“Alegra-te e exulta de
todo coração, cidade de Jerusalém! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti” (Sf 3,14.17).
Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, já analisamos os escritos dos três “profetas
menores” do século VIII a. C.: Amós e
Oseias no Reino do Norte (Israel) e Miqueias no Reino do Sul (Judá).
Nas próximas postagens daremos continuidade a esta proposta
com os três profetas que atuaram durante o século VII a. C.: Sofonias, Naum e Habacuc, começando
pelo Livro
de Sofonias (Sf).
1. Breve introdução ao Livro de Sofonias
Já no seu primeiro versículo a obra apresenta a “genealogia”
de Sofonias (do hebraico Zefaniah,
que significa “Deus escondeu”, no sentido de “Deus protege”) e nos situa no
reinado de Josias (640 a 609 a. C.). A maioria dos estudiosos precisa a atuação do nosso profeta no
início desse reinado, uma vez que não menciona as reformas
religiosas do rei Josias (entre 628-622 a. C.).
Ícone do Profeta Sofonias (séc. XVII) |
O breve livro, de apenas três capítulos, pode ser dividido
em três partes:
a) Sf 1,2–2,3:
oráculos de julgamento contra o reino de Judá;
b) Sf 2,4–3,8:
oráculos contra as nações;
c) Sf 3,9-20:
oráculos de salvação.
A primeira parte está centrada no “dia de Iahweh”. Na época, esse “dia” não era considerado como o
“final dos tempos”, mas sim como uma intervenção do Senhor que alteraria a
ordem das coisas, recompensando Judá e punindo seus inimigos.
Sofonias, porém, afirma que este será um “dia de ira” também
para Judá, por suas infidelidades: culto aos ídolos, orgulho, violência,
fraude... A expressão de Sf 1,15
tornou-se o primeiro verso da sequência de mesmo nome: “Dies irae, dies illa” (Dia de ira, aquele dia), entoada
tradicionalmente nas Missas dos defuntos (e atualmente como hino na última
semana do Ano Litúrgico).
A conclusão da primeira parte é, pois, um apelo à conversão:
“Procurai a justiça, procurai a pobreza:
talvez sejais protegidos no dia da ira de Iahweh” (Sf 2,3).
Na segunda parte temos quatro breves oráculos contra as
nações (Sf 2,4-15). Estes oráculos
estão distribuídos:
- no espaço, mencionando os povos seguindo os quatro pontos
cardeais: filisteus (oeste), Moab e Amon (leste), Etiópia (sul) e Assíria
(norte);
- e no tempo: à aurora Deus julga (Sf 3,5), ao meio-dia vem a destruição (Sf 2,4), à tarde o resto que permanecer fiel repousará (Sf 2,7).
Concluindo a segunda parte, há um novo oráculo contra Judá (Sf 3,1-8), particularmente contra a
cidade de Jerusalém e seus dirigentes: príncipes, juízes, profetas e
sacerdotes.
A terceira parte, por fim, começa anunciando a conversão dos
povos (Sf 3,9-10), que alguns
estudiosos consideram um acréscimo feito após o exílio da Babilônia (séc. VI a.
C.). A seguir o profeta anuncia que, após o “dia da ira”, permanecerá “um povo pobre e humilde” (v. 12): o “resto de Israel” (v. 13).
Concluem a obra dois “cânticos”: Sf 3,14-18a e Sf 3,18b-20
(embora este último também seja considerado um acréscimo posterior). Ambos
anunciam que o próprio Deus reinará sobre seu povo: “O rei de Israel é o Senhor, Ele está no meio de ti” (vv. 15.17); “Eu vos conduzirei” (v. 20).
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
Profeta Sofonias (James Tissot) |
2. Leitura litúrgica do Livro de Sofonias: Composição harmônica
Como temos feito com todos os livros estudados nesta série,
analisaremos a presença da profecia de Sofonias
nas celebrações litúrgicas segundo os dois critérios de seleção dos textos indicados
no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa:
composição harmônica e leitura semicontínua [1].
Começamos com o primeiro critério: a composição harmônica,
isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração Eucarística
Apesar da sua brevidade, nosso livro aparece com relativo
destaque no Tempo do Advento, sendo
proclamado em três ocasiões. A própria comemoração de Sofonias, como de vários
outros profetas, tem lugar nesse tempo, no dia 03 de dezembro.
- no III Domingo do
Advento do ano C: Sf 3,14-18a [2].
Nos domingos desse tempo “as leituras do Antigo Testamento (AT) são profecias
sobre o Messias e o tempo messiânico” [3]. Por isso, neste III Domingo,
conhecido como “Gaudete” (“Domingo da
Alegria”), proclama-se a alegria pela salvação, isto é, pela vinda do Messias:
“O rei de Israel é o Senhor, Ele está no
meio de ti” (vv. 15.17).
- na terça-feira da
III semana do Advento: Sf
3,1-2.9-13 [4]. Interrompendo a leitura semicontínua do Livro de Isaías, o texto de Sofonias
anuncia a salvação aos humildes e pobres: “Deixarei
entre vós um punhado de homens humildes e pobres. E no nome do Senhor porá sua
esperança o resto de Israel” (v. 12). No Evangelho do dia (Mt 21,28-32) Jesus inclui nesse “resto”
também “os publicanos e as prostitutas”,
porque ouviram a pregação de João Batista e se arrependeram dos seus pecados.
- no dia 21 de
dezembro (2ª opção): Sf 3,14-18a
[5]. De 17 a 24 de dezembro leem-se os Evangelhos que preparam o nascimento do
Senhor, enquanto as leituras do AT foram selecionadas “levando em consideração
o Evangelho do dia” [6]. O Evangelho do dia 21 é a visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-45); por isso retoma-se a
leitura do III Domingo: o convite à alegria pela presença do
Senhor.
Nos demais tempos do Ano Litúrgico temos apenas uma leitura
de Sf em composição harmônica, especificamente
no IV Domingo do Tempo Comum do ano A:
Sf 2,3; 3,12-13 [7]. Como aqui as
leituras do AT são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [8], a
exortação “praticai a justiça, procurai a
humildade” (v. 3), unida à
promessa de salvação aos “humildes e
pobres” (v. 12), está em perfeita sintonia com o anúncio evangélico das
bem-aventuranças (Mt 5,1-12a): “Bem-aventurados os pobres em espírito...
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça...”.
Vale destacar que os peregrinos que visitam o Santuário do Sermão da Montanha na
Terra Santa podem celebrar a “Missa
votiva do ensino das bem-aventuranças” (De
Domino, docente Beatitudines), com as mesmas opções de leituras do IV
Domingo, incluindo Sf 2,3; 3,12-13 e Mt 5,1-12a [9].
Visitação de Maria a Isabel (Jean Jouvenet) |
Passando às celebrações
dos santos, nosso livro aparece primeiramente como 1ª opção de leitura para
a Festa da Visitação de Nossa Senhora,
no dia 31 de maio. A perícope indicada aqui é Sf 3,14-18 [10], como no dia 21 de dezembro: o convite à alegria
pela presença do Senhor. O Evangelho dessa Festa, porém, inclui também o
cântico da Virgem Maria, o Magnificat
(Lc 1,46-56).
O mesmo texto de Sf
3,14-18 é previsto ainda para a Missa da
Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria, indicada na Coletânea de Missas de Nossa Senhora como Missa votiva mariana para
o Advento [11].
Uma vez mencionada a Coletânea,
cumpre indicar aqui a Missa de Maria,
Mãe da unidade, para o Tempo Comum, cuja 1ª opção de leitura é Sf 3,14-20 [12]. Aqui Deus toma a
palavra prometendo a unidade ao “resto de Israel”: “Quando vos trouxer para mim, no tempo em que Eu vos reunirei... então Eu
farei que todas as nações reconheçam vosso nome” (v. 20).
Ainda em relação às celebrações
dos santos, identificamos uma leitura de Sofonias no Comum dos Santos, formulário com
várias opções de textos ad libitum (à
escolha). A perícope indicada aqui é Sf
2,3; 3,12-13 [13], como no IV Domingo do Tempo Comum, definindo a santidade
como “praticar a justiça e procurar a
humildade” (cf. Sf 2,3).
Por fim, encontramos novamente dois textos do nosso livro
dentre as opções de leituras para as Missas
para diversas necessidades:
- na Missa pela santa
Igreja e na Missa em ação de graças: Sf
3,14-15 [14], o convite à alegria pela presença do Senhor, como vimos acima;
- na Missa pela
unidade dos cristãos: Sf 3,16-20
[15], a promessa da “reunião” do “pequeno resto de Israel”, como na Missa de
Maria, Mãe da unidade.
b) Liturgia das Horas
Após a Celebração
Eucarística seguimos nosso percurso com a Liturgia das Horas, na qual identificamos uma leitura breve da
profecia de Sofonias em duas
ocasiões:
- na Hora Média (9h)
da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro): Sf 3,14.15b [16], uma versão mais breve
da perícope recorrente nas celebrações marianas, com o convite à alegria pela
presença do Senhor;
- na Hora Média (9h)
do Comum de Nossa Senhora, para as celebrações marianas sem leituras
próprias, lê-se o mesmo texto acima: Sf
3,14.15b [17].
3. Leitura litúrgica do Livro de Sofonias: Leitura semicontínua
Concluído o percurso pelas leituras em composição harmônica,
seguimos com o critério da leitura semicontínua: a proclamação dos principais
textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com
a Sagrada Escritura [18].
Juízo final com trechos do Dies irae (Aldo Locatell - iIgreja de São Pelegrino, Caxias do Sul) |
Na Celebração Eucarística, como indica o n. 110 do Elenco das Leituras da Missa, foram omitidos “alguns livros proféticos muito breves”, incluindo Sofonias [19].
Assim, a leitura semicontínua do nosso profeta tem lugar na Liturgia das Horas, especificamente no Ofício das Leituras do domingo e da segunda-feira da XXI semana do Tempo Comum, entre a leitura de Isaías (capítulos 1–39) e de Jeremias.
As duas perícopes, tomadas do início e do final do nosso livro, trazem o anúncio do “dia da ira” e a promessa da restauração:
Domingo: Sf 1,1-7.14–2,3 - “O julgamento de Deus”;
Segunda-feira: Sf 3,8-20 - “Deus promete a salvação aos pobres de Israel” [20].
No ciclo bienal
do Ofício das Leituras, o qual infelizmente ainda não foi traduzido para o
Brasil, as mesmas leituras do nosso profeta são proferidas no sábado da XXVII semana e no XXVIII domingo do Tempo Comum no ano ímpar, igualmente entre Isaías (capítulos 1–39) e de Jeremias [21].
4. Leitura litúrgica do Livro de Sofonias: Cântico
Por fim, cabe mencionar ainda um texto da profecia de Sofonias proclamado na Liturgia das Horas em forma de cântico.
Curiosamente, não se trata dos dois “cânticos” de Sf 3,14-20, mas sim do texto anterior: Sf 3,8-13, o início dos oráculos de salvação.
Este cântico, porém, não aparece no ciclo ordinário da Liturgia das Horas, mas sim nas
Vigílias, rezadas de modo facultativo junto ao Ofício das Leituras dos domingos
e solenidades.
O nosso texto é o III
cântico das Vigílias no Tempo Pascal [22]. Sua escolha justifica-se pelo
versículo 8a: “Esperai-me, esperai-me,
palavra do Senhor, no dia em que eu me levantar para dar meu testemunho”.
Na tradução para o latim feita por São Jerônimo, a Vulgata, este “levantar-se” foi
interpretado como uma “ressurreição”: “Expecta
me, dicit Dominus, in die resurrectionis meae” (Esperai-me, diz o Senhor,
no dia da minha ressurreição).
Os três "profetas menores" do séc. VII a. C.: Naum, Habacuc e Sofonias (Igreja de Todos os Santos, Hove, Inglaterra) |
Encerramos assim nosso breve percurso pelas celebrações nas
quais a Igreja nos propõe a leitura do Livro
de Sofonias. Na próxima postagem dessa série completaremos o grupo dos
profetas do século VII a. C. com a análise dos Livros de Naum e Habacuc.
Breve bibliografia sobre o Livro de Sofonias usada para esta postagem:
ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Sofonias e a sua obra. in: Os livros proféticos.
2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 187-190. in:
Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia,
v. 4.
MACCHI, Jean-Daniel. Sofonias.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 540-545.
RIVAS, Pedro Jaramillo. Sofonias.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 365-369.
WAHL, Thomas P. Sofonias.
in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER,
Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2007, pp. 523-528.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 94.
[4] LECIONÁRIO II: Semanal.
Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995,
p. x.
[5] ibid., p. xx.
A outra opção de leitura é Ct 2,8-14.
[6] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 94.
[7] LECIONÁRIO I, p. xx.
[8] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[9] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
As Missas votivas em honra do Senhor, da Virgem Maria ou dos
santos são celebradas em determinados dias para favorecer a devoção dos fiéis
(cf. Instrução Geral sobre o Missal
Romano, 3ª edição, n. 375). Cada santuário da Terra Santa, por sua vez,
possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos
contemplam os eventos da história da salvação a ele associados. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
[10] LECIONÁRIO III:
Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas.
Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997,
p. xx. A outra opção de leitura é Rm
12,9-16b.
[11] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 22. A outra opção
de leitura aqui é Ct 2,8-14, como no
dia 21 de dezembro.
[12] ibid., p.
153. A 2ª opção aqui é 1Tm 2,5-8.
[13] LECIONÁRIO
III, p. x.
[14] ibid., pp. x.y.
[15] ibid., p. x.
[16] OFÍCIO
DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito
Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus,
1999, v. I, p. 440.
[17] ibid., v. I,
p. 1162; v. II, p. 1685; v. III, p.1523; v. IV, p. 1535.
[18] cf.
ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[19] ibid., p.
106.
[20] OFÍCIO
DIVINO, v. IV, pp. 127.132.
[21] Fonte: DeiVerbum.org:
Leccionario Bienal Bíblico Patrístico.
[22] OFÍCIO DIVINO, v. II, p. 1989. Os outros dois cânticos
são Is 63,1-5 e Os 6,1-6.
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