Santo Agostinho
Tratado sobre o Evangelho de São João
“Se
aquele sangue não fosse derramado, o mundo não seria redimido”
Ainda não tinha chegado a sua hora, não
a hora em que fosse forçado a morrer, mas a hora em que se dignasse ser morto.
Pois ele bem sabia quando devia morrer; tem presente todas as profecias que a
ele se referiam, e esperava seu pleno cumprimento antes de iniciar sua Paixão.
E, uma vez cumpridas todas as profecias, então teria lugar também a Paixão de acordo
com a ordem estabelecida, e não por uma fatal necessidade.
Simplesmente
escutai, e podereis comprová-lo por vós mesmos. Entre outras coisas
profetizadas dele, estava escrito: Lançaram
fel em minha comida, para minha sede me deram vinagre. Como isto se
cumpriu, nós o sabemos pelo Evangelho. Primeiro lhe deram fel: o aceitou, o
provou, porém não quis bebê-lo; mais tarde, suspenso da cruz, para que se
cumprisse a Escritura, disse: Tenho sede.
Pegaram uma esponja ensopada em vinagre, a colocaram em uma vara e a
aproximaram ao crucificado. Jesus, quando tomou o vinagre, disse: Tudo está consumado. O que significa “está consumado”? Que se realizaram todas
as coisas profetizadas antes de sua Paixão. Portanto, o que faço aqui? E,
realmente, uma vez que ele disse: “Está
consumado”, inclinando a cabeça,
entregou o espírito.
Mas será que os
ladrões crucificados com ele expiraram quando quiseram? Estavam atados pelos
laços da carne, visto que não eram os criadores da carne; transpassados por
cravos, eram amplamente atormentados, porque não eram donos de seus
sofrimentos. O Senhor, por outro lado, quando quis, encarnou-se em um seio
virginal; quando quis, apareceu entre os homens; viveu entre os homens o tempo
que quis; quando quis, abandonou sua envoltura carnal. Isto é sinal de
potestade, não de necessidade. Esta é a hora que ele esperava: não uma hora
fatal, mas oportuna e voluntária, que lhe permitiria cumprir o estabelecido
antes de sua Paixão. Porque, como poderia estar sob o acaso da fatalidade,
aquele que em outra passagem disse: Tenho
poder para tirar a vida e para recuperá-la; ninguém me tira a vida, mas eu a
entrego livremente para retomá-la? Manifestou publicamente este poder
quando os judeus o buscavam: A quem
buscais?, perguntou. Responderam-lhe: A
Jesus. E lhes disse: Sou eu. Diante
de sua voz, retrocederam e caíram por terra.
Porém alguém
contestará: se é verdade que ele possuía este poder, por que, então, quando
suspenso da cruz, os judeus o injuriavam e diziam: Se és o Filho de Deus, desde da cruz, não desceu, para que,
descendo, demonstrasse-lhes seu poder? Porque pregava a paciência, por isso
adiava a potência. Pois, se diante da reclamação de suas palavras tivesse
baixado da cruz, se diria que o tinha feito vencido pela dor. De forma alguma
desceu; permaneceu cravado, para ser descravado quando quisesse.
Ora, acaso lhe
custava descer da cruz, a ele que pôde ressuscitar do sepulcro? Portanto, nós
que recebemos estes ensinamentos, compreendamos que o poder de nosso Senhor
Jesus Cristo, então oculto, haveria de manifestar-se no juízo, a respeito do
qual se disse: Deus vem publicamente e não se calará. Porque primeiro ele
calou. Quando calou? Quando foi julgado, cumprindo-se assim a predição do
profeta: Como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha diante do tosquiador,
emudecia e não abriu a boca. Assim, se não tivesse querido padecer, não teria
padecido, aquele sangue não teria disso derramado; se aquele sangue não tivesse
sido derramado, o mundo não teria sido redimido. Demos, pois, graças tanto ao
poder de sua divindade como a misericórdia de sua fragilidade.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 576-577. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.
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