulher o cuidado da sua obra (1º relato da criação);
Gn 2,4b-9.15: Deus
confia ao homem o cuidado do jardim do Éden (2º relato da criação);
Gn 4,3-10: o
primeiro fratricídio (Caim mata seu irmão Abel), diante do qual Deus adverte
que o sangue dos inocentes clama por justiça (v. 10) [2].
- Missa pela
santificação do trabalho:
são repropostas as primeiras duas leituras acima, sobre o cuidado da criação (Gn 1,26–2,3 e Gn 2,4b-9.15) [3];
Vale destacar que também a 1ª opção de antífona de entrada
dessa Missa é tomada do Livro do Gênesis: “No princípio criou Deus o céu
e a terra. E Deus criou à sua imagem. Viu Deus todas as coisas que fizera, e
eram muito boas” (Gn 1,1.27.31) [4].
- Missa em tempo de
guerra: aqui, por sua vez, é
sugerida a terceira perícope acima, Gn
4,3-10, advertindo contra a morte dos inocentes [5].
- Missa no início do
ano civil: a leitura
sugerida é Gn 1,14-18 [6], o relato
do “quarto dia”, com a criação do sol e da lua “para marcar as épocas, os dias e os anos” (v. 14).
- Missa para a
sementeira: aqui, por fim,
pode ser lido à escolha o relato do “terceiro dia” da criação, Gn 1,11-12 [7], quando Deus cria “plantas que trazem semente” e “árvores que dão fruto”.
Vitrais representando os seis dias da criação |
Passamos a seguir às Missas votivas, celebradas para favorecer a piedade dos fiéis, nas quais nosso livro aparece em algumas celebrações em honra da Virgem Maria:
Primeiramente na Missa votiva de Maria, Mãe da Igreja a 1ª opção de leitura é Gn 3,9-15.20 [8], a mesma da respectiva Memória, como vimos na postagem anterior. O texto proclama Eva “mãe de todos os viventes” segundo a natureza, enquanto Maria é nossa Mãe segundo a graça.
Na Coletânea de Missas de Nossa Senhora a mesma perícope aparece como leitura própria da Missa de Maria, imagem e Mãe da Igreja I, a ser celebrada no Tempo Comum [9].
Na Missa de Maria, auxílio dos cristãos, também para o Tempo Comum, a 2ª opção de leitura é Gn 3,1-6.13-15 [10], que recorda a tentação de Eva pela serpente. Onde Eva caiu, Maria venceu: por isso, com esta leitura a Igreja nos exorta a invocar sua intercessão na luta contra o mal.
Ainda em relação à Coletânea, vale destacar a antífona de aclamação ao Evangelho da Missa de Maria, Mãe da reconciliação, para a Quaresma, relacionando a cruz de Cristo com o arco-íris, sinal da aliança após o dilúvio: “A cruz de Jesus Cristo é o sinal da aliança estabelecida entre mim e toda a carne sobre a terra” (cf. Gn 9,17) [11].
b) Sacramentos e sacramentais
Além da Eucaristia, encontramos textos ad libitum de Gn 1–11 em outros dois sacramentos: a Reconciliação e o Matrimônio.
Para a celebração da Reconciliação são propostas duas perícopes sobre a realidade do pecado:
- Gn 3,1-19: Adão e Eva, que, tentados pela serpente, querem “tornar-se como Deus” (v. 5);
- Gn 4,1-15: Caim que assassina seu irmão Abel [12].
Caim mata seu irmão Abel (Peter Paul Rubens) |
Na celebração do Matrimônio, por sua vez, encontramos outros dois textos:
- Gn 1,26-28.31a: o primeiro relato da criação do homem e da mulher, enfatizando sua relação com Deus: são criados “à sua imagem”, Ele os abençoa e exorta: “Sede fecundos e multiplicai-vos” (v. 28);
- Gn 2,18-24: o segundo relato da criação, centrado na relação entre homem e mulher: “o homem se unirá à mulher e eles serão uma só carne” (v. 24) [13].
Esta última leitura pode ser proferida também na Missa votiva do início dos milagres de Jesus (De commemoratione initii signorum Domini), a ser celebrada pelos peregrinos que visitam o respectivo Santuário em Caná, uma vez que nesta “Missa votiva do lugar” os textos são adaptados do Ritual do Matrimônio [14].
Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
Dos sacramentos passamos aos sacramentais, com textos de Gn 1–11 presentes em cinco formulários de bênçãos dentre as leituras à escolha:
- Bênção de escritório, fábrica ou comércio: Gn 1,27-31a [15]. Aqui lemos como Deus confia ao homem o cuidado da criação para que a desenvolva com seu trabalho.
- Bênção de instrumentos técnicos: Gn 1,1-5a.14-18 [16]. Os relatos do “primeiro” e do “quarto” dia da criação, quando Deus cria a luz, o sol e a lua. Texto indicado, por exemplo, para a bênção de uma central de energia.
O dilúvio (Duomo di Monreale, Itália) |
- Bênção de animais: Para essa bênção são sugeridos três textos:
Gn 1,1.20-29: o relato do “quinto” e do “sexto” dia, quando Deus cria os peixes, as aves e os demais animais, confiando-os aos cuidados do homem e da mulher;
Gn 2,19-20a: trecho do segundo relato da criação, quando Deus cria Adão e em seguida todos os animais, os quais são nomeados pelo homem. Na forma breve da bênção pode ler-se apenas o v. 20a: “E o homem deu nome a todos os animais...”;
Gn 6,17-23: o anúncio do dilúvio, quando Deus instrui Noé a acolher um casal de cada espécie animal na arca, “para os conservares em vida contigo” (v. 19) [17].
- Bênção de plantações, campos e pastagens: Gn 1,1.11-12.29-31 [18], o relato do “terceiro dia”, quando Deus cria a vegetação (vv. 11-12), unido à entrega das plantas como alimento ao homem e à mulher (vv. 29-31).
- Bênção de alimentos
por devoção: Aqui, por fim,
sugerem-se dois textos:
Gn 1,27-31a: a
entrega das plantas como alimento ao homem e à mulher, como acima;
Gn 9,1-3: a
aliança de Deus com Noé e a humanidade após o dilúvio, concedendo-lhes também
os animais como alimento [19].
c) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas do Rito Romano há apenas uma leitura de Gn 1–11 em composição harmônica: no Ofício das Leituras da Festa da Natividade de Maria (08 de setembro). Aqui lemos Gn 3,9-20 [20], uma versão ligeiramente mais longa da leitura proferia na Missa da Solenidade da Imaculada Conceição - celebrada, naturalmente, nove meses antes -, como vimos na postagem anterior.
O texto, conhecido como “protoevangelho” (a primeira boa-nova), proclama a vitória da descendência da mulher sobre o mal - “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela” (v. 15) -, interpretado como uma profecia sobre Maria, “nova Eva”, e Cristo, “novo Adão”.
3. Leitura litúrgica de Gênesis 1-11: Leitura semicontínua
Concluído nosso percurso pelas leituras em composição harmônica dos capítulos 1 a 11 do Livro do Gênesis, passamos ao critério da leitura semicontínua: a proclamação dos principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus (cf. ELM, n. 66) [21].
a) Celebração Eucarística
Na Celebração Eucarística, a “História das Origens” situa-se nos dias de semana do Tempo Comum, quando se leem de maneira semicontínua livros do Antigo e do Novo Testamento, “várias semanas cada um, conforme sua extensão” (ELM, n. 109) [22].
Assim, os principais textos dos capítulos 1 a 11 do Gênesis são lidos na Missa por quase duas semanas: da V à VI semanas do Tempo Comum no ano ímpar, entre a Carta aos Hebreus e o Eclesiástico. Aqui a primeira parte do nosso livro é lida quase integralmente, sendo omitidas sobretudo as genealogias dos capítulos 5 e 10–11.
V semana do Tempo Comum (ano ímpar):
Segunda-feira: Gn 1,1-19;
Terça-feira: Gn 1,20–2,4a;
Quarta-feira: Gn 2,4b-9.15-17;
Quinta-feira: Gn 2,18-25;
Sexta-feira: Gn 3,1-8;
Sábado: Gn 3,9-24.
VI semana do Tempo Comum (ano ímpar):
Segunda-feira: Gn 4,1-15.25;
Terça-feira: Gn 6,5-8; 7,1-5.10;
Quarta-feira: Gn 8,6-13.20-22;
Quinta-feira: Gn 9,1-13;
Sexta-feira: Gn 11,1-9 [23].
No sábado da VI semana lê-se um epílogo tomado da Carta aos Hebreus: Hb 11,1-7, um trecho do “elogio dos antepassados” pela sua fé, no qual mencionam-se Abel, Henoc e Noé.
b) Liturgia das Horas
Na LH as leituras longas da Sagrada Escritura são proferidas
no Ofício das Leituras: no ciclo anual desse Ofício não se lê o Livro do
Gênesis. Porém, no ciclo bienal do Ofício (que não foi
traduzido para o Brasil), nosso livro é lido de maneira semicontínua por cinco
semanas, da I à V semanas do Tempo Comum nos anos pares.
A “História das Origens” é lida por oito dias, da segunda-feira da I semana à segunda-feira
da II semana do Tempo Comum no ano par, seguida pela “História
dos Patriarcas” (Gn 12–50). As perícopes selecionadas aqui são:
Ofício das Leituras
da I semana do Tempo Comum (Ciclo bienal - ano par):
Segunda-feira: Gn
1,1–2,4a: A criação do céu e da terra;
Terça-feira: Gn
2,4b-25: A criação do homem no paraíso;
Quarta-feira: Gn
3,1-24: O primeiro pecado;
Quinta-feira: Gn
4,1-24: Consequências do pecado;
Sexta-feira: Gn
6,5-22; 7,17-24: Castigo de Deus com o
dilúvio;
Sábado: Gn 8,1-22:
Final do dilúvio.
Ofício das Leituras
da II semana do Tempo Comum (Ciclo bienal - ano par):
Domingo: Gn
9,1-17: O pacto de Deus com Noé e sua
descendência;
Segunda-feira: Gn
11,1-26: A dispersão do gênero humano
[24].
A 2ª leitura do Oficio, geralmente dos textos dos Padres da
Igreja, na I semana está em composição harmônica com as leituras do Gênesis.
A partir do II Domingo do Tempo Comum, por sua vez, começa a leitura
semicontínua da Carta de São Clemente de
Roma aos Coríntios, que se estende até a V semana.
Torre de Babel (Pieter Brueghel, o Velho) |
Concluímos assim o nosso estudo sobre a presença dos
capítulos 1 a 11 do Livro do Gênesis
nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima postagem desta série continuaremos analisando este livro com os capítulos 12 a 50: a “História dos
Patriarcas”.
Notas:
[1] cf. ALDAZÁBAL,
José. A Mesa da Palavra I: Elenco das
Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO
III: Para as Missas dos Santos,
dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1997.
[3] ibid.
[4] MISSAL ROMANO. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 915.
A 2ª opção de antífona é Sl 89,17.
[5] LECIONÁRIO III.
[6] ibid.
[7] ibid.
[8] ibid. A outra opção de leitura é At 1,12-14.
[9] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 106.
[10] ibid., p.
176. A outra opção de leitura é Ap
12,1-3.7-12ab.17.
[11] ibid., p. 64.
[12] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus: 1999, pp. 80.82.
[13] RITUAL DO MATRIMÔNIO. Tradução portuguesa para o Brasil da 2ª edição típica. São Paulo:
Paulus, 2007, pp. 73-74.
[14] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
Cada santuário da Terra Santa possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos da história da salvação a ele associados. As leituras propostas para a Missa em Caná são: Gn 2,18-24 com o Sl 127,1-5 (R: v. 1) ou Is 54,5-10 com o Sl 29,2.4-6.11-13 (R: v. 2); Ef 5,2a.21-33; Jo 2,1-11.
[15] RITUAL DE
BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 221.
[16] ibid., p. 250.
[17] ibid., pp. 264-265.268.
[18] ibid., p. 272.
[19] ibid., p.
422.
[20] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, p. 1249.
[21] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[22] ibid., p. 105.
[23] LECIONÁRIO
II: Semanal. Tradução portuguesa
da 2ª edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1995.
[24] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
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