quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Considerações sobre o Domingo da Palavra de Deus

Há um mês, no dia 30 de setembro de 2019, memória litúrgica de São Jerônimo, o Papa Francisco promulgou o Motu proprio Aperuit illis, com o qual instituiu o Domingo da Palavra de Deus, a ser celebrado no III Domingo do Tempo Comum.

Com esta postagem gostaríamos de tecer algumas considerações sobre este Domingo, tanto sobre a escolha da data quanto sobre as iniciativas litúrgicas propostas pelo Santo Padre.

1. A escolha da data

a) Motivação litúrgica:
Embora o Papa mencione no documento apenas a justificativa ad extra (ecumênica) para a escolha da data, como veremos abaixo, é preciso considerar primeiramente a motivação ad intra, isto é, litúrgica.

O Tempo Comum é o tempo por excelência da Palavra de Deus, uma vez que nos proporciona uma leitura semicontínua dos Evangelhos Sinóticos, distribuída em três anos (Ano A: Mateus / Ano B: Marcos / Ano C: Lucas). Nos demais tempos litúrgicos (Advento, Natal, Quaresma e Páscoa) a escolha dos textos segue o critério da harmonia com a espiritualidade do tempo.

O I Domingo do Tempo Comum é substituído pela Festa do Batismo do Senhor, que encerra o Tempo do Natal, enquanto o II Domingo traz alguns trechos do início do Evangelho de João (Ano A: Jo 1,29-34 / Ano B: Jo 1,35-42 / Ano C: Jo 2,1-11).

Portanto, a leitura semicontínua dos Evangelhos Sinóticos começa justamente no III Domingo do Tempo Comum, o que corrobora sua escolha como Domingo da Palavra de Deus.

O Evangelho deste domingo traz-nos o início do ministério de Jesus, sob a perspectiva de cada um dos Sinóticos. Nos anos A e B, Mateus e Marcos narram o chamado dos quatro primeiros discípulos (Pedro, André, Tiago e João), além da síntese da pregação de Jesus: “O Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mt 4,12-23; Mc 1,14-20).

Merece destaque aqui, porém, o ano C: além do prólogo do Evangelho, a perícope deste domingo narra o início do ministério de Jesus na perspectiva de Lucas, isto é, sua visita à sinagoga de Nazaré, onde faz a leitura do profeta Isaías (Is 61,1-2) e proclama: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 1,1-4; 4,14-21).

Cristo faz a leitura na sinagoga de Nazaré


A Palavra de Deus não está apenas no centro do Evangelho deste dia, mas também na 1ª leitura e no salmo. A leitura traz um trecho do livro de Neemias, no qual o sacerdote Esdras faz a leitura do livro da Lei ao povo reunido após o retorno do exílio da Babilônia (Ne 8,2-4a.5-6.8-10), trecho inclusive citado pelo Papa Francisco em seu Motu proprio (n. 04).

O Salmo 18, por sua vez, proclama a beleza da Lei/Palavra do Senhor, sobretudo em seu refrão: “Vossas palavras, Senhor, são espírito e vida!”.

b) Motivação ecumênica:
No n. 03 do Motu proprio, o Papa apresenta a motivação ecumênica para a escolha da data:

Este Domingo da Palavra de Deus colocar-se-á num momento propício daquele período do ano em que somos convidados a reforçar os laços com os judeus e a rezar pela unidade dos cristãos. Não se trata de mera coincidência temporal: a celebração do Domingo da Palavra de Deus expressa uma valência ecumênica, porque a Sagrada Escritura indica, a quantos se colocam à sua escuta, o caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e sólida”.

O Papa refere-se aqui à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, celebrada no hemisfério norte de 18 a 25 de janeiro, e ao Dia do Diálogo Católico-Judaico, celebrado um dia antes do início da Semana (17 de janeiro).

A escolha desta data no hemisfério norte coincide com a Festa da Conversão de São Paulo, o grande Apóstolo das Nações, celebrada a 25 de janeiro. No hemisfério sul, por ser verão e, portanto, período de férias, a Semana é celebrada entre a Ascensão do Senhor e o Pentecostes.

2. Iniciativas propostas pelo Papa Francisco:
Ainda no n. 03 do Motu proprio, o Santo Padre apresenta três sugestões relacionadas à Liturgia (e uma quarta de caráter mais pastoral) para a vivência do Domingo da Palavra de Deus:

a) Entronização da Escritura:
Será importante que, na Celebração Eucarística, se possa entronizar o texto sagrado, de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui a Palavra de Deus”.

Podemos entender de duas formas esta proposta do Santo Padre:

Entronização do Livro dos Evangelhos (Evangeliário) na procissão de entrada por parte do diácono ou leitor, como já previsto para as celebrações mais solenes (cf. Introdução Geral do Missal Romano, 3ª edição, nn. 119-120). Cumpre dizer que o Evangeliário é o único livro que pode entrar na procissão de entrada, como indica o n. 120 da IGMR: “o Evangeliário, não porém o Lecionário”.

Papa Francisco abençoa com o Evangeliário

Entronização do Lecionário por parte do leitor antes da Liturgia da Palavra, como previsto no rito da Dedicação da igreja (cf. Cerimonial dos Bispos, n. 895) e na bênção do ambão (cf. Ritual de Bênçãos, n. 902), além de sugerido de modo facultativo no Rito de Admissão de Catecúmenos (cf. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, n. 91).

Esta segunda opção deve ser considerada como algo extraordinário, permitido apenas para o Domingo da Palavra de Deus, pois a Introdução Geral do Missal Romano indica que o Lecionário já deve estar no ambão no início da celebração (IGMR, n. 118).

Além disso, esta entrada deve ser feita sempre com o Lecionário, nunca com a Bíblia, a fim de garantir a autenticidade do sinal: Cristo não está presente na Bíblia, mas sim na Palavra proclamada (cf. Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 07: “É Cristo que fala quando se proclama na Igreja a Sagrada Escritura”).

Entronizar uma Bíblia para colocá-la em uma estante seria duplicar o sinal, esvaziando-o de sentido. O mesmo se aplica à Eucaristia: o pão e o vinho que entram na procissão das oferendas são aqueles que vão ser consagrados no Corpo e no Sangue do Senhor (inclusive a Santa Sé proibiu em 2002 que estejam presente na igreja outro pão e outro vinho além daqueles que serão consagrados). Da mesma forma, se entroniza apenas o livro de onde objetivamente será proclamada a Palavra de Deus.

b) Liturgia da Palavra e homilia:
Neste Domingo, em particular, será útil colocar em evidência a sua proclamação e adaptar a homilia para se pôr em destaque o serviço que se presta à Palavra do Senhor”.

Aqui se trata de uma orientação mais geral do Santo Padre sobre a valorização da Liturgia da Palavra neste domingo, com especial referência à homilia (confira, neste sentido, os nn. 135-159 da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, dedicados ao tema da homilia e sua preparação).

Dentro desta orientação mais ampla podemos pensar em uma especial ornamentação do ambão, na preparação cuidadosa dos cantos (salmo, aclamação ao Evangelho) e de uma solene proclamação do Evangelho, centro e ápice da Liturgia da Palavra (com a procissão com incenso e velas).

c) Instituição de leitores:
Neste Domingo, os Bispos poderão celebrar o rito do Leitorado ou confiar um ministério semelhante, a fim de chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus na Liturgia. De fato, é fundamental que se faça todo o esforço possível no sentido de preparar alguns fiéis para serem verdadeiros anunciadores da Palavra com uma preparação adequada, tal como já acontece habitualmente com os acólitos ou os Ministros Extraordinários da Comunhão”.

A terceira proposta ligada à Liturgia no Motu proprio consiste na celebração de dois ritos diretamente relacionados com a Palavra de Deus:

A instituição de leitores (cf. Cerimonial dos Bispos, nn. 794-807), que deve ser presidida pelo Bispo e conferida apenas a homens idôneos, maiores de 18 anos (cf. Motu proprio Ministeria quaedam). Neste caso, o leitor é instituído de modo permanente.

Instituição de leitores (Seminário Romano Maior)

A celebração de um ministério semelhante: trata-se aqui de um ministério de leitores não instituído, ou seja, exercido por um período determinado de tempo, como no caso dos Ministros Extraordinários da Sagrada Comunhão. O Papa usa inclusive o verbo “confiar”, que indica, no vocabulário litúrgico, justamente um ministério concedido por um período de tempo.

Trata-se aqui de um ministério que pode ser confiado pelo pároco aos leitores da sua comunidade, ou a Ministros da Palavra (autorizados a presidir a Celebração da Palavra na ausência do presbítero) pelo Bispo ou por um sacerdote por ele delegado, como sugere o recente Documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), “Ministério e celebração da Palavra” (Documento n. 108, pp. 87-90).

d) Entrega da Bíblia:
Da mesma maneira, os párocos poderão encontrar formas de entregar a Bíblia, ou um dos seus livros, a toda a assembleia, de modo a fazer emergir a importância de continuar na vida diária a leitura, o aprofundamento e a oração com a Sagrada Escritura, com particular referência à lectio divina”.

Por fim, a quarta e última proposta do Santo Padre não consiste em uma iniciativa de caráter litúrgico, mas sim pastoral: entregar a Bíblia ou um de seus livros (ou ainda o Novo Testamento ou os Evangelhos) à comunidade.

Contudo, podemos adaptar esta proposta em um contexto litúrgico, se celebramos nesse Domingo o Rito de Admissão ao Catecumenato, que prevê a entrega da Palavra de Deus aos adultos que se preparam para os sacramentos (cf. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, nn. 73-97).

Ou ainda, se adaptarmos o processo de Iniciação Cristã de adultos à catequese de crianças e adolescentes, como sugere o Documento n. 107 da CNBB - Iniciação à vida cristã: Itinerário para formar discípulos missionários -, esta entrega do livro da Palavra de Deus pode ser feita a uma das etapas da catequese, como já vem sendo feito em algumas Dioceses do Brasil.

Contudo, para concluir, embora a iniciativa do Santo Padre seja extremamente louvável, esbarra em um problema pastoral no hemisfério sul: o período de verão e, portanto, de férias. A CNBB ainda não se pronunciou oficialmente a respeito do Domingo da Palavra de Deus, considerando que no Brasil já celebramos o “Dia da Bíblia” no último domingo de setembro, próximo à memória de São Jerônimo.

Independentemente deste questionamento de caráter pastoral, vale a pena ler e aprofundar o Motu proprio Aperuit illis e celebrar com especial devoção o III Domingo do Tempo Comum, iniciando assim o ano civil em companhia da Palavra de Deus, “lâmpada para os nossos pés e luz em nosso caminho” (Sl 118/119,105).



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