quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Leitura litúrgica do Livro de Sofonias

“Alegra-te e exulta de todo coração, cidade de Jerusalém! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti” (Sf 3,14.17).

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, já analisamos os escritos dos três “profetas menores” do século VIII a. C.: Amós e Oseias no Reino do Norte (Israel) e Miqueias no Reino do Sul (Judá).

Nas próximas postagens daremos continuidade a esta proposta com os três profetas que atuaram durante o século VII a. C.: Sofonias, Naum e Habacuc, começando pelo Livro de Sofonias (Sf).

1. Breve introdução ao Livro de Sofonias

Já no seu primeiro versículo a obra apresenta a “genealogia” de Sofonias (do hebraico Zefaniah, que significa “Deus escondeu”, no sentido de “Deus protege”) e nos situa no reinado de Josias (640 a 609 a. C.). A maioria dos estudiosos precisa a atuação do nosso profeta no início desse reinado, uma vez que não menciona as reformas religiosas do rei Josias (entre 628-622 a. C.).

Ícone do Profeta Sofonias (séc. XVII)

O breve livro, de apenas três capítulos, pode ser dividido em três partes:
a) Sf 1,2–2,3: oráculos de julgamento contra o reino de Judá;
b) Sf 2,4–3,8: oráculos contra as nações;
c) Sf 3,9-20: oráculos de salvação.

A primeira parte está centrada no “dia de Iahweh”. Na época, esse “dia” não era considerado como o “final dos tempos”, mas sim como uma intervenção do Senhor que alteraria a ordem das coisas, recompensando Judá e punindo seus inimigos.

Sofonias, porém, afirma que este será um “dia de ira” também para Judá, por suas infidelidades: culto aos ídolos, orgulho, violência, fraude... A expressão de Sf 1,15 tornou-se o primeiro verso da sequência de mesmo nome: “Dies irae, dies illa” (Dia de ira, aquele dia), entoada tradicionalmente nas Missas dos defuntos (e atualmente como hino na última semana do Ano Litúrgico).

A conclusão da primeira parte é, pois, um apelo à conversão: “Procurai a justiça, procurai a pobreza: talvez sejais protegidos no dia da ira de Iahweh” (Sf 2,3).

Na segunda parte temos quatro breves oráculos contra as nações (Sf 2,4-15). Estes oráculos estão distribuídos:
- no espaço, mencionando os povos seguindo os quatro pontos cardeais: filisteus (oeste), Moab e Amon (leste), Etiópia (sul) e Assíria (norte);
- e no tempo: à aurora Deus julga (Sf 3,5), ao meio-dia vem a destruição (Sf 2,4), à tarde o resto que permanecer fiel repousará (Sf 2,7).

Concluindo a segunda parte, há um novo oráculo contra Judá (Sf 3,1-8), particularmente contra a cidade de Jerusalém e seus dirigentes: príncipes, juízes, profetas e sacerdotes.

A terceira parte, por fim, começa anunciando a conversão dos povos (Sf 3,9-10), que alguns estudiosos consideram um acréscimo feito após o exílio da Babilônia (séc. VI a. C.). A seguir o profeta anuncia que, após o “dia da ira”, permanecerá “um povo pobre e humilde” (v. 12): o “resto de Israel” (v. 13).

Concluem a obra dois “cânticos”: Sf 3,14-18a e Sf 3,18b-20 (embora este último também seja considerado um acréscimo posterior). Ambos anunciam que o próprio Deus reinará sobre seu povo: “O rei de Israel é o Senhor, Ele está no meio de ti” (vv. 15.17); “Eu vos conduzirei” (v. 20).

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

Profeta Sofonias (James Tissot)

2. Leitura litúrgica do Livro de Sofonias: Composição harmônica

Como temos feito com todos os livros estudados nesta série, analisaremos a presença da profecia de Sofonias nas celebrações litúrgicas segundo os dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: composição harmônica e leitura semicontínua [1].

Começamos com o primeiro critério: a composição harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Apesar da sua brevidade, nosso livro aparece com relativo destaque no Tempo do Advento, sendo proclamado em três ocasiões. A própria comemoração de Sofonias, como de vários outros profetas, tem lugar nesse tempo, no dia 03 de dezembro.

- no III Domingo do Advento do ano C: Sf 3,14-18a [2]. Nos domingos desse tempo “as leituras do Antigo Testamento (AT) são profecias sobre o Messias e o tempo messiânico” [3]. Por isso, neste III Domingo, conhecido como “Gaudete” (“Domingo da Alegria”), proclama-se a alegria pela salvação, isto é, pela vinda do Messias: “O rei de Israel é o Senhor, Ele está no meio de ti” (vv. 15.17).

- na terça-feira da III semana do Advento: Sf 3,1-2.9-13 [4]. Interrompendo a leitura semicontínua do Livro de Isaías, o texto de Sofonias anuncia a salvação aos humildes e pobres: “Deixarei entre vós um punhado de homens humildes e pobres. E no nome do Senhor porá sua esperança o resto de Israel” (v. 12). No Evangelho do dia (Mt 21,28-32) Jesus inclui nesse “resto” também “os publicanos e as prostitutas”, porque ouviram a pregação de João Batista e se arrependeram dos seus pecados.

- no dia 21 de dezembro (2ª opção): Sf 3,14-18a [5]. De 17 a 24 de dezembro leem-se os Evangelhos que preparam o nascimento do Senhor, enquanto as leituras do AT foram selecionadas “levando em consideração o Evangelho do dia” [6]. O Evangelho do dia 21 é a visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-45); por isso retoma-se a leitura do III Domingo: o convite à alegria pela presença do Senhor.

Nos demais tempos do Ano Litúrgico temos apenas uma leitura de Sf em composição harmônica, especificamente no IV Domingo do Tempo Comum do ano A: Sf 2,3; 3,12-13 [7]. Como aqui as leituras do AT são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [8], a exortação “praticai a justiça, procurai a humildade” (v. 3), unida à promessa de salvação aos “humildes e pobres” (v. 12), está em perfeita sintonia com o anúncio evangélico das bem-aventuranças (Mt 5,1-12a): “Bem-aventurados os pobres em espírito... Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça...”.

Vale destacar que os peregrinos que visitam o Santuário do Sermão da Montanha na Terra Santa podem celebrar a “Missa votiva do ensino das bem-aventuranças” (De Domino, docente Beatitudines), com as mesmas opções de leituras do IV Domingo, incluindo Sf 2,3; 3,12-13 e Mt 5,1-12a [9].

Visitação de Maria a Isabel (Jean Jouvenet)

Passando às celebrações dos santos, nosso livro aparece primeiramente como 1ª opção de leitura para a Festa da Visitação de Nossa Senhora, no dia 31 de maio. A perícope indicada aqui é Sf 3,14-18 [10], como no dia 21 de dezembro: o convite à alegria pela presença do Senhor. O Evangelho dessa Festa, porém, inclui também o cântico da Virgem Maria, o Magnificat (Lc 1,46-56).

O mesmo texto de Sf 3,14-18 é previsto ainda para a Missa da Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria, indicada na Coletânea de Missas de Nossa Senhora como Missa votiva mariana para o Advento [11].

Uma vez mencionada a Coletânea, cumpre indicar aqui a Missa de Maria, Mãe da unidade, para o Tempo Comum, cuja 1ª opção de leitura é Sf 3,14-20 [12]. Aqui Deus toma a palavra prometendo a unidade ao “resto de Israel”: “Quando vos trouxer para mim, no tempo em que Eu vos reunirei... então Eu farei que todas as nações reconheçam vosso nome” (v. 20).

Ainda em relação às celebrações dos santos, identificamos uma leitura de Sofonias no Comum dos Santos, formulário com várias opções de textos ad libitum (à escolha). A perícope indicada aqui é Sf 2,3; 3,12-13 [13], como no IV Domingo do Tempo Comum, definindo a santidade como “praticar a justiça e procurar a humildade” (cf. Sf 2,3).

Por fim, encontramos novamente dois textos do nosso livro dentre as opções de leituras para as Missas para diversas necessidades:

- na Missa pela santa Igreja e na Missa em ação de graças: Sf 3,14-15 [14], o convite à alegria pela presença do Senhor, como vimos acima;

- na Missa pela unidade dos cristãos: Sf 3,16-20 [15], a promessa da “reunião” do “pequeno resto de Israel”, como na Missa de Maria, Mãe da unidade.

b) Liturgia das Horas

Após a Celebração Eucarística seguimos nosso percurso com a Liturgia das Horas, na qual identificamos uma leitura breve da profecia de Sofonias em duas ocasiões:

- na Hora Média (9h) da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro): Sf 3,14.15b [16], uma versão mais breve da perícope recorrente nas celebrações marianas, com o convite à alegria pela presença do Senhor;

- na Hora Média (9h) do Comum de Nossa Senhora, para as celebrações marianas sem leituras próprias, lê-se o mesmo texto acima: Sf 3,14.15b  [17].

3. Leitura litúrgica do Livro de Sofonias: Leitura semicontínua

Concluído o percurso pelas leituras em composição harmônica, seguimos com o critério da leitura semicontínua: a proclamação dos principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada Escritura [18].

Juízo final com trechos do Dies irae
(Aldo Locatell - iIgreja de São Pelegrino, Caxias do Sul)

Na Celebração Eucarística, como indica o n. 110 do Elenco das Leituras da Missa, foram omitidos “alguns livros proféticos muito breves”, incluindo Sofonias [19].

Assim, a leitura semicontínua do nosso profeta tem lugar na Liturgia das Horas, especificamente no Ofício das Leituras do domingo e da segunda-feira da XXI semana do Tempo Comum, entre a leitura de Isaías (capítulos 1–39) e de Jeremias.

As duas perícopes, tomadas do início e do final do nosso livro, trazem o anúncio do “dia da ira” e a promessa da restauração:
DomingoSf 1,1-7.14–2,3 - “O julgamento de Deus”;
Segunda-feiraSf 3,8-20 - “Deus promete a salvação aos pobres de Israel” [20].

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, o qual infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil, as mesmas leituras do nosso profeta são proferidas no sábado da XXVII semana e no XXVIII domingo do Tempo Comum no ano ímpar, igualmente entre Isaías (capítulos 1–39) e de Jeremias [21].

4. Leitura litúrgica do Livro de Sofonias: Cântico

Por fim, cabe mencionar ainda um texto da profecia de Sofonias proclamado na Liturgia das Horas em forma de cântico. Curiosamente, não se trata dos dois “cânticos” de Sf 3,14-20, mas sim do texto anterior: Sf 3,8-13, o início dos oráculos de salvação.

Este cântico, porém, não aparece no ciclo ordinário da Liturgia das Horas, mas sim nas Vigílias, rezadas de modo facultativo junto ao Ofício das Leituras dos domingos e solenidades.

O nosso texto é o III cântico das Vigílias no Tempo Pascal [22]. Sua escolha justifica-se pelo versículo 8a: “Esperai-me, esperai-me, palavra do Senhor, no dia em que eu me levantar para dar meu testemunho”.

Na tradução para o latim feita por São Jerônimo, a Vulgata, este “levantar-se” foi interpretado como uma “ressurreição”: “Expecta me, dicit Dominus, in die resurrectionis meae” (Esperai-me, diz o Senhor, no dia da minha ressurreição).

Os três "profetas menores" do séc. VII a. C.: Naum, Habacuc e Sofonias
(Igreja de Todos os Santos, Hove, Inglaterra)

Encerramos assim nosso breve percurso pelas celebrações nas quais a Igreja nos propõe a leitura do Livro de Sofonias. Na próxima postagem dessa série completaremos o grupo dos profetas do século VII a. C. com a análise dos Livros de Naum e Habacuc.

Breve bibliografia sobre o Livro de Sofonias usada para esta postagem:

ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Sofonias e a sua obra. in: Os livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 187-190. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 4.

MACCHI, Jean-Daniel. Sofonias. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 540-545.

RIVAS, Pedro Jaramillo. Sofonias. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 365-369.

WAHL, Thomas P. Sofonias. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 523-528.

Notas:

[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 94.
[4] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[5] ibid., p. xx. A outra opção de leitura é Ct 2,8-14.
[6] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 94.
[7] LECIONÁRIO I, p. xx.
[8] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
As Missas votivas em honra do Senhor, da Virgem Maria ou dos santos são celebradas em determinados dias para favorecer a devoção dos fiéis (cf. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, n. 375). Cada santuário da Terra Santa, por sua vez, possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos da história da salvação a ele associados. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
[10] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. xx. A outra opção de leitura é Rm 12,9-16b.
[11] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 22. A outra opção de leitura aqui é Ct 2,8-14, como no dia 21 de dezembro.
[12] ibid., p. 153. A 2ª opção aqui é 1Tm 2,5-8.
[13] LECIONÁRIO III, p. x.
[14] ibid., pp. x.y.
[15] ibid., p. x.
[16] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 440.
[17] ibid., v. I, p. 1162; v. II, p. 1685; v. III, p.1523; v. IV, p. 1535.
[18] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[19] ibid., p. 106.
[20] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 127.132.
[21] Fonte: DeiVerbum.org: Leccionario Bienal Bíblico Patrístico.
[22] OFÍCIO DIVINO, v. II, p. 1989. Os outros dois cânticos são Is 63,1-5 e Os 6,1-6.

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