sábado, 1 de junho de 2019

Homilia: Ascensão do Senhor - Ano C

São Leão Magno
Tratado 77
Fiz-me Filho do homem, para que possais ser filhos de Deus

Quando aplicamos toda a capacidade de nossa inteligência à confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, temos de afastar de nossa imaginação as formas das coisas visíveis e as idades das naturezas temporais; temos de excluir de nossas categorias mentais os corpos dos lugares e os lugares dos corpos. Aparte-se do coração o que se estende no espaço, e que se confina dentro de alguns limites, e o que não está sempre em todas as partes, nem é a totalidade. Nossos conceitos relativos à deidade da Trindade hão de evitar as categorias de espaço, não devem pretender estabelecer gradações, e se envolvem algum tipo de sentimento digno de Deus, não abrigue a presunção de negá-lo a alguma das Pessoas, por exemplo, aditando como mais honorífico o Pai, o que se nega ao Filho e ao Espírito. Não é verdadeira piedade preferir ao que gera sobre o Unigênito. Toda desonra infligida ao Filho é uma injúria feita ao Pai, e o que resta a um se subtrai a ambos. Pois sendo comum ao Pai e ao Filho a sempiternidade e a deidade, não se considerará ao Pai nem todo-poderoso nem imutável se você pensa que o bem gerou um ser inferior a ele, ou que se enriqueceu tendo ao Filho que antes não tinha.
Disse, de fato, aos seus discípulos o Senhor Jesus, como escutamos na leitura evangélica: Se me amásseis vos alegraríeis de que eu vá ao Pai, porque o Pai é maior do que eu. Porém, esta afirmação, aqueles que a ouviram com frequência: Eu e o Pai somos um e: Quem me viu, viu também o Pai, a interpretam não como uma diferença no plano da deidade, nem a entendem referida àquela essência que sabem ser sempiterna com o Pai e da mesma natureza.
Sendo assim, a Encarnação é designada aos Apóstolos como promoção humana, e os que estavam atordoados pelo anúncio da partida do Senhor são convidados aos gozos eternos, recordando-lhes o aumento de sua própria glória: Se me amásseis, vos alegraríeis de que eu vá para o Pai, ou seja: se tivésseis uma ideia clara da glória que para vós se deriva do fato de que eu, gerado de Deus Pai, tenha nascido também de uma mãe humana; de que sendo Senhor dos seres eternos, quis ser um dos mortais; de que sendo invisível me fiz visível; de que sendo sempiterno enquanto Deus assumi a condição de escravo, vos alegraríeis de que eu vá para o Pai. Esta ascensão será benéfica para vós, porque vossa humildade é elevada em mim sobre todos os céus para ser colocada à direita do Pai. E eu, que sou com o Pai o que o Pai é em si mesmo, permaneço inseparavelmente unido ao que me gerou; por isso não me afasto dele vindo a vós, como tampouco vos deixo a vós quando volto a Ele.
Alegrai-vos, pois, de que eu me vá ao Pai, porque o Pai é maior do que eu. Ele vos tem unido a mim e me fez Filho do homem, para que vós possais ser filhos de Deus. Disto se segue que ainda que eu continue sendo um em ambos, contudo, enquanto me configuro convosco, sou menor que o Pai; mas enquanto que não me separo do Pai, sou inclusive maior que eu mesmo. Vá, pois, ao Pai a natureza que é inferior ao Pai, e a carne esteja ali onde sempre está o Verbo; e a única fé da Igreja Católica creia igualmente em sua deidade a quem não tem inconveniente em reconhecer inferior em sua humanidade.
Tenhamos, pois, amadíssimos, por digna de desprezo a vã e cega astúcia da sacrílega heresia, que se lisonjeia da distorcida interpretação desta frase; pois tendo dito o Senhor: Tudo o que o Pai tem é meu, não compreende que tira ao Pai tudo quanto se atreve a negar ao Filho, e de tal forma se extravia no que concerne a sua humanidade, que pensa que ao Unigênito lhe faltaram as qualidades paternas, pelo mero fato de que assumiu as nossas. Em Deus a misericórdia não diminuiu o poder, nem a entranhável reconciliação da criatura eclipsou sua sempiterna glória. Aquilo que o Pai tem, o tem igualmente o Filho, e o que o Pai e o Filho têm, o tem da mesma forma o Espírito Santo, porque toda a Trindade é um só Deus.
Mas esta fé não a tem descoberto a humana sabedoria, nem argumentos humanos a têm demonstrado, mas a ensinou o próprio Unigênito e a tem instituído o Espírito Santo, do qual não temos de pensar distintamente do Pai e do Filho. Pois mesmo que não seja Pai nem Filho, nem por isso está separado do Pai e do Filho; e assim como na Trindade tem sua própria Pessoa, assim também tem na deidade do Pai e do Filho uma única substância, substância que tudo preenche, tudo contém e que, junto com o Pai e o Filho, governa todo o universo. A Ele a glória e a honra pelos séculos dos séculos. Amém.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 612-614. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

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