“Dai ao Rei vossos poderes, Senhor Deus, vossa justiça ao descendente da realeza!” (Sl 71,1).
No dia 06 de maio de 2023 tem lugar na Abadia de
Westminster em Londres a cerimônia de coroação do Rei Charles III, monarca
do Reino Unido, nação formada por quatro países constituintes -
Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte - e outros 14 reinos ao
redor do mundo.
Insígnias reais |
Esta é certamente de uma ocasião histórica: a última
coroação teve lugar a 70 anos, no dia 02 de junho de 1953, quando foi coroada a
Rainha Elizabeth II (†2022). Além disso, o Reino Unido é a única monarquia cristã
que conserva um rito de coroação, inserido dentro de um “serviço” (service)
da Igreja Anglicana (Church of England) [1].
Embora se trate de um culto protestante - a Igreja Anglicana
rompeu a comunhão com a Igreja Católica em 1534 -, o rito conserva os elementos
essenciais presentes no Liber Regalis (The King’s Book), do
século XIV.
Antigas edições do Pontificale Romanum, com efeito,
traziam um Ordo de Benedictione et Coronatione Regis (Ritual da Bênção e
Coroação do Rei), o qual é um sacramental de caráter consecratório
(como, por exemplo, a bênção de abade ou a profissão religiosa).
Abadia de Westminster, sede tradicional das coroações |
A seguir apresentamos brevemente a Liturgia do Rito de
Coroação do Rei Charles III (Liturgy for the Coronation Rite of His Majesty
King Charles III), publicada pelo Arcebispo de Canterbury, Justin Welby, o
qual, como Primaz da Comunhão Anglicana, presidirá a cerimônia [2].
O rito possui várias reminiscências bíblicas, professando a
fé na realeza divina e recordando a unção dos reis, sacerdotes e profetas no
Antigo Testamento, como Davi e Salomão. Além disso, praticamente todos os cantos
estão inspirados nos Salmos, como veremos a seguir.
1. Ritos iniciais e Liturgia da Palavra
Antes do início da cerimônia têm lugar a entrada dos representantes
de outras religiões, dos representantes das Igrejas cristãs - alguns dos quais,
como veremos, terão um papel ativo em partes do rito - e das bandeiras dos reinos
da Comunidade de Nações (Commonwealth) [3].
A procissão de entrada propriamente dita - da qual
tomarão parte o Rei e a Rainha consorte, Camilla - será precedida pela “Cruz
de Gales” (Cross of Wales), uma cruz processional confeccionada recentemente
no respectivo país, a qual contém dois fragmentos da Santa Cruz doados
pelo Papa Francisco.
“Cruz de Gales” com as relíquias da Santa Cruz |
Nesta procissão - acompanhada pelo canto do hino “I was
glad”, uma adaptação do Salmo 121 feita por Hubert Parry (†1918), com a aclamação em latim “Vivat Rex!” - serão
conduzidos também alguns estandartes e insígnias reais.
Diante do altar, o Rei será acolhido por uma das crianças
do coro. Trata-se de uma novidade inserida no ritual da coroação, acompanhada
por um pequeno diálogo de inspiração bíblica:
Criança: “Majestade, como filhos do Reino de Deus, lhe damos
as boas-vindas em nome do Rei dos Reis”.
Charles III: “Em seu nome, e seguindo seu exemplo, venho não
para ser servido, mas para servir”.
Após um momento de oração silenciosa, o Arcebispo” de
Canterbury dá início à cerimônia com a saudação inicial (“A graça de
nosso Senhor Jesus Cristo...”) e uma monição que exprime o significado da
celebração. O coro entoa então o Kyrie eleison em
gaélico (welsh), composto para a ocasião por Paul Mealor.
Após o Kyrie tem lugar a primeira parte do rito da
coroação propriamente dito: o reconhecimento (Recognition) e o
juramento (Oath). O Arcebispo de Canterbury, seguido por três representantes
da nação, voltados para cada um dos pontos cardeais, apresentam o Rei ao povo, que
o aclama.
Arcebispo de Canterbury, Justin Welby, que presidirá a cerimônia |
Na sequência tem lugar a apresentação da Bíblia ao
Rei, feita pelo Moderador da Igreja da Escócia (igreja presbiteriana fundada em
1560), Iain Greenshields. A fórmula da apresentação conclui: “Aqui está a
Sabedoria. Esta é a Lei real. Estes são os Oráculos vivos de Deus”.
Com a mão na Bíblia, o Rei profere então seu juramento
como soberano e protetor da Igreja Anglicana, respondendo às perguntas que lhe
são feitas pelo Arcebispo. Enquanto o Rei assina o juramento, o coro entoa o
hino “Prevent us, o Lord”, de William Byrd (†1623).
Após o hino, segue-se outra novidade: o Rei recitará uma oração
composta por ele mesmo para a ocasião:
“Deus de compaixão e misericórdia, cujo Filho não foi
enviado para ser servido, mas para servir, dá-me graça para que eu possa
encontrar em teu serviço a perfeita liberdade e nessa liberdade o conhecimento
da tua verdade. Concede que eu seja uma bênção para todos os teus filhos, de
toda fé e convicção, para que juntos possamos descobrir os caminhos da gentileza
e ser conduzidos pelos caminhos da paz. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém”.
A cerimônia prossegue então com o Glória - da “Missa
a quatro vozes” (Mass for Four Voices) de William Byrd, entoado em
latim - e a coleta (oração do dia) recitada pelo Arcebispo.
Têm lugar então a Liturgia da Palavra: a leitura (Cl
1,9-17); o Aleluia (unido aos vv. 1-2 do Sl 46) e o Evangelho (Lc
4,16-21). Segue-se novamente o Aleluia (com os vv. 7-8 do Sl 46) e a homilia
ou sermão (sermon) do Arcebispo.
2. Rito da Coroação
Após a homilia tem início a segunda parte dos ritos da
coroação com o hino “Veni Creator Spiritus” (Come, Holy Ghost, our souls inspire), que será entoado nas
línguas tradicionais dos quatro países constituintes do Reino Unido: inglês,
galês (welsh), gaélico escocês (scots gaelic) e gaélico irlandês
(irish gaelic).
Segue-se o momento mais sagrado do rito: a unção (anointing).
O recipiente com óleo é apresentado pelo Arcebispo anglicano de Jerusalém, Hosam
Naoum. O óleo, com efeito, foi elaborado com azeitonas do Monte das Oliveiras e
abençoado pelo Patriarca Greco-Ortodoxo de Jerusalém, Theophilos III.
Primeiramente o Arcebispo de Canterbury recita uma oração de
ação de graças sobre o óleo. Em seguida o Rei se dirige à Cadeira de Coroação (Coronation Chair),
cujo uso remonta ao Rei Eduardo I (†1307). Sob a Cadeira é colocada a Pedra de
Scone (Stone of Scone), associada à coroação dos Reis da Escócia.
Neste momento é colocado um dossel (screen)
diante da Cadeira. A unção propriamente dita, com efeito, não é visível à assembleia:
considera-se um momento de intimidade entre o Rei e Deus. O dossel elaborado
para a ocasião representa uma árvore com 56 folhas em destaque, símbolo dos 56
países membros da Commonwealth.
Dossel preparado para a coroação |
Auxiliado pelo Decano (Dean) da Abadia de Westminster, David Hoyle, o Arcebispo de Canterbury unge o Rei nas mãos, na testa e sobre o coração, enquanto o coro entoa a célebre antífona “Zadok the Priest” de Georg Friedrich Händel (†1759), inspirada em 1Rs 1,34.45:
“Zadok the priest and Nathan the prophet anointed Solomon king.
And all the people rejoiced and said:
God save the King! Long live the King! God save the King!
May the King live for ever. Amen. Hallelujah!”.
Após a unção, o rito prossegue com a investidura (Investiture),
isto é, a entrega das insígnias reais (Regalia), e a coroação (Crowning)
propriamente dita.
Primeiramente o Rei endossa três vestes cerimoniais: o colobium
sindonis, uma túnica de linho branco, símbolo de pureza e simplicidade; a supertunica,
associada a um manto sacerdotal, indicando a eleição do Rei por parte de Deus;
e o cinto (girdle), símbolo da prontidão para o serviço.
Durante a entrega das insígnias é entoada a primeira parte do Salmo
71 (vv. 1-8) em grego, homenageando as origens gregas do Príncipe Philip,
Duque de Edimburgo (†2021), pai do Rei Charles.
As demais insígnias são conduzidas ao Rei por alguns Pares
do Reino (Pears or Realm) e Bispos da Igreja Anglicana, auxiliados pelo
Decano da Abadia:
- Esporas (Spurs): símbolo de honra e coragem.
- Espada (Sword): abençoada pelo Arcebispo e
entregue ao Rei como exortação à justiça e à proteção dos indefesos.
- Braceletes de metal (Armills): símbolos da
sinceridade e da sabedoria.
- Estola (Stole) e Manto (Robe):
assim como a supertunica, estão associados a vestes sacerdotais. O
manto, além disso, é ornado com as flores nacionais dos países constituintes do
Reino Unido: a rosa da Inglaterra, o cardo da Escócia, o narciso de Gales e o
trevo da Irlanda do Norte.
- Orbe (Orb): encimado pela cruz, simboliza o primado
do Reino de Deus sobre o mundo.
- Anel (Ring): símbolo da aliança nupcial entre
Deus e o Rei e entre este e seu povo.
- Luva (Glove): uma exortação ao Rei a exercer
a autoridade com gentileza.
- Cetro e Bastão (Sceptre and Rod): o cetro
encimado por uma cruz simboliza o poder temporal do soberano, e o bastão,
encimado por uma pomba, seu poder espiritual.
Por fim, tem lugar a coroação (Crowning). O
Arcebispo abençoa a Coroa de Santo Eduardo (St Edward’s Crown) -
réplica realizada em 1661 da coroa que teria sido usada pelo Rei Eduardo, o
Confessor (†1066) - e a deposita sobre a cabeça do monarca, quando então todos
aclamam: “God save the King!” (“Deus salve o rei”).
Neste momento a orquestra entoa uma fanfarra, os sinos da
Abadia começam a soar e, na parte externa, tem lugar uma salva de tiros.
Em seguida o Arcebispo de Canterbury tradicionalmente invoca
a bênção de Deus sobre o Rei (Blessing). Nesta ocasião, por sua
vez, a bênção terá um alcance ecumênico, com trechos recitados pelo
Arcebispo de Westminster, Cardeal Vincent Gerard Nichols, pelo Arcebispo
Greco-Ortodoxo da Grã-Bretanha, Nikitas Loulias, e por representantes das
comunidades protestantes.
Segue-se o hino “O Lord, grant the king”, de Thomas
Weelkes (†1623), uma adaptação dos vv. 7-9 do Salmo 60.
O rito prossegue com a entronização
do Rei (Enthroning): este deixa a Cadeira de Coroação e é convidado pelo
Arcebispo a sentar-se no trono, exortando o soberano à fortaleza: “Stand
firm...” (“Permaneça firme...”).
Cadeira de Coroação (Cadeira do Rei Eduardo) |
Neste momento tem lugar a homenagem e o juramento
de fidelidade dos súditos. Para não prolongar excessivamente a cerimônia,
prestam homenagem individualmente apenas o Arcebispo de Canterbury e o Príncipe
William, Príncipe de Gales, filho mais velho e herdeiro do Rei Charles.
O Arcebispo convida então “todas as pessoas de boa vontade”
do Reino Unido e dos outros reinos a prestar sua homenagem ao Rei. Esta homenagem
do povo (Homage of the People) é outras das novidades introduzidas nesta
coroação.
Esta parte do rito conclui com o canto da antífona “Confortare” (“Be strong...”),
de Henry Walford Davies (†1941), cujo texto é inspirado nos últimos conselhos
do rei Davi ao seu filho Salomão (cf. 1Rs 2,2-3).
Por fim, tem lugar a coroação da Rainha consorte,
Camilla, que é ungida com óleo na testa e recebe o anel, a coroa e o cetro. Em
seguida esta toma assento junto ao Rei, enquanto se entoa o hino “Make a
joyful noise”, uma adaptação do Salmo 97 composta para a ocasião por Andrew Lloyd
Webber.
3. Rito da Comunhão e ritos finais
A partir deste momento prossegue o “serviço” (service)
com o rito do ofertório, acompanhado pelo hino “Christ is made the
sure foundation”, com letra de John Mason Neale (†1866) e música de Henry
Purcell (†1695).
Os dons do pão e do vinho são apresentados ao Rei antes de
serem conduzidos ao altar, indicando sua participação na oferta dos “frutos da
terra e do trabalho humano” ao Senhor. O Arcebispo de Canterbury conclui o rito
com a oração sobre as oferendas.
Segue-se a “Oração Eucarística” (Eucharistic Prayer),
segundo o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana (Book of Common Prayer).
Cabe frisar que, como católicos, não reconhecemos o sacerdócio da Igreja da
Inglaterra como válido, uma vez que durante o cisma do século XVI foi rompida a
também a Sucessão Apostólica. Por conseguinte, a Eucaristia também não é
válida.
O rito prossegue com o “Pai nosso” (Our Father)
e o canto do Agnus Dei (Cordeiro de Deus) em inglês, durante o
qual o Rei e a Rainha recebem a Comunhão. Esta parte do rito se conclui
com a oração após a Comunhão e a bênção, recitadas pelo Arcebispo.
Altar da Abadia de Westminster com o mosaico da Última Ceia |
Após a bênção, o coro entoa dois hinos: “Praise,
my soul, the King of heaven”, de Henry Francis Lyte (†1847), baseado no Salmo
102; e “The King shall rejoice”, de William Boyce (†1779), a partir do
Salmo 20.
Segue-se o canto do hino Te Deum em inglês (We
praise thee, O God), com música de William Walton (†1983) composta para a coroação da Rainha Elizabeth II.
Neste momento, o
Rei se dirige à Capela de Santo Eduardo, atrás do altar-mor da Abadia, onde depõe
as vestes cerimoniais e endossa o Robe de Estado (Robe of Estate) e a Coroa
Imperial do Estado (Imperial State Crown).
Quando o Rei retorna à Abadia entoa-se o hino nacional
do Reino Unido, o célebre “God save the King”. Segue-se a procissão
de saída, após a qual o Rei saúda os representantes das outras religiões e as
autoridades civis dos reinos da Commonwealth.
“Dai ao Rei vossos poderes, Senhor Deus, vossa justiça ao
descendente da realeza!
Com justiça ele governe o vosso povo, com equidade ele
julgue os vossos pobres”
(Sl 71,1-2).
Notas:
[1] O termo “serviço” remete aqui à origem da palavra “Liturgia”,
“serviço em favor do povo” (leiton ergon).
[2] Durante o cisma ocorrido no século XVI, a Igreja da
Inglaterra rompeu também a Sucessão Apostólica, de modo que, como católicos, não
reconhecemos seu sacerdócio como válido.
[3] Além do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte,
Charles III é Rei de outros 14 países: Antígua e Barbuda, Austrália, Bahamas, Belize,
Canadá, Granada, Ilhas Salomão, Jamaica, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné, Santa
Lúcia, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Tuvalu.
Fonte:
The
Authorised Liturgy for the Coronation Rite of His Majesty King Charles III. Disponível em: Church of England.
Brasão do Reino Unido |
Emblema da coroação, com as flores dos quatro países do Reino Unido |
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