“O justo viverá por
sua fidelidade” (Hab 2,4).
Na postagem anterior desta série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo dos três “profetas menores”
do século VII a. C.: Sofonias, Naum e Habacuc.
Após considerar o Livro de Sofonias, damos continuidade à proposta com os Livros de Naum
(Na)
e Habacuc
(Hab).
Por sua brevidade (ambos com três capítulos) e sua proximidade histórica,
iremos analisá-los conjuntamente.
A própria comemoração desses dois profetas, com efeito,
situa-se em dias consecutivos: Naum a 01 de dezembro e Habacuc no dia 02
(seguidos por Sofonias no dia 03).
1. Breve introdução aos Livros de Naum e Habacuc
O Livro de Naum não nos oferece muitas
informações a respeito do seu autor (segundo alguns estudiosos, seria um
pseudônimo, já que o nome remete a “consolo” em hebraico).
Profeta Naum - Aleijadinho (Santuário de Bom Jesus de Matosinhos - Congonhas, MG) |
Seu primeiro versículo nos introduz diretamente no tema:
“Oráculo sobre Nínive” (Na 1,1). A obra,
com efeito, é uma coleção de sentenças contra esta cidade, então capital do
Império Assírio, anunciando sua destruição. Esse Império havia destruído o
Reino do Norte, Israel, em 722 a. C. e cobrava pesados impostos do Reino do
Sul, Judá.
A data da redação da obra é incerta, embora os estudiosos a
situem entre 663 e 654 a. C., uma vez que se menciona a destruição da cidade de
Tebas (Egito). Esta cidade, com efeito, foi destruída pelos assírios em 663 e
reconstruída em 654.
Outros, porém, situam a redação do livro próxima a 612 a.
C., ano da queda de Nínive, derrotada por uma coalizão de caldeus (babilônios)
e medos (persas).
Cada um dos seus três capítulos forma uma seção:
a) Na 1,1-14: Um
“salmo” ou “hino” sobre a “ira de Iahweh”
contra os assírios (vv. 2-8), seguido de sentenças contra a Assíria e a favor
de Judá (vv. 9-14);
b) Na 2,1-14: Aqui
entra em cena um “mensageiro” (v. 1) que anuncia a paz a Judá e a destruição a
Nínive, cujos próprios mensageiros serão silenciados (v. 14);
c) Na 3,1-19:
Oráculo de julgamento, enumerando os pecados de Nínive (vv. 1-7), recordando o
exemplo de Tebas (vv. 8-11) e indicando que a queda é inevitável (vv. 12-19).
O texto de Naum
infelizmente foi mal conservado, e há partes faltando. Por exemplo, o “salmo”
em Na 1,2-8 é um acróstico: cada
verso inicia com uma letra do alfabeto hebraico. Porém, só temos aqui a
primeira parte do que deveriam ser 22 versos.
Quanto ao Livro de Habacuc, também não temos
muitas informações sobre o autor nem sobre a data. O livro contém lamentações e
imprecações contra o “opressor”, sem especificar de quem se trata.
Em Hab 1,6 temos a
menção dos “caldeus”, isto é, dos babilônios, que são suscitados pelo próprio
Deus. Os estudiosos se dividem quanto à interpretação deste versículo:
a) Os opressores seriam os assírios, e os babilônios, por
sua vez, o instrumento de Deus para castigá-los, o que nos situaria antes da
queda de Nínive em 612 a. C., e Habacuc
seria, portanto, contemporâneo a Naum;
b) Os opressores seriam os próprios babilônios, suscitados
por Deus como castigo pelas infidelidades de Judá, o que situaria a obra alguns
anos depois, entre 601 e 597 a. C..
Profeta Habacuc - Aleijadinho (Santuário de Bom Jesus de Matosinhos - Congonhas, MG) |
O Livro de Habacuc é claramente dividido em três partes:
a) Hab 1,2–2,4: Diálogo entre o profeta e Deus: o profeta entoa um lamento (Hab 1,2-4.12-17) e Deus responde com um oráculo (Hab 1,5-11; 2,1-4);
b) Hab 2,5–20: Maldições contra o opressor, com um prelúdio (vv. 5-6a) seguido de cinco “ais” contra sua violência, injustiça e idolatria (vv. 6b-8.9-11.12-14.15-17.18-20);
c) Hab 3,1-19: Um “salmo” de súplica ao Senhor.
Sobre esse “salmo” ou “cântico”, alguns discutem se seria um
acréscimo posterior, dado que possui um título próprio (Hab 3,1), além de referências a “pausas” (vv. 3.9.13) e a
instrumentos musicais (v. 19), típicas do uso litúrgico. O texto é marcado pela
“teofania”, isto é, pela manifestação de Deus, que assume as características de
um guerreiro, lutando contra os opressores.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica do Livro de Habacuc: Composição harmônica
Na sequência analisaremos a presença dos Livros de Naum e Habacuc nas celebrações litúrgicas segundo os dois critérios
de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa: a composição
harmônica - escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica - e a leitura semicontínua
- proclamação dos principais textos de um livro na sequência [1].
Sob o critério da composição harmônica não temos nenhuma
leitura do Livro de Naum no Rito Romano. O Livro
de Habacuc, por sua vez, é lido
sob este critério apenas em uma ocasião: na Celebração Eucarística do XXVII
Domingo do Tempo Comum do ano C. A 1ª leitura desta Missa é Hab 1,2-3; 2,2-4 [2].
A perícope traz o início do diálogo entre Deus e o profeta,
com a lamentação deste, pedindo o fim da violência, e a resposta de Deus. Vale destacar
o v. 4 do cap. 2: “O justo viverá por sua
fidelidade”, que será adaptada por Paulo: “O justo viverá por sua fé” (Gl
3,11; Rm 1,17).
Considerando que nos domingos do Tempo Comum as leituras do
Antigo Testamento são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [3], a
perícope de Hab está em sintonia com Lc 17,5-10, com o pedido dos Apóstolos a
Jesus: “Aumenta a nossa fé!”.
Uma versão ligeiramente distinta da perícope acima - Hab 1,2-4; 2,2-3 -, proclamando o fim da
violência, é proposta como opção de leitura para a Missa votiva dos Santos Inocentes, própria da Basílica da Natividade em Belém, particularmente no altar em sua
honra nas grutas sob a Basílica. Na Festa dos Santos Inocentes (28 de
dezembro), por sua vez, como parte da Oitava do Natal, lê-se a Primeira Carta de João [4].
3. Leitura litúrgica dos Livros de Naum e Habacuc: Leitura semicontínua
Sob o critério da leitura semicontínua, os dois profetas são
lidos tanto na Celebração Eucarística quanto na Liturgia das Horas.
O povo de Israel oprimido entre o Egito e a Assíria (John Singer Sargent - Boston Public Library, EUA) |
Na Celebração Eucarística nossos livros
são lidos na sexta-feira e no sábado da XVIII semana do Tempo Comum do ano par, entre a leitura dos profetas
Jeremias e Ezequiel. As perícopes escolhidas dos nossos livros são:
Sexta-feira: Na 2,1.3; 3,1-3.6-7 - sobre o
“mensageiro” que anuncia a paz, além de um trecho do oráculo contra Nínive;
Sábado: Hab 1,12–2,4 - a segunda parte do diálogo
entre o profeta e Deus, concluindo com a afirmação: “O justo viverá por sua fé” [5].
No ciclo anual da Liturgia das Horas, a profecia de Habacuc é lida no Ofício das Leituras da terça
e da quarta-feira da XXIII semana do Tempo Comum, novamente precedido
pelo profeta Jeremias, porém sucedido
aqui pelo Livro das Lamentações.
Terça-feira: Hab 1,1–2,4 - “Prece em momento de desolação”;
Quarta-feira: Hab 2,5-20 - “Maldições contra os opressores” [6].
No ciclo bienal
do Ofício das Leituras, por sua vez, o qual infelizmente ainda não foi
traduzido para o Brasil, os dois profetas são lidos na XXIX semana do Tempo Comum do ano
ímpar, como um interlúdio na leitura semicontínua de Jeremias.
Do Livro de Habacuc
são lidas duas perícopes, como no ciclo anual: Hab 1,12–2,4 na quarta-feira e Hab
2,5-20 na quinta. A “novidade” aqui é a leitura de Naum:
Segunda-feira: Na 1,1-8; 3,1-7.12-15a - “Juízo de Deus contra Nínive” [7].
Entre os dois profetas há dois interlúdios - 2Rs 22,8-10–23,4.21-23 no domingo e 2Cr 35,20–36,12 na terça-feira - que narram,
respectivamente, as reformas do rei Josias e a corrupção de Judá após a sua
morte.
4. Leitura litúrgica do Livro de Habacuc: Cântico
Por fim, um trecho do “salmo” do capítulo 3 de Habacuc é proclamado na Liturgia
das Horas em forma de cântico: Hab.
Os versículos omitidos são aqueles de caráter imprecatório, isto é, invocando
maldições contra os inimigos, sendo conservados aqueles versículos que exaltam
o poder de Deus.
Os cânticos do Antigo Testamento foram distribuídos nas
Laudes (oração da manhã) das quatro semanas do Saltério. Assim, encontramos o
cântico de Hab 3,2-4.13a.15-19 nas Laudes da sexta-feira da II semana do
Saltério [8], sob o título “Deus há
de vir para julgar”. A antífona, repetida no início e no final do cântico,
por sua vez, é a última frase do v. 2: “Ó
Senhor, mesmo na cólera, lembrai-vos de ter misericórdia!”.
Cabe lembrar ainda que os salmos e cântico da sexta-feira da
II semana são propostos também para as Laudes
da Sexta-feira Santa na Paixão do Senhor [9].
O Senhor se levanta para salvar o seu povo (Hab 3) (Iniciativa Full of Eyes) |
Encerramos assim nosso percurso pela leitura litúrgica das profecias de Naum e Habacuc. No futuro continuaremos analisando a presença dos escritos do Antigo e do Novo Testamento nas celebrações do Rito Romano. Acompanhe-nos!
Breve bibliografia sobre os Livros de Naum e Habacuc usada para esta postagem:
ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Naum e a sua obra; O profeta Habacuc e a sua obra. in: Os
livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 175-182. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 4.
CERESKO, Anthony R. Habacuc.
in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER,
Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2007, pp. 534-539.
MACCHI, Jean-Daniel. Naum;
Habacuc. in: RÖMER, Thomas;
MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 527-539.
NOWELL, Irene. Naum.
in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER,
Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2007, pp. 528-533.
RIVAS, Pedro Jaramillo. Naum;
Habacuc. in: OPORTO, Santiago
Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 353-364.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I:
Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[4] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa. As leituras propostas para essa Missa são: Hab 1,2-4; 2,2-3 e/ou Hb 10,32-39; Sl 123,2-6.8 (R: v. 7); Mt 2,13-18.
As Missas votivas em honra do Senhor, da Virgem Maria ou dos
santos são celebradas em determinados dias para favorecer a devoção dos fiéis
(cf. Instrução Geral sobre o Missal
Romano, 3ª edição, n. 375). Cada santuário da Terra Santa, por sua vez,
possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos
contemplam os eventos da história da salvação a ele associados. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
[5] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[6] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da
segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 194.198.
[7] Fonte: DeiVerbum.org:
Leccionario Bienal Bíblico Patrístico.
[8] OFÍCIO DIVINO, v. I, p. 782; v. II, p. 1171; v. III, p.
862; v. IV, p. 816.
[9] ibid., v. II,
p. 419.
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