São Leão Magno
Tratado 77
“Fiz-me
Filho do homem, para que possais ser filhos de Deus”
Quando aplicamos
toda a capacidade de nossa inteligência à confissão do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, temos de afastar de nossa imaginação as formas das coisas
visíveis e as idades das naturezas temporais; temos de excluir de nossas
categorias mentais os corpos dos lugares e os lugares dos corpos. Aparte-se do
coração o que se estende no espaço, e que se confina dentro de alguns limites,
e o que não está sempre em todas as partes, nem é a totalidade. Nossos
conceitos relativos à deidade da Trindade hão de evitar as categorias de
espaço, não devem pretender estabelecer gradações, e se envolvem algum tipo de
sentimento digno de Deus, não abrigue a presunção de negá-lo a alguma das
Pessoas, por exemplo, aditando como mais honorífico o Pai, o que se nega ao
Filho e ao Espírito. Não é verdadeira piedade preferir ao que gera sobre o
Unigênito. Toda desonra infligida ao Filho é uma injúria feita ao Pai, e o que
resta a um se subtrai a ambos. Pois sendo comum ao Pai e ao Filho a
sempiternidade e a deidade, não se considerará ao Pai nem todo-poderoso nem
imutável se você pensa que o bem gerou um ser inferior a ele, ou que se
enriqueceu tendo ao Filho que antes não tinha.
Disse, de fato,
aos seus discípulos o Senhor Jesus, como escutamos na leitura evangélica: Se me amásseis vos alegraríeis de que eu vá
ao Pai, porque o Pai é maior do que eu. Porém, esta afirmação, aqueles que
a ouviram com frequência: Eu e o Pai
somos um e: Quem me viu, viu também o
Pai, a interpretam não como uma diferença no plano da deidade, nem a
entendem referida àquela essência que sabem ser sempiterna com o Pai e da mesma
natureza.
Sendo assim, a
Encarnação é designada aos Apóstolos como promoção humana, e os que estavam
atordoados pelo anúncio da partida do Senhor são convidados aos gozos eternos,
recordando-lhes o aumento de sua própria glória: Se me amásseis, vos alegraríeis de que eu vá para o Pai, ou seja:
se tivésseis uma ideia clara da glória que para vós se deriva do fato de que
eu, gerado de Deus Pai, tenha nascido também de uma mãe humana; de que sendo
Senhor dos seres eternos, quis ser um dos mortais; de que sendo invisível me
fiz visível; de que sendo sempiterno enquanto Deus assumi a condição de
escravo, vos alegraríeis de que eu vá
para o Pai. Esta ascensão será benéfica para vós, porque vossa humildade é
elevada em mim sobre todos os céus para ser colocada à direita do Pai. E eu,
que sou com o Pai o que o Pai é em si mesmo, permaneço inseparavelmente unido
ao que me gerou; por isso não me afasto dele vindo a vós, como tampouco vos
deixo a vós quando volto a Ele.
Alegrai-vos, pois, de que eu me vá ao Pai, porque o Pai é maior do que eu. Ele vos tem
unido a mim e me fez Filho do homem, para que vós possais ser filhos de Deus.
Disto se segue que ainda que eu continue sendo um em ambos, contudo, enquanto
me configuro convosco, sou menor que o Pai; mas enquanto que não me separo do
Pai, sou inclusive maior que eu mesmo. Vá, pois, ao Pai a natureza que é
inferior ao Pai, e a carne esteja ali onde sempre está o Verbo; e a única fé da
Igreja Católica creia igualmente em sua deidade a quem não tem inconveniente em
reconhecer inferior em sua humanidade.
Tenhamos, pois,
amadíssimos, por digna de desprezo a vã e cega astúcia da sacrílega heresia,
que se lisonjeia da distorcida interpretação desta frase; pois tendo dito o
Senhor: Tudo o que o Pai tem é meu,
não compreende que tira ao Pai tudo quanto se atreve a negar ao Filho, e de tal
forma se extravia no que concerne a sua humanidade, que pensa que ao Unigênito
lhe faltaram as qualidades paternas, pelo mero fato de que assumiu as nossas.
Em Deus a misericórdia não diminuiu o poder, nem a entranhável reconciliação da
criatura eclipsou sua sempiterna glória. Aquilo que o Pai tem, o tem igualmente
o Filho, e o que o Pai e o Filho têm, o tem da mesma forma o Espírito Santo,
porque toda a Trindade é um só Deus.
Mas esta fé não
a tem descoberto a humana sabedoria, nem argumentos humanos a têm demonstrado,
mas a ensinou o próprio Unigênito e a tem instituído o Espírito Santo, do qual
não temos de pensar distintamente do Pai e do Filho. Pois mesmo que não seja
Pai nem Filho, nem por isso está separado do Pai e do Filho; e assim como na
Trindade tem sua própria Pessoa, assim também tem na deidade do Pai e do Filho
uma única substância, substância que tudo preenche, tudo contém e que, junto
com o Pai e o Filho, governa todo o universo. A Ele a glória e a honra pelos
séculos dos séculos. Amém.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp.
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